Imprimir acórdão
Processo n.º 698/02
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
Por sentença dos Juízos de Pequena Instância Criminal do Porto, de 9 de Outubro de 2002, foi concedido provimento à impugnação judicial deduzida por A., contra o despacho de 2 de Maio de 2002 do Vereador do Pelouro das Actividades Económicas e Protecção Civil da Câmara Municipal do Porto, que lhe aplicara a coima de € 1900, por ter colocado determinados factos publicitários no seu estabelecimento, sem licença municipal, o que constituiu contra-ordenação prevista e sancionada pelos artigos 29.º, n.º 1, da Lei n.º
42/98, de 6 de Agosto, 1.º, n.º 1, e 10.º, n.ºs 1 e 3, da Lei n.º 97/88, de 17 de Agosto, 191.º, n.º 1, do Código de Posturas do Concelho do Porto e 17.º, n.º
2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.
O provimento da impugnação judicial assentou na recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do princípio da legalidade fiscal consignado nos artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa (CRP), da norma do artigo 191.º, n.º
1, do Código de Posturas do Concelho do Porto, recusa essa que a aludida sentença alicerçou nestes termos:
“Dispõe o referido artigo 191.°, n.° 1, que «carece de licença municipal a colocação ou utilização de anúncios e reclamos, visíveis da via pública, com ou sem carácter municipal».
Defende a arguida que, sendo inconstitucionais as normas que as instituíram, as taxas de licença de publicidade são nulas e, em consequência directa e necessária, nulas se tornam as multas que se definem por serem iguais
«ao dobro da taxa da licença em falta», uma vez que não existe qualquer taxa de licença em falta.
Esta questão leva-nos, antes de mais, à necessidade de distinguir os conceitos de taxa e imposto.
Segundo a doutrina, o critério que opera esta distinção é a existência, ou não, de um vínculo sinalagmático.
Ou seja, a taxa implica uma contrapartida por parte do ente público que a exige, contrapartida esta que pode revestir a forma de utilização de um serviço público, utilização de um bem público ou semipúblico ou remoção de um obstáculo jurídico ao exercício de determinada actividade por parte do tributado.
No presente caso, e segundo a decisão recorrida, a arguida «colocou no seu estabelecimento, sito na Rua -----------------------», determinados dizeres publicitários «sem que para o efeito possuísse a respectiva licença camarária».
Não estamos, por isso, perante a utilização de bens ou locais públicos mas sim de bens ou locais pertencentes a particulares.
Restaria, portanto, a terceira das referidas hipóteses, que consiste no levantamento de obstáculo jurídico ao exercício de determinada actividade por parte do tributado.
Mas, mesmo neste caso, a doutrina portuguesa tem entendido que só estamos perante uma taxa se, com essa remoção, se vier a possibilitar a utilização de um bem semipúblico (vide, por todos, Teixeira Ribeiro, Lições de Finanças Públicas, pág. 267 e seguintes, e na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 117.°, fasc. 3727, pág. 289 e seguintes).
Assim, tendo em conta que os dizeres em causa se encontram colocados no estabelecimento da arguida, propriedade particular, não se vislumbra que forma de utilização de um bem semipúblico possa estar em causa ou que a autarquia venha a ser constituída numa situação obrigacional de assunção de maiores encargos pelo levantamento do obstáculo jurídico.
Pelo que a contribuição exigida à arguida deve ser juridicamente classificada como um verdadeiro imposto, devendo obedecer aos ditames que a Constituição dirige a esta classe de tributos.
E daí que a norma que a impõe, porque criada por diploma não emanado pela Assembleia da República (ou pelo Governo devidamente autorizado por aquela), deva ser considerada como enfermando do vício de inconstitucionalidade orgânica.
Neste sentido se pronunciaram, em casos idênticos ou semelhantes, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.° 558/98 (publicado no Diário da República, II Série, n.° 261, de 11 de Novembro de 1998, pág. 16 044 e seguintes), 63/99 (publicado no Diário da República, II Série, n.° 76, de 31 de Março de 1999, pág. 4769 e seguintes) e 32/00 (publicado no Diário da República, II Série, n.° 57, de 8 de Março de 2000, pág. 4574 e seguintes).
Fica, por isso, prejudicado o conhecimento das demais questões levantadas pela arguida em sede de recurso.
III – Decisão.
Pelo exposto, declaro inconstitucional a norma do artigo 191.°, n.°
1, do Código de Posturas do Concelho do Porto, na parte em que se refere à tributação da utilização de espaços pertencentes a particulares, por violação dos artigos 103.°, n.° 2, e 165.°, n.° 1, alínea i), da Constituição e, em consequência, concedo provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida.”
Contra esta sentença interpôs o Ministério Público o presente recurso para este Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC).
Neste Tribunal Constitucional – revogada, pelo Acórdão n.º 500/2002, decisão sumária de improvimento do recurso, exarada pelo primitivo Relator, e determinado o prosseguimento dos autos –, o representante do Ministério Público apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“1 – Não viola qualquer preceito ou princípio da Lei Fundamental o estabelecimento da necessidade do indispensável licenciamento municipal, relativamente a quaisquer inovações ou modificações da estrutura visível dos imóveis, ou estabelecimentos comerciais, de modo a facultar às autarquias a salvaguarda do equilíbrio urbano e ambiental e a tutela dos destinatários das mensagens publicitárias – e sendo naturalmente sancionados, no plano do ilícito de mera ordenação social (e não obviamente no plano do direito tributário), quaisquer comportamentos ilícitos e culposos dos particulares.
2 – A coima aplicada ao interessado que cometeu tal contra-ordenação – prevista e punida na norma regulamentar desaplicada na decisão recorrida e que integra o objecto do presente recurso – carece, dado o seu carácter estritamente sancionatório, de natureza tributária, carecendo consequentemente de sentido proceder a uma sua qualificação como «taxa» ou «imposto».
3 – Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com o juízo de constitucionalidade das normas desaplicadas na decisão recorrida.”
A recorrida A., contra-alegou, concluindo:
“A) A coima aplicada à ora recorrida só existe e só é lícita se for lícita e exigível a taxa que lhe serve de referência e fundamento.
B) Assim, como questão prévia do recurso interposto, levanta-se o problema da inconstitucionalidade da taxa prevista no artigo
191.°, n.° 1, do Código de Posturas do Concelho do Porto.
C) A resolução da questão prévia assinalada não se confunde com a decisão sobre a natureza sancionatória da coima ou a sua eventual qualificação como imposto ou taxa.
D) A taxa de publicidade exigida pela Câmara Municipal pela afixação de publicidade em prédios particulares só poderia ser considerada taxa se houvesse, da sua parte, a prestação de uma contrapartida, a qual, no caso concreto, não existe.
E) A norma contida no artigo 191.°, n.° 1, do Código de Posturas do Concelho do Porto, está viciada de inconstitucionalidade orgânica por não existir prévia autorização legislativa para a imposição de um tributo, contrariando o princípio da legalidade fiscal consignado nos artigos 103.°, n.°
2, e 165.°, n.° 1, alínea i), da Constituição.
F) A admitir-se, o que apenas por dever de patrocínio se admite, que a aplicação da coima recorrida apenas visa sancionar comportamentos de particulares susceptíveis de afectar o equilíbrio urbano e ambiental e a tutela dos destinatários das mensagens publicitárias não só não tem fundamento legal como, se fosse aceite, obrigaria a um juízo de inconstitucionalidade por violação dos princípios da justiça e proporcionalidade e do artigo 266.°, n.°
2, da Constituição.”
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
Como se refere na alegação do recorrente, a questão que constitui objecto do presente recurso já foi alvo de apreciação por este Tribunal Constitucional, que, no Acórdão n.º 434/2002 (Diário da República, II Série, n.º 291, de 17 de Dezembro de 2002, pág. 20 632), não julgou inconstitucional a norma desaplicada pela decisão ora recorrida, desenvolvendo, para tanto, a seguinte argumentação:
“Este Tribunal tem julgado inconstitucionais as normas constantes de posturas ou editais municipais que tributam a colocação e manutenção de anúncios ou reclamos publicitários, com fundamento na respectiva inconstitucionalidade orgânica. É o caso, nomeadamente, do Acórdão n.º 558/98 (Acórdãos do Tribunal Constitucional,
41.º vol., págs. 55 e seguintes), do Acórdão n.º 32/99 (inédito), do Acórdão n.º
63/99 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 42.º vol., págs. 291 e seguintes), do Acórdão n.º 515/00 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 48.º vol., págs.
459 e seguintes), e do Acórdão n.º 92/2002 (inédito).
(...)
4. (...) Todavia, como refere o Ministério Público, nas respectivas alegações, «a decisão recorrida assenta num claro equívoco, já que, no caso dos autos, estamos confrontados – não com a exigência
à recorrida de qualquer “tributo” pela autarquia, como decorrência de afixação de mensagens publicitárias no seu estabelecimento, mas com a imposição de uma coima – sanção contra-ordenacional decorrente de a arguida não ter procedido ao prévio e indispensável licenciamento municipal, destinado a facultar à autarquia a fiscalização da afixação ou inscrição de mensagens publicitárias, com vista à salvaguarda do equilíbrio urbano e ambiental».
E as autarquias não só não estão impedidas de exercer essa actividade fiscalizadora como na verdade tais funções lhes são expressamente atribuídas pela Lei n.º 97/88, de 17 de Agosto, artigo 1.º. A própria decisão recorrida reconhece expressamente que «cabe ao Município onde a arguida tenha sede social licenciar os anúncios a pôr nos edifícios e estabelecimentos de que seja proprietária». O que não poderá, face à orientação jurisprudencial despendida, é fixar o tributo decorrente desse licenciamento quando estejam em causa bens do domínio privado ou particular.
Ora, foi a partir daquela errada premissa que a decisão recorrida proferiu o alegado juízo de inconstitucionalidade que fundamentou a procedência da impugnação em causa.
Todavia, o que estava em causa nos presentes autos não era o pagamento de qualquer taxa eventualmente devida pela licença dos anúncios colocados, mas antes, e tão-só, a cobrança da coima devida pela não existência do necessário licenciamento para os anúncios em causa. Com efeito, a recorrida B. não requereu oportunamente o licenciamento para a colocação dos anúncios ou reclamos referentes à sua actividade, pelo que a autarquia deu início ao respectivo processo de contra-ordenação, destinado a sancionar essa falta de licenciamento, e não a cobrar o tributo correspondente a essa mesma licença. Ora, a necessidade de licenciamento não foi posta em causa pela jurisprudência constitucional citada, e é a ela que se referem os n.ºs 1 e 2 do artigo 1.º da Lei n.º 97/88, bem como o artigo 191.º do Código de Posturas Municipais, disposições infringidas pela recorrida.
O que vale por dizer que a decisão recorrida, ao interpretar esses normativos no sentido de permitirem «a tributação da utilização de espaços pertencentes a particulares», entendeu como abrangidas no conceito de «tributo» as coimas devidas pela não existência de licenciamento, afastando assim a possibilidade de sancionamento pelas autarquias desses mesmos comportamentos infractores. Ou seja, interpretou-os no sentido de abrangerem o sancionamento da ausência de licença, concluindo pela respectiva inconstitucionalidade.
Ora, tal sentido é manifestamente excessivo. Como bem referiu o Ministério Público, supra, aquela coima, «prevista e punida na norma regulamentar desaplicada na decisão recorrida», possui uma natureza clara e indubitavelmente sancionatória, «carecendo consequentemente de sentido proceder a uma sua qualificação como “taxa” ou “imposto”».
Pretende ainda a recorrida, todavia, que o estabelecimento da necessidade de licenciamento «mais não é do que a sujeição ao pagamento de uma taxa, que surge na sequência de um procedimento administrativo, que é acessório, e a sanção mais não é do que a ausência do tal procedimento pelo não pagamento da respectiva taxa», alegando ainda que
«procedimento» e «taxa» seriam uma e a mesma realidade. Para concluir assim, e ainda, que «não sendo lícito à autarquia cobrar a aludida taxa, igualmente não lhe é lícito sancionar o comportamento pela ausência da licença, por nulidade da disposição que determina e discrimina a sanção».
Ora, tal argumento é de todo improcedente, já que a recorrida não logra fundamentar tais afirmações, pois que não é de todo possível confundir essas duas realidades distintas: por um lado, a obtenção da necessária licença municipal; por outro, o pagamento do tributo a ela correspondente.
Não se verifica, assim, qualquer inconstitucionalidade nas normas desaplicadas.”
Este entendimento, que se reitera, determina a não confirmação do juízo de inconstitucionalidade em que se ancorou a decisão recorrida.
Aduz, no entanto, a recorrida, que, sendo o montante da coima equivalente ao dobro da taxa de licença em falta, a inconstitucionalidade da instituição deste tipo de taxas determina a nulidade destas e, consequentemente, a nulidade da coima que as toma por referência, para além de que a determinação da medida do sancionamento feita com base no montante das taxas, e não na gravidade da infracção, violaria os princípios da justiça e da proporcionalidade, a que a Administração Pública está subordinada, por força do artigo 266.º, n.º 2, da Constituição.
Também aqui não lhe assiste razão. Como claramente resulta da decisão que aplicou a coima (cf. fls. 79 destes autos), a autoridade administrativa considerou que a coima aplicável tinha como limites mínimo e máximo, respectivamente, € 3,74 e € 44 891,81 (por manifesto lapso refere € 444
891,81), nos termos do disposto no artigo 10.º, n.º 3, da Lei n.º 97/88, de 17 de Agosto, e 17.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro. E, na verdade, aquela Lei – cujo artigo 1.º, n.º 1, determina que “A afixação ou inscrição de mensagens publicitárias de natureza comercial obedece às regras gerais sobre publicidade e depende do licenciamento prévio das autoridades competentes” – dispõe no seu artigo 10.º, n.ºs 1 e 3, respectivamente, que
“Constitui contra-ordenação punível com coima a violação do disposto nos artigos
1.º, 3.º, n.º 2, 4.º e 6.º da presente lei” e que “Ao montante das coimas, às sanções acessórias e às regras de processo aplicam-se as disposições constantes do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro”. Por seu turno, resulta do artigo
17.º, n.ºs 1 e 2, deste último diploma, na aludida redacção, que os limites gerais das coimas aplicáveis a pessoas colectivas oscilam entre € 3,74 e € 44
891,81. E, como resulta da decisão sancionatória judicialmente impugnada (cf. fls. 82 destes autos), a autoridade administrativa procedeu, para a
“determinação da medida da coima”, à ponderação da “gravidade da contra-ordenação”, da “culpa do agente”, da “situação económica do agente” e do
“benefício económico retirado da contra-ordenação”.
Carece, assim, de fundamento a alegada violação dos princípios da justiça e da proporcionalidade, suscitada pela recorrida nas suas contra-alegações.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 191.º do Código de Posturas do Concelho do Porto, enquanto determina o sancionamento como contra-ordenação da afixação de mensagens publicitárias de carácter comercial sem prévia obtenção do devido licenciamento municipal; e, consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso, determinando a reforma da decisão judicial impugnada em conformidade com o precedente juízo de constitucionalidade.
Lisboa, 27 de Maio de 2003.
Mário José de Araújo Torres (Relator)
Benjamim Silva Rodrigues
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma
Rui Moura Ramos