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Processo n.º 394/03
2ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam em conferência na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A. Relatório
1. Em 17 de Junho de 2003, foi proferida nos presentes autos a seguinte decisão sumária de não conhecimento do recurso de constitucionalidade interposto, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, por A.:
«A., com os demais sinais dos autos, recorre, ao abrigo do disposto no art.º
70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão
(doravante designada apenas por LTC), para este Tribunal Constitucional do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 04 de Dezembro de 2002, pretendendo que ele aprecie a inconstitucionalidade da norma constante do art.º
669º, n.º 2, do Código de Processo Civil (doravante designado por CPC) por violação do disposto nos art.os 2º, 3º, n.º 2, e 204º da Constituição da República Portuguesa (de ora em diante identificada por CRP).
O Acórdão recorrido foi proferido no incidente de reclamação a que alude o art.º 111º, n.º 2, da LPTA (DL. n.º 267/85, de 16 de Julho), confirmando o despacho do Relator daquele Supremo Tribunal, de 04 de Dezembro de 2002, com base nas mesmas razões expressadas nesta última decisão e, ainda, na de que o mesmo aresto não violava, como se apodava, os art.os 2º, 3º, n.º 2, e 204º da CRP, como melhor se precisará abaixo. Este despacho, por sua vez, indeferira o pedido de reforma, formulado pelo ora recorrente, do despacho do mesmo Relator, de 05 de Junho de 2002, com fundamento na consideração de que o meio processual previsto no art.º 669º, n.º 2, do CPC não era aplicável aos processos iniciados antes da entrada em vigor da reforma do CPC de 1995 (01.01.1997 – art.º 16º do DL. n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro), por virtude do disposto nos art.os 16º e
25º deste mesmo DL. n.º 329-A/95.
Por seu lado, o despacho de 5 de Junho de 2002 decidiu, - no pressuposto de que havia transitado em julgado a sentença do Tribunal Administrativo do Círculo do Porto que indeferiu um pedido de suspensão de eficácia apresentado pelo mesmo recorrente de um despacho do Bastonário da Ordem dos Advogados que determinou a suspensão da sua inscrição como advogado por falta de pagamento de quotas -, ordenar a sua notificação para constituir advogado, no prazo de 15 dias, sob a cominação do não seguimento do recurso, de acordo com o preceituado no art.º 33º do CPC.
Na aludida reclamação para a conferência que prolatou o Acórdão recorrido, o ora recorrente apodou o despacho reclamado de nulo por excesso de pronúncia
(art.º 668º, n.º 1 , alínea d), do CPC) e de errado por não ter acatado as normas dos art.os 2º, 3º, n.º 2, e 204º da CRP.
O Acórdão recorrido pronunciou-se pela não aplicação do art.º 669º, n.º 2, do CPC aos presentes autos, nos termos já referidos, e, conhecendo da imputada inconstitucionalidade, discreteou pelo modo seguinte:
«O reclamante refere ainda que o despacho reclamado não acata os art.os 2º,
3º, n.º 2, e 204º da CRP.
Estas normas estabelecem o seguinte:
(Segue-se a transcrição dos normativos constitucionais)
O reclamante não explicita em que se consubstancia o não acatamento destas normas.
O que delas emana é a sujeição dos tribunais à lei e, no caso em apreço, como se referiu, o despacho reclamado limitou-se a aplicar a lei, tal como a interpretou.
Por isso, não se vislumbra violação de qualquer destas normas constitucionais».
No seu requerimento de interposição de recurso para este Tribunal Constitucional alega o ora recorrente o seguinte:
«1. Na minha reclamação CPC, art.º 700º, n.º 3, de 31.12.2002, suscitei notoriamente inconstitucional recusada aplicação CPC, art.º 669º, n.º 2.
2. Aliás, recusa por manifesto erro de interpretação, sem correspondência verbal mínima na letra do actual Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12/12.
3. Cujos art.os 16º e 25º evidentemente sancionam a aplicação do CPC, art.º
669º, 2, a todas as decisões proferidas após 1.1.97.
4. Todavia, erradas interpretação e aplicação aquelas mantidas pelo seguido Ac. de V.ªs Ex.ªs, de 26.02.2003.
5. Donde e apodicticamente, as quais também manifestamente pelo menos violam a CRP, art.os 2º, 3º, n.º 2, e 204º.
6. Seja, ofendem o Estado de direito democrático cujos tribunais outrossim se subordinam à Constituição e à lei».
Como resulta do exposto, o ora recorrente interpôs recurso de fiscalização concreta de inconstitucionalidade da norma do art.º 669º, n.º 2, do CPC, ao abrigo do disposto no art.º 70º, n.º 1, alínea b), da LTC.
Ora, como vem sendo constantemente reafirmado pela jurisprudência deste Tribunal Constitucional, resulta desse preceito - normatividade que subjaz também ao disposto no art.º 75.º-A n.os 1 e 2 da mesma LTC - que o recurso aí previsto tem por objecto norma que haja sido efectivamente aplicada na decisão recorrida e que a inconstitucionalidade dessa mesma norma haja sido suscitada de modo funcionalmente adequado durante o processo.
Mesmo aceitando, sem questionar a bondade do entendimento, que a dedução da inconstitucionalidade da norma apenas na reclamação para a conferência ao abrigo do disposto no art.º 111º, n.º 2 da LPTA (preceito correspondente ao do art.º
700º, n.º 3, do CPC) ocorre, ainda, num momento processualmente adequado, com base numa presumida excepcionalidade ou anormalidade da interpretação do art.º
669º, n.º 2, do CPC que veio a ser seguida pelo Tribunal - e que esse momento não se situa, assim, a montante a quando da apresentação do pedido de reforma da decisão que veio a ser conhecido em primeiro lugar pelo Relator do processo, naquele Supremo Tribunal - sempre terá de concluir-se que o recurso não pode ser conhecido.
Em primeiro lugar, porque, como se diz no próprio Acórdão recorrido, o recorrente imputa a violação dos art.os 2º, 3º, n.º 2, e 204º da CRP ao despacho reclamado para a conferência e não às normas que o mesmo aplicou.
Ora, o Tribunal Constitucional apenas pode conhecer da inconstitucionalidade de normas e não de decisões judiciais, dado não vigorar entre nós a figura do
“recurso de amparo” contra decisões dos outros tribunais (art.º 280º da CRP e
70º da LTC).
Depois, porque, mesmo que se admitisse que o recorrente havia questionado a inconstitucionalidade da norma do art.º 669º, n.º 2, do CPC, na sua reclamação para a conferência, como sustenta no seu requerimento de interposição do recurso para este Tribunal Constitucional, sempre haveria de tomar-se em conta que o Acórdão recorrido concluiu pela não aplicação de tal norma.
Não estaríamos, assim, perante uma decisão que houvesse feito efectiva aplicação da norma apodada de inconstitucional.
Note-se, aliás, que a posição do próprio recorrente é a de que tal norma não foi aplicada, mas que o deveria ter sido.
Pois bem. Para fundamentar uma pretensão como a do ora recorrente , tal como a mesma se intui dos seus articulados, no sentido de que o art.º 669º, n.º 2, do CPC deveria aplicar-se também aos processos iniciados antes de 1.1.1997, espécie em que se incluiriam os presentes autos, só lhe restava o caminho de suscitar, antes, a inconstitucionalidade dos art.os 16º e 25º do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, na interpretação feita pela decisão recorrida, por violação dos preceitos constitucionais que entendesse pertinentes, - o que não fez -, ou seja, com o sentido que lhes foi dado de não preverem a aplicação do meio processual referido no art.º 669º, n.º 2, do CPC aos processos que se iniciaram antes de 1.1. 97 – data da entrada em vigor da reforma de 95 (art.º 16º do DL. n.º 329-A/95, na redacção dada pelo DL. n.º 180/96, de 25 de Setembro).
Deste modo conclui-se que não se verificam os aludidos pressupostos de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta de inconstitucionalidade.
Importa anotar, ainda, que a decisão que admitiu o recurso para este Tribunal Constitucional não o vincula, como se estatui no art.º 76º, n.º 3, da LTC.
Deste modo, decido não tomar conhecimento do recurso».
2. Inconformado com tal decisão sumária, o recorrente vem agora, ao abrigo ao disposto no artigo 78.º-A, n.os 3 e 4, da LTC, reclamar para a conferência, fazendo-o com a seguinte motivação:
«1. aquele despacho, de 17.6.2003, sumariamente decide não [me] conhecer o recurso de inconstitucionalidade interposto, porque o Ac. STA, de 26.2.2003, concluísse:
1.1. Eu ter imputado a violação da CRP., artºs 2.º, 3.º, 2, e 204.º, ao despacho de 4.12.2002 e não às normas que o mesmo aplicasse.
1.2. Sequer efectivamente o despacho de 4.12.2002 não aplicara a norma do CPC., artº 669.º, 2, cuja inconstitucionalidade eu pudesse ter arguido.
2. Mas, ao recusar aplicar o CPC., artº 669.º, 2, o que o despacho, de
4.12.2002, precisa e efectivamente fez foi tê-lo aplicado negativamente:
2.1. O “n.º 2 do art. 669.º (do CPC.) não é aplicável ao presente processo; termos em que indefiro o pedido de reforma” (cfr.: despacho de
4.12.2002, “in fine”).
3. Tanto, sobre cuja inconstitucional interpretação e aplicação do CPC., artº 669.º, 2, requeri incidisse o Ac. (da Conferência) STA., de
26.2.2003:
3.1. Pois: “o despacho, de 4.12.2002, na interpretação e aplicação temporal do CPC., artº 669.º, 2, não acata a CRP., artºs 2.º, 3.º, 2, e 204.º”
(cfr.: aquele req., n.ºs 7. e 7.1.).
4. Donde: Ac. STA., de 26.2.2003, cuja inconstitucional interpretação e aplicação “ratione tempore” do CPC., artº 669º, 2, peço e deve conhecer-se».
3. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal, notificado de tal reclamação, respondeu nos seguintes termos:
“1º. A presente reclamação – aliás, de conteúdo verdadeiramente inintelegível – em nada abala a douta decisão sumária proferida nos autos.
2º. Que, em consequência, deverá ser inteiramente confirmada”.
Cumpre, pois, decidir.
B. Fundamentação
4. Adianta-se desde já que a presente reclamação não logra abalar minimamente os fundamentos em que se sustentou a decisão sumária de não conhecimento de recurso, não acrescentando qualquer argumento válido susceptível de alterar o seu sentido.
No recurso de constitucionalidade previsto na alínea b), do nº 1, do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, procede-se à apreciação da conformidade constitucional de normas aplicadas pela decisão recorrida, em termos de constituirem a sua ratio decidendi (e cuja inconstitucionalidade haja sido adequadamente suscitada durante o processo).
Daí resulta, como se afirmou no Acórdão n.º 186/99 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), que cabe ao Tribunal Constitucional “averiguar se o tribunal a quo procedeu ou não no caso concreto (trata-se de um recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade) à aplicação das normas impugnadas. Tal averiguação traduz-se numa tarefa interpretativa da decisão recorrida cujo resultado será um dos seguintes: ou a norma foi aplicada pela decisão impugnada ou não o foi. Se se concluir que a norma foi aplicada verifica-se o pressuposto processual do recurso interposto procedendo-se consequentemente à apreciação da conformidade à Constituição da norma (uma vez verificados os demais pressupostos processuais). Se a conclusão for negativa, falta o pressuposto processual consistente na aplicação pela decisão recorrida da norma impugnada não tomando o Tribunal nessa medida conhecimento do objecto do recurso, pois, faltando esse pressuposto processual, qualquer juízo do Tribunal Constitucional sobre a norma impugnada não teria a virtualidade de alterar a decisão recorrida dado aquela não ter sido a ratio decidendi desta”. Ora, o reclamante sustenta que “ao recusar aplicar o CPC., art. 669.º, 2, o que o despacho, de 4.12.2002, precisa e efectivamente fez foi tê-lo aplicado negativamente”. Importa, quanto à questão sub judicio, esclarecer, desde já, que apurar se uma determinada norma foi ou não aplicada pela decisão judicial envolve, como se compreenderá, o perscrutar dos fundamentos desse juízo de forma a poder concluir-se se ele louvou, ou não, a sua ratio decidendi na norma em questão
(cf., nesse sentido, o já mencionado Ac. 186/99 deste Tribunal: “com efeito verificar se uma decisão faz ou não aplicação de uma dada norma não consiste apenas na detecção de uma referência expressa a essa norma no texto da decisão implicando antes a demonstração material de que a decisão jurídica não teve por fundamento a norma em questão”). Ora, no caso dos autos – e como já se havia referido na decisão reclamada –, é manifesto que a decisão recorrida não aplicou o art. 669.º, n.º 2, do C.P.C.. De facto, o juízo de inaplicabilidade da referida norma não resulta de uma ponderação interpretativa relativa ao conteúdo desse artigo, outrossim da aplicação de outras normas jurídicas, designadamente, os arts. 16.º e 25.º do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, porquanto tal decisão acabou por concluir que o art. 669.º, n.º 2, do C.P.C., não seria aplicável aos processos iniciados antes de 1 de Janeiro de 1997. Daqui decorre que o juízo decisório recorrido não aplicou (“negativamente”) esse preceito como ratio decidendi, limitando-se a decidir com base em outros preceitos: considerou que a norma contida no artigo 669.º, n.º 2, do C.P.C., não podia ser aplicada nos presentes autos com fundamento nas regras relativas à aplicação da lei no tempo (cf., mutatis mutandis, o problema considerado no Ac. n.º 177/98 deste Tribunal). Por outro lado, não pode deixar de considerar-se, como se afirmou no Ac. TC n.º
78/99, que “o Tribunal Constitucional tem que respeitar os critérios utilizados pelo Tribunal a quo na determinação do direito aplicado e nesses critérios se incluem necessariamente os respeitantes à aplicação da lei no tempo. Só não terá que ser assim se esses critérios forem eles próprios objecto de uma questão de constitucionalidade formulada em termos idóneos no sentido de, sobre a questão, o Tribunal ter de se pronunciar”. Assim, como a questão da conformidade constitucional dos critérios que determinaram a não aplicação do artigo 669.º, n.º 2, do C.P.C. não foi equacionada, não tem o Tribunal Constitucional que a considerar.
C. Decisão
5. Pelos fundamentos expostos, decide-se desatender a presente reclamação e, consequentemente, confirmar a decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Custas pelo reclamante com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça, sem prejuízo da existência de apoio judiciário.
Lisboa, 26 de Setembro de 2003
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos