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Processo n.º 666/12
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos da 10.ª Vara Cível de Lisboa, em que é recorrente o Ministério Público e são recorridos a sociedade A. Limited e outros, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho daquele Tribunal de 28 de junho de 2012.
2. O Tribunal recorrido recusou a aplicação da «norma que resulta dos artigos 13º, n.º 1, e tabela anexa e 18.º, n.ºs 2 e 4, todos do Código das Custas Judiciais, na versão de 1996, que prevê a fixação da taxa de justiça nos recursos, cujo valor excede 49.879,79, em proporção ao valor da ação sem qualquer limite máximo ao montante das custas, por violação do direito de acesso aos tribunais (art.20º da C.R.P.), conjugado com o princípio da proporciona1idade (art. 18º n.º 2, 2ª parte da C.R.P.), na medida em que tal norma não permite ao tribunal que limite o montante da taxa de justiça devido no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a natureza e complexidade do processo e o carácter manifestamente desproporcionado do montante em questão».
Para o que importa apreciar e decidir é a seguinte a fundamentação da decisão:
«- Do valor tributário dos recursos de apelação e agravo objeto das contas reclamadas -
Dispunha o art.º 11º do CCJ:
Nos recursos o valor é o da sucumbência quando esta for determinável
Refere Salvador da Costa, in CCJ anotado, 4ª edição, pág. 141, que não raro, o interesse concretamente prosseguido no recurso é inferior ao valor tributário atribuído á causa e que é uma norma moderadora da responsabilidade pela dívida de custas na medida em que, pela regra que decorre dos artigos 5º e 10º, o valor tributário do recurso corresponde ao da causa tal como foi definido no tribunal recorrido.
*
A conta de fls. 4248 – conta n.º 955800003422012 – relativa ao recurso de apelação interposto pela autora da decisão que absolveu os RR. da instância, considerou como valor tributário, o valor da causa - € 45.502.392,41.
Mas, tendo em consideração que o interesse concretamente prosseguido no recurso é a alteração da decisão de absolvição da instância dos RR. quanto aos pedidos deduzidos por via da ação, tendo os pedidos reconvencionais sido deduzidos a título subsidiário e sido considerado prejudicado o seu conhecimento de mérito, o valor tributário há-de ser o correspondente ao valor atribuído pela autora aos pedidos por si deduzidos - €15.548.417,32.
*
A conta de fls. 4250 – conta n.º 955800003442012 – relativa ao recurso de agravo interposto da decisão de não admissão da reconvenção (fls. 3754) em que são responsáveis as 2ª e 4ª a 9ª RR., considerou como valor tributário o valor dos pedidos reconvencionais - € 29.938.975,09.
E é efetivamente este o valor da sucumbência, ou seja, o valor do interesse concretamente prosseguido com a interposição do recurso.
Não tem qualquer fundamento legal a pretensão de aplicar a esta situação o regime do art.º 16º do CCJ, o qual só está previsto para os incidentes, o que não é manifestamente o caso, pois a situação jurídica está perfeitamente definida: é recurso de agravo. E sendo recurso de agravo, não pode ser incidente.
Impõe-se no entanto verificar se aqueles valores tributários deverão ser efetivamente considerados.
*
- Da inconstitucionalidade do art.º 13º n.º 1 do CCJ na redação do DL 224-A/96, de 26 de Novembro e da Tabela anexa –
Dispunha o art.º 13º do CCJ:
1. Sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, a taxa de justiça é a constante da tabela anexa, sendo calculada sobre o valor das ações, dos incidentes ou dos recursos.
(...)
O artigo 18.º dispunha:
(...)
2. Nas apelações, revistas e agravos de decisões proferidas em quaisquer ações ou incidentes, sem prejuízo do disposto no artigo 16.º, a taxa de justiça é de metade da constante na tabela.
(...)
4. Nos agravos de decisões interlocutórias que subam juntamente com outro recurso, a taxa de justiça é de um oitavo da fixada na tabela.
Na tabela anexa constava:
“Para além de 10 000 contos: por cada 1000 contos ou fração: 10 contos de taxa de justiça.”.
Face ao constante da tabela anexa, o valor das custas dependia do valor da causa, não havendo qualquer limite máximo para as mesmas.
*
Dispõe o art.º 20º n.º 1 que a todos é assegurado o acesso ao Direito e aos tribunais para a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
E o n.º 2 do art.º 18º dispõe que a lei só pode restringir os direitos liberdade e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Quanto ao princípio constitucional da proporcionalidade (também chamado principio da proibição de excesso) desdobra-se em três subprincípios: a) o princípio da adequação, isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionais protegidos); b) princípio da exigibilidade, ou seja, as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias (tornarem-se exigíveis) porque os fins visados pela lei não podia, ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias; c) princípio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa “justa medida”, impedindo-se a adoção de medidas restritivas desproporcionadas, excessivas em relação aos fins obtidos – Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, 3ª edição, pág. 152.
Como ficou dito acima o ato de elaboração da conta tem em vista apurar os custos do processo, pois a justiça não é gratuita (tal entendimento vem sendo sufragado pelo TC, nomeadamente nos Ac.s n.ºs 307/90, 467/91 e 214/00).
Mas não sendo gratuita, os respetivos custos deverão ser adequados, necessários e proporcionais, face à natureza e complexidade do processo e à atividade judicial desenvolvida, por forma a que a contrapartida pelo acesso aos tribunais não impeça ou restrinja de modo intolerável tal direito ao cidadão médio.
A este respeito considerou-se no Ac. do TC n.º 608/99, in DR, II, de 16 de Março de 2000, que na “área em questão” [matéria de custas judiciais], o princípio da proporcionalidade reveste, “pelo menos, três sentido: o de equilíbrio entre a consagração do direito de acesso ao direito e aos tribunais e os custos inerentes a tal exercício; o da responsabilização de cada parte pelas custas de acordo com a regra da causalidade, da sucumbência ou do proveito retirado da intervenção jurisdicional; e o do ajustamento dos quantitativos globais das custas a determinados critérios relacionados com o valor do processo, com a respetiva tramitação, com a maior ou menor complexidade da causa e até com os comportamentos das partes”.
Ora, estabelecendo-se na tabela anexa ao CCJ que “Para além de 10 000 contos: por cada 1000 contos ou fração: 10 contos de taxa de justiça, sem qualquer limite, pode, no caso concreto, determinar uma violação do referido princípio.
E foi o que sucedeu no Ac. do TC n.º 227/07 de 28/03/2007, consultável in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos, pelo referido número (neste processo estava em causa um procedimento cautelar, em que o valor das custas era de € 584.403,82) e em que se decidiu:
Julgar inconstitucional, por violação do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da Constituição, conjugado com o princípio da proporcionalidade, decorrente dos artigos 2.º e 18.º, n.º 2 segunda parte, da mesma Constituição, a norma que resulta dos artigos 13.º, n.º 1, e tabela anexa, 15.º, n.º 1, alínea m), e 18.º, n.º 2, todos do Código das Custas Judiciais, na versão de 1996, na interpretação segundo a qual o montante da taxa de justiça devida em procedimentos cautelares e recursos neles interpostos, cujo valor excede 49. 879, 79 €, é definido em função do valor da ação sem qualquer limite máximo ao montante das custas, e na medida em que se não permite ao tribunal que limite o montante de taxa de justiça devido no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a natureza e complexidade do processo e o carácter manifestamente desproporcionado do montante em questão.
Entendimento que veio a ser seguido nos Ac.s do mesmo Tribunal Constitucional n.ºs 471/07 de 25/09/2007 e Ac. 266/2010, de 29/06/2010, consultáveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos, pelo referido número.
Aliás o legislador do DL 324/2003, de 27 de Dezembro, terá tido a perceção de que a indexação ilimitada e automática da taxa de justiça ao valor da causa, sem consideração da maior ou menor complexidade da mesma, poderia gerar situações em que as custas atingiriam montantes desproporcionais aos serviços de justiça, afrontando o principio constitucional da proibição de excesso, afirmando no Preambulo (2º parágrafo do ponto 7) do citado diploma:
“Por outro lado, tendo em conta que, atualmente, dois processos de igual valor, mas de complexidade e carga de trabalho totalmente diferentes, são, em regra, tributados pelo mesmo valor, consagra-se a faculdade de o juiz isentar do pagamento de taxa de justiça (...) nas ações de maior valor, designadamente quando o trabalho exigido ao tribunal e a complexidade das questões a ele submetidas sejam de menor monta.”.
E em face disso, dispôs no n.º 2 do art.º 27º do CCJ que no ato de contagem deve ser considerado o valor da taxa de justiça correspondente ao valor da causa para efeitos de custas e no n.º 3 do mesmo preceito que, se a especificidade da situação o justificar, pode o juiz, de forma fundamentada e atendendo, designadamente, á complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento do remanescente”.
*
Mas permitiu-se que o juiz o faça “de forma fundamentada”.
Apesar de tal exigência, para além de uma referência vaga e genérica “à complexidade da causa e á conduta processual das partes” o legislador nada mais estabeleceu que servisse de orientação ao tribunal na sua tarefa, não estabelecendo critérios para a definição da complexidade da causa (rectius, da não complexidade da causa” nem critérios para a definição das condutas processuais relevantes.
*
O DL 34/2008, de 26.02. veio densificar a referida complexidade da causa no novo art.º 447º A n.º 7 do CPC, o qual tem o seguinte teor:
“Para efeitos de condenação no pagamento de taxa de justiça, consideram-se de especial complexidade as ações que:
a) Digam respeito a questões de elevada especialização jurídica, especificidade técnica ou importem a análise combinada de questões jurídicas de âmbito muito diverso; e
b) Impliquem a audição de um elevado número de testemunhas, a análise de meios de prova extremamente complexos ou a realização de várias diligências de produção de prova morosas.”
Por outro lado, no Preâmbulo do citado diploma (8º parágrafo a contar do final) consta:
«A taxa de justiça é, agora com mais clareza, o valor que cada interveniente deve prestar, por cada processo, como contrapartida pela prestação de um serviço.
De um modo geral, procurou também adequar-se o valor da taxa de justiça ao tipo de processo em causa e aos custos que, em concreto, cada processo acarreta para o sistema judicial, numa filosofia de justiça distributiva à qual não deve ser imune o sistema de custas processuais, enquanto modelo de financiamento dos tribunais e de repercussão dos custos da justiça nos respetivos utilizadores.
De acordo com as novas tabelas, o valor da taxa de justiça não é fixado com base numa mera correspondência face ao valor da ação. Constatou-se que o valor da ação não é um elemento decisivo na ponderação da complexidade do processo e na geração de custos para o sistema judicial. Pelo que, procurando um aperfeiçoamento da correspetividade da taxa de justiça, estabelece-se agora um sistema misto que assenta no valor da ação, até um certo limite máximo, e na possibilidade de correção da taxa de justiça quando se trate de processos especialmente complexos, Independentemente do valor económico atribuído à causa.
Deste modo, quando se trate de processos especiais, procedimentos cautelares ou outro tipo de incidentes, o valor da taxa de justiça deixa de fixar-se em função do valor da ação, passando a adequar-se à efetiva complexidade do procedimento respetivo”.
*
No caso dos autos estão em crise o recurso de apelação interposto do despacho saneador de fls. 847-851 que absolveu os RR. da instância e o recurso de agravo do despacho que não admitiu os pedidos reconvencionais deduzidos pelas 2ª e 4ª a 9ª RR.
Relativamente ao recurso de apelação constata-se que a atividade do tribunal se centrou no despacho saneador de fls. 847-851 e no acórdão de fls. 1160-1171.
Quanto ao recurso de agravo, a atividade do tribunal centrou-se no despacho de fls. 1186 e no acórdão de fls. 3651-3754, mas que apesar da sua extensão não apreciou o recurso de agravo interposto pelos RR., tendo-o considerado prejudicado face à improcedência do recurso de apelação interposto pela A.
Neste conspecto, é manifesto concluir que existe uma manifesta desproporcionalidade entre o valor tributário / taxa de justiça dos referidos recursos – no que respeita à apelação, mesmo considerando aqui, já não o valor constante da conta, mas o valor que ali deveria ter constado - € 15.548.417,32 – determinante de uma taxa de justiça (e só esta), após aplicação da redução do art.º 18º n.º 2 do CCJ, de € 77.854,64; no que respeita ao agravo, um valor tributário de € 29.938.975,09 e uma taxa de justiça, com a redução do art.º 18º n.º 4 do CCJ, de € 37.452,09 – face à natureza e complexidade das questões suscitadas e á atividade judicial desenvolvida, sobretudo no caso do agravo, que nem sequer foi objeto de qualquer apreciação de mérito, levando a que não exista uma justa medida entre a taxa de justiça e o serviço prestado (mesmo considerando que neste deve incluir-se o montante da comparticipação nos custos globais do sistema de justiça) determinando assim a violação do principio da proporcionalidade.
Destarte, a norma que resulta dos artigos 13.º, n.º 1, e tabela anexa, e 18.º, n.ºs 2 e 4, todos do Código das Custas Judiciais, na versão de 1996, que prevê a fixação da taxa de justiça nos recursos, cujo valor excede € 49.879,79, em proporção ao valor da ação sem qualquer limite máximo ao montante das custas, é inconstitucional, por violação do direito de acesso aos tribunais (art.º 20º da CRP), conjugado com o principio da proporcionalidade (art.º 18º n.º 2, 2ª parte da CRP), mas apenas na medida em que tal norma não permite ao tribunal que limite o montante da taxa de justiça devido no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a natureza e complexidade do processo e o carácter manifestamente desproporcionado do montante em questão.
E julgada inconstitucional a referida norma, manda o art.º 204º da CRP seja recusada a sua aplicação, o que se decide».
3. Notificado para alegar, o recorrente concluiu pela confirmação da decisão recorrida, alegando, entre o mais, o seguinte:
«21º
Vejamos, então, as conclusões que se poderão retirar da jurisprudência, deste Tribunal Constitucional, citada ao longo das presentes alegações, tendo em vista concluir pela apresentação de uma solução para o recurso em apreciação.
Ora, crê-se que tais conclusões serão, fundamentalmente, as seguintes:
(…)
e) no que respeita à “taxa de justiça”, o Tribunal Constitucional tem considerado que se trata de uma verdadeira taxa e não de um imposto, encontrando-se, na sua origem, a prestação do serviço de administração da justiça, que apenas pode ser prestado pelo Estado (dado o monopólio público do uso da força);
f) o legislador nacional dispõe de uma larga margem de liberdade de conformação em matéria de definição do montante das taxas de justiça;
g) essa liberdade não implica, porém, que as normas definidoras dos critérios de cálculo sejam imunes a um controlo de constitucionalidade, quer no que toca à sua aferição segundo regras de proporcionalidade, decorrentes do princípio do Estado de Direito (artigo 2.º da Constituição), quer no que respeita à sua apreciação à luz da tutela constitucional do direito de acesso à justiça (artigo 20.º da Constituição);
h) a fixação das custas, em proporção direta ao valor da causa, sem qualquer limite máximo, pode conduzir a situações em que tal taxa se revele manifestamente desproporcionada ao custo do serviço ou à utilidade tirada do meio judicial empregue, pelo que ficará posta em causa a relação de correspondência entre o serviço e o tributo, o qual, assim, dificilmente poderá ser qualificado como verdadeira taxa;
i) o que está em causa, nesta dimensão normativa, não é tanto – ou não é apenas – a bondade constitucional do critério elegido para a fixação das custas em função do valor da causa, mas, tendo em conta os demais elementos do critério de tributação, ou seja, os concretos escalões quantitativos fixados e o modo como operam, a ausência de qualquer limite máximo para o valor da causa, e, consequentemente, para os resultados da aplicação daquele critério na determinação do valor da tributação em custas, independentemente da complexidade do processo, ou, mesmo, da sua concreta e efetiva utilidade para o recorrente;
j) por outras palavras, a aplicação de um tal critério poderá conduzir a que, a partir de um certo limite, não possa o montante de taxa devida encontrar justificação seja no princípio da equivalência, seja no princípio da cobertura de custos;
l) ora, havendo uma “desproporção intolerável” entre “o montante do tributo e o custo do serviço prestado”, justamente por ser manifestamente exorbitante o valor calculado em função da mesma norma, ocorrerá também uma violação evidente do direito de acesso ao direito e aos tribunais;
m) o direito de acesso aos tribunais não compreende um direito a litigar gratuitamente, pois não existe um princípio constitucional de gratuitidade no acesso à justiça, podendo, pois, o legislador fixar o montante das custas com grande liberdade e exigir o respetivo pagamento sem que, com isso, esteja necessariamente a restringir o direito de acesso aos tribunais;
n) essa liberdade constitutiva do legislador tem, no entanto, um limite – limite, esse, que é o de a justiça ser realmente acessível à generalidade dos cidadãos, sem terem que recorrer ao sistema de apoio judiciário;
o) ou seja, assegurar a garantia do acesso aos tribunais, subentende uma programação racional e constitucionalmente adequada dos custos da justiça, não podendo o legislador adotar soluções, de tal modo onerosas, que impeçam o cidadão médio de aceder à justiça;
p) nessa medida, quando o valor da causa se revele manifestamente excessivo e desproporcionado, por as custas judiciais serem fixadas em proporção ao valor da causa, sem qualquer limite máximo ao respetivo montante, estar-se-á perante uma situação de inconstitucionalidade material, por violação do direito de acesso aos tribunais, conjugado com o princípio da proporcionalidade, na medida em que tal norma não permite, ao tribunal, limitar o montante de taxa de justiça devido no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a natureza e complexidade do processo e o carácter manifestamente desproporcionado do montante em questão;
q) por outras palavras, a liberdade de definição do montante das taxas tem, como limite superior, o princípio constitucional estruturante da proibição do excesso, corolário do Estado de direito democrático (artº 2.º, da C.R.P.), o qual impede a fixação de valores manifestamente desproporcionados ao serviço prestado, ou à complexidade do processo, o que, a suceder, poria em causa a própria equivalência jurídica das prestações e o direito fundamental, dos cidadãos, de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos (artº 20.º, nº 1, da C.R.P.);
r) a lei não pode adotar soluções de tal modo onerosas que, na prática, impeçam o cidadão médio de aceder à justiça; ou seja, salvaguardada a proteção jurídica para os mais carenciados, as custas não devem ser incomportáveis em face da capacidade contributiva do cidadão médio, não sendo constitucionalmente admissível a adoção de soluções em matéria de custas que, designadamente nos casos de maior incerteza sobre o resultado do processo, inibam os interessados de aceder à justiça;
s) o Tribunal Constitucional, apesar de lhe não caber aferir qual o concreto patamar em que se situa o limite em que a prestação pública se desliga dos custos da respetiva atividade, ou em que o cidadão fica inibido de recorrer aos tribunais, por força do valor das custas, deve, contudo, velar pelo respeito pelos referidos parâmetros constitucionais, perante o concreto valor das taxas cobrada num determinado processo, como resultado da aplicação da tabela legal, segundo o princípio do controlo da evidência;
t) contudo, a potencialidade de um critério gerar valores desproporcionados de custas, por não acolhimento de factores que os teriam evitado, só releva, quando essa potencialidade, em face das circunstâncias do caso e do montante concretamente apurado, se tenha concretizado, ou seja, a ausência de previsão desses fatores corretivos só releva quando eles, no caso em apreciação, teriam atuado restritivamente, reconduzindo o valor pecuniário a prestar aos limites da proporcionalidade, que, de outro modo, resulta violada;
u) por outras palavras, se a prestação exigida, a título de custas, tiver atingido valores elevados, pouco comuns, mas, em contrapartida, o serviço fornecido tiver envolvido meios e acarretado, necessariamente, custos que ultrapassaram o padrão mais habitual do funcionamento judiciário e do processamento dos autos, a correspetividade material entre as duas prestações poderá não se mostrar manifestamente desvirtuada, com a consequência de os limites da taxação, resultantes da estrutura bilateral das taxas, poderem não ter sido desrespeitados».
5. Os recorridos não responderam.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. Constitui objeto do presente recurso a norma que resulta dos artigos 13º, n.º 1, e tabela anexa e 18.º, n.º 2, do Código das Custas Judiciais, na versão de 1996, na interpretação segundo a qual o montante de taxa de justiça devida em recurso de apelação, cujo valor excede 49.879,79, é definido em função do valor sem qualquer limite máximo ao montante das custas, e na medida em que se não permite ao tribunal que limite o montante da taxa de justiça devido no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a natureza e complexidade do processo e o carácter manifestamente desproporcionado do montante em questão. Bem como a norma que resulta dos artigos 13º, n.º 1, e tabela anexa e 18.º, n.º 4, do Código das Custas Judiciais, na versão de 1996, na interpretação segundo a qual o montante de taxa de justiça devida em recurso de agravo de decisão interlocutória que suba juntamente com outro recurso, cujo valor excede 49.879,79, é definido em função do valor sem qualquer limite máximo ao montante das custas, e na medida em que se não permite ao tribunal que limite o montante da taxa de justiça devido no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a natureza e complexidade do processo e o carácter manifestamente desproporcionado do montante em questão.
Aquelas disposições legais têm a seguinte redação:
Artigo 13.º
Base de cálculo da taxa de justiça
1 – Sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, a taxa de justiça é a constante da tabela anexa, sendo calculada sobre o valor das ações, dos incidentes ou dos recursos;
2 – (…);
De acordo com a tabela anexa «para além de 10 000 contos: por cada 1000 contos ou fração, 10 contos de taxa de justiça»;
Artigo 18.º
Base de cálculo da taxa de justiça
1 – (…)
2 – Nas apelações, revistas e agravos de decisões proferidas em quaisquer ações ou incidentes, sem prejuízo do disposto no artigo 16.º, a taxa de justiça é de metade da constante na tabela.
3 – (…)
4 – Nos agravos de decisões interlocutórias que subam juntamente com outro recurso, a taxa de justiça é de um oitavo da fixada na tabela.
5 – (…)».
O tribunal recorrido recusou a aplicação das normas, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do direito de acesso aos tribunais (artigo 20.º da Constituição), conjugado com o princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, 2.ª parte da Constituição).
2. O Tribunal Constitucional já apreciou a questão de constitucionalidade posta nos presentes autos, tendo decidido no sentido inconstitucionalidade (Acórdãos n.ºs 227/2007, 471/2007, 116/2008 e 266/2010, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt. O primeiro e o terceiro no âmbito de procedimentos cautelares e recursos neles interpostos; o segundo, em matéria de incidente de apoio judiciário e recurso; e o último, relativamente a recurso de agravo de despacho interlocutório).
Lê-se no Acórdão n.º 227/2007 o seguinte:
«10. Quanto à conformidade da interpretação normativa em apreço com a garantia do acesso aos tribunais, consagrada no artigo 20.º da Constituição, não pode deixar de concordar-se com a decisão recorrida, quando chega a um resultado de inconstitucionalidade.
Como este Tribunal afirmou no Acórdão n.º 352/91 (publicado no Diário da República, II Série, de 17 de Dezembro de 1991):
«[…]
O direito de acesso aos tribunais não compreende [...] um direito a litigar gratuitamente, pois [...] não existe um princípio constitucional de gratuitidade no acesso à justiça (cfr., neste sentido, também o Acórdão n.º 307/90, Diário da República, 2ª Série, de 4 de Março de 1991).
O legislador pode, assim, exigir o pagamento de custas judiciais, sem que, com isso, esteja a restringir o direito de acesso aos tribunais. E, na fixação do montante das custas, goza ele de grande liberdade, pois é a si que cabe optar por uma justiça mais cara ou mais barata.
Essa liberdade constitutiva do legislador tem, no entanto, um limite – limite que é o de a justiça ser realmente acessível à generalidade dos cidadãos sem terem que recorrer ao sistema de apoio judiciário.
É que o nosso ordenamento jurídico concebe o sistema de apoio judiciário como algo que apenas visa garantir o acesso aos tribunais aos economicamente carenciados, e não como um instrumento ao serviço também das pessoas de médios rendimentos (salvo, naturalmente, se estas houverem de intervir em ações de muito elevado valor).
Na fixação das custas judiciais, há de, pois, o legislador ter sempre na devida conta o nível geral dos rendimentos dos cidadãos de modo a não tornar incomportável para o comum das pessoas o custeio de uma demanda judicial, pois se tal suceder, se o acesso aos tribunais se tornar insuportável ou especialmente gravoso, violar-se-á o direito em causa.
[…].»
E acrescentou-se, mais adiante, no mesmo aresto:
«[…]
Como todas as decisões legislativas, as decisões que o legislador toma em matéria de custas no que concerne ao quantum delas, são, obviamente, sindicáveis sub specie constitucionis. Mas, ao menos em geral, (...) tais decisões só haverão de ser taxadas de constitucionalmente ilegítimas quando inviabilizem ou tornem particularmente oneroso o acesso aos tribunais para o cidadão médio.»
Esta ideia foi também reiterada no Acórdão n.º 467/91 (publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Abril de 1992), onde se afirmou:
«[…] esse espaço de conformação [o espaço de conformação do legislador em matéria de custas] tem os limites que são dados pela irredutível dimensão de defesa da tutela jurisdicional dos direitos, postulando soluções legislativas que assegurem um acesso igual e efetivo aos tribunais. Então, o princípio da proporcionalidade vem aqui «alicerçar um controlo jurídico-constitucional da liberdade de conformação do legislador e situar constitucionalmente o espaço de prognose legislativa» (J. J. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra 1982, p. 274).
O asseguramento da garantia do acesso aos tribunais subentende uma programação racional e constitucionalmente adequada dos custos da justiça: o legislador não pode adotar soluções de tal modo onerosas que impeçam o cidadão médio de aceder à justiça.
[…].»
De acordo com o que se considerou no Acórdão n.º 608/99 (publicado no Diário da República, II Série, de 16 de Março de 2000), “na área em questão” [matéria de custas judiciais], o princípio da proporcionalidade reveste, “pelo menos, três sentidos: o de «equilíbrio entre a consagração do direito de acesso ao direito e aos tribunais e os custos inerentes a tal exercício»; o da responsabilização de cada parte pelas custas «de acordo com a regra da causalidade, da sucumbência ou do proveito retirado da intervenção jurisdicional»; e o do ajustamento dos «quantitativos globais das custas a determinados critérios relacionados com o valor do processo, com a respetiva tramitação, com a maior ou menor complexidade da causa e até com os comportamentos das partes»”.
Ora, afigura-se claro que a interpretação normativa segundo a qual o montante da taxa de justiça devida em procedimentos cautelares e recursos neles interpostos cujo valor excede 49.879,79 € é definido em função do valor da ação sem qualquer limite máximo, e da qual resultaria, no caso, um montante de custas de € 584.403,82, não se situa logo dentro de limites razoáveis, e antes comporta uma restrição desproporcionada ao direito de acesso aos tribunais.
Com efeito, a ponderação de meios e fins a que este Tribunal é conduzido não pode deixar de ter presente o quantitativo concreto da taxa de justiça exigida às ora recorridas – que era, repete-se, de € 584.403,82 –, originando um débito de custas muito superior aos custos da prestação do serviço de administração da justiça (incluindo o montante da comparticipação nos custos globais do sistema de justiça), dada, também, a circunstância de se estar ainda no âmbito de um processo cautelar, de índole provisória, decidido com base numa apreciação perfunctória e sumária da necessidade da providência.
Em tal procedimento cautelar, não se vê, aliás, como poderia a invocação de uma hipotética utilidade da prestação do serviço que fosse proporcionada aos prejuízos sofridos – e ao valor da causa – prevalecer sobre o interesse das ora recorridas em acautelar esse ressarcimento, em termos de legitimar um montante de custas de € 584.403,82, que, não só tomando como paradigma “a capacidade contributiva do cidadão médio” (Acórdão n.º 248/94, Diário da República, II Série, de 26 de Julho de 1994) como mesmo considerando a dimensão económica das requerentes, constitui uma barreira significativa ao acesso aos tribunais. Não se trata, pois, apenas da relevância de um “juízo empírico” (a que se refere o Ministério Público) sobre o montante excessivo das custas, mas, antes, de considerar os efeitos que um (previsível) débito de tal montante, pela fixação das custas em função do valor da causa e sem qualquer limite máximo, realmente produz sobre o direito de acesso aos tribunais, sem que se permita ao tribunal que limite o montante de taxa de justiça devido no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a natureza e complexidade do processo e o carácter manifestamente desproporcionado do montante em questão. O que conduz à conclusão de que está, aqui, ultrapassado já o limiar do mero “mau direito”, para se verificar uma verdadeira restrição, para além da “justa medida”, daquele direito fundamental constitucionalmente consagrado».
Esta fundamentação é transponível para os presentes autos. As normas que integram o objeto do presente recurso preveem a fixação da taxa de justiça devida em recurso de apelação e em recurso de agravo de decisão interlocutória que suba juntamente com outro recurso, cujo valor exceda 49.879,79 €, em proporção deste valor sem qualquer limite máximo – para além de 49.879,79 €, por cada 4.987,98 € ou fração, acresce 49,88 € de taxa de justiça. Não permitem ao tribunal que limite o montante da taxa de justiça devido no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a natureza e complexidade do processo e o carácter manifestamente desproporcionado do montante em questão. É significativa a seguinte passagem da decisão recorrida:
«Relativamente ao recurso de apelação constata-se que a atividade do tribunal se centrou no despacho saneador de fls. 847-851 e no acórdão de fls. 1160-1171.
Quanto ao recurso de agravo, a atividade do tribunal centrou-se no despacho de fls. 1186 e no acórdão de fls. 3651-3754, mas que apesar da sua extensão não apreciou o recurso de agravo interposto pelos RR., tendo-o considerado prejudicado face à improcedência do recurso de apelação interposto pela A.
Neste conspecto, é manifesto concluir que existe uma manifesta desproporcionalidade entre o valor tributário / taxa de justiça dos referidos recursos – no que respeita à apelação, mesmo considerando aqui, já não o valor constante da conta, mas o valor que ali deveria ter constado - € 15.548.417,32 – determinante de uma taxa de justiça (e só esta), após aplicação da redução do art.º 18º n.º 2 do CCJ, de € 77.854,64; no que respeita ao agravo, um valor tributário de € 29.938.975,09 e uma taxa de justiça, com a redução do art.º 18º n.º 4 do CCJ, de € 37.452,09 – face à natureza e complexidade das questões suscitadas e á atividade judicial desenvolvida, sobretudo no caso do agravo, que nem sequer foi objeto de qualquer apreciação de mérito, levando a que não exista uma justa medida entre a taxa de justiça e o serviço prestado (mesmo considerando que neste deve incluir-se o montante da comparticipação nos custos globais do sistema de justiça) determinando assim a violação do principio da proporcionalidade».
É de concluir, pois, que as normas que são objeto do presente recurso são inconstitucionais, por violação do direito de acesso aos tribunais (artigo 20.º, n.º 1, da Constituição), conjugado com o princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, segunda parte da Constituição).
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma que resulta dos artigos 13.º, n.º 1, e tabela anexa e 18.º, n.º 2, do Código das Custas Judiciais, na versão de 1996, na interpretação segundo a qual o montante de taxa de justiça devida em recurso de apelação, cujo valor excede 49.879,79, é definido em função do valor sem qualquer limite máximo ao montante das custas, e na medida em que se não permite ao tribunal que limite o montante da taxa de justiça devido no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a natureza e complexidade do processo e o carácter manifestamente desproporcionado do montante em questão, por violação do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, conjugado com o princípio da proporcionalidade, decorrente do artigo 18.º, n.º 2, segunda parte, da Constituição;
b) Julgar inconstitucional a norma que resulta dos artigos 13.º, n.º 1, e tabela anexa e 18.º, n.º 4, do Código das Custas Judiciais, na versão de 1996, na interpretação segundo a qual o montante de taxa de justiça devida em recurso de agravo de decisão interlocutória que suba juntamente com outro recurso, cujo valor excede 49.879,79, é definido em função do valor sem qualquer limite máximo ao montante das custas, e na medida em que se não permite ao tribunal que limite o montante da taxa de justiça devido no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a natureza e complexidade do processo e o carácter manifestamente desproporcionado do montante em questão, por violação do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, conjugado com o princípio da proporcionalidade, decorrente do artigo 18.º, n.º 2, segunda parte, da Constituição;
c) Negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 24 de Setembro de 2013. – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro.