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Procº nº 185/2003.
3ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. Pelo Tribunal do Trabalho de Santa Maria da Feira impugnou o A., a coima de Esc. 1.500.000$00, que lhe foi aplicada por decisão tomada em 15 de Setembro de 2001 pelo Delegado de São João da Madeira da Inspecção Geral do Trabalho, por infracção do disposto no nº 2 do artº 10º do Decreto-Lei nº 421/93, de 2 de Dezembro, já que, pelas 17 horas e 45 minutos do dia 20 de Março de 2001, teria ao serviço, por sua conta e ordem, sob sua orientação e em seu proveito próprio, no seu estabelecimento sito na Rua
............., nº ......, em ........, quatro trabalhadores, executando tarefas próprias da sua categoria profissional, trabalhadores esses que não usufruíam de isenção de horário e, por isso, deveriam ter abandonado o seu posto de trabalho
às 16 horas e 30 minutos, sendo que no livro de registo de trabalho suplementar não existia qualquer preenchimento respeitante aos elementos respeitantes ao registo de horas de trabalho suplementar e de importâncias a pagar.
Tendo, por sentença proferida em 22 de Março de 2002 pelo Juiz daquele Tribunal, sido julgada improcedente a impugnação, da mesma recorreu o A., para o Tribunal da Relação do Porto.
Este Tribunal de 2ª instância, por acórdão de 25 de Novembro de 2002, concedeu provimento ao recurso.
Para assim decidir, recusou, por inconstitucionalidade, a aplicação do nº 2 do artº 10º do Decreto-Lei nº 421/93.
Pode, na verdade, ler-se nesse aresto:-
“............................................................................................................................................................................................................................................................... V
Da inconstitucionalidade do artº 10 nº 2 do D.L. 421/93 de 2.12.
Como já referido ao recorrente foi imputad[a] a falta de registo a) do total de horas de trabalho suplementar, realizadas nos meses anteriores ao mês de Março de 2001 e nesse mesmo mês e b) das importâncias a pagar.
Tal circunstancialismo integrará a situação prevista no artº 10 nº 2 do D.L. 421/83 de 2.12, com referência ao Despacho de 27.10.92 publicado no D.R. II série de 17.11.92?
Para se responder a tal questão importa analisar se o citado preceito legal é inconstitucional.
O D.L. 421/83 de 2.12, que veio definir o trabalho suplementar, surgiu na sequência da autorização concedida pela lei 13/83 de25.8.
Isto significa que tal matéria constitu[i] reserva relativa da competência da Assembleia da República, tendo o Parlamento autorizado o Governo a legislar sobre a mesma, mediante autorização legislativa, no caso, a lei
13/83.
E assim surge o D.L. 421/83 de 2.12, que tal como as leis são actos legislativos - artº 112º nº 1 e 2 C.R. Portuguesa - sendo certo que nos termos do nº 6 do citado artigo da lei Fundamental nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.
E se assim é há que perguntar: tendo a Assembleia da República concedido autorização ao Governo para regular e definir o trabalho suplementar, poderá este último fazê-lo ‘delegando’ e ‘remetendo’ a dita regulamentação e definição para despacho ministerial?
A resposta terá de ser negativa como se vai explicar.
O nº 2 do artº 10 do D.L. 421/83, 1ª parte, definiu que o registo de trabalho suplementar deve conter ‘sempre indicação expressa do fundamento da prestação de trabalho suplementar’ e também ‘os elementos fixados em despacho do Ministro do Trabalho e Segurança Social’.
Ou seja, o Governo, através do D.L. 421/83, artº 10, criou a obrigação da existência do registo do trabalho suplementar e definiu alguns dos elementos que esse registo deve conter (anotação das horas de início e termo do dito trabalho, indicação do fundamento da prestação do trabalho suplementar, períodos de descanso compensatório), mas deixou em aberto a definição de outros elementos que poderão integrar o conteúdo da contra-ordenação prevista no artº
10 do citado D.L. 421/83, a definir por despacho ministerial.
E um despacho ministerial não é lei ou decreto-lei, e por isso o mesmo não pode regulamentar, definir, interpretar, integrar ou modificar qualquer norma, a que seja atribu[í]da eficácia externa, quando em causa está a definição de matérias que constituem reserva relativa da Assembleia da República.
Com efeito, está-se perante ‘aspectos jurídicos’ de grande importância a que a Constituição atribui a reserva relativa da Assembleia da República, ou seja, se não é esta a legislar será o Governo com a sua autorização, através de D.L., e nunca através de despacho regulamentar ou ministerial.
Por isso, se conclu[i] que o artº 10 nº 2 do D.L. 421/83, na parte em que preceitua ‘... além de outros elementos fixados em despacho do Ministro do Trabalho e Segurança Social’ é inconstitucional por violar os arts. 112º nº 6 e 165º nº 1 al. d) da C.R. Portuguesa.
E a inconstitucionalidade de tal D.L., na parte referida, determina que o recorrente não possa ser censurado por conduta que não se enquadra nos demais números do artº 10, nomeadamente nºs 1, 2, 1ª parte e 3.
......................................................................................................................................................................................................................................”
É deste acórdão que, pelo Representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto e esteado na alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, vem interposto o presente recurso, visando a apreciação do julgamento de inconstitucionalidade da norma constante do nº 2 do artº 10º do Decreto-Lei nº 421/83, no segmento em que na mesma se preceitua além de outros elementos fixados em despacho do Ministro do Trabalho e Segurança Social.
2. Determinada a feitura de alegações, rematou a entidade recorrente a por si produzida com as seguintes «conclusões»:-
“1º - Apenas se situa no âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República a definição do regime geral do ilícito contraordenacional, não se inscrevendo manifestamente em tal reserva a definição de quais sejam os elementos que devem obrigatoriamente constar do registo de trabalho suplementar prestado à entidade patronal.
2º - Não estando tal matéria obviamente sujeita a ‘reserva de lei’, não viola o artigo 112º, nº 6 da Constituição a ‘delegação’, feita pela norma legal desaplicada na decisão recorrida, em simples regulamento, de todos os elementos que devem integrar aquele registo.
3º - Termos em que deverá proceder o presente recurso”.
Por seu turno, o A., finalizou a sua alegação propugnando por se dever julgar inconstitucional o artº 10º, nº 2, do Decreto-Lei nº 421/83, na parte em que permite ao Ministro do Trabalho e da Segurança Social fixar por despacho os elementos que entender necessários ao cumprimento da lei de autorização, vindo estes a integrar contra-ordenação.
Cumpre decidir.
3. O artº 10º do Decreto-Lei nº 421/83 (na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 389/91, de 16 de Outubro) reza assim:-
Artigo 10.º
(Registo)
1 - As entidades empregadoras devem possuir um registo de trabalho suplementar onde, antes do início da prestação e logo após o seu termo, serão anotadas as horas de início e termo do trabalho suplementar, visado por cada trabalhador imediatamente a seguir à sua prestação.
2 - Do registo previsto no número anterior constará sempre indicação expressa do fundamento da prestação de trabalho suplementar, além de outros elementos fixados em despacho do Ministro do Trabalho e Segurança Social.
3 - No mesmo registo deverão ser anotados os períodos de descanso compensatório gozados pelo trabalhador
4 - É dispensado o visto do trabalhador referido no n.º 1 quando o registo do início e termo da prestação de trabalho seja feito por meios computorizados.
5 - Nos meses de Janeiro e Julho de cada ano a entidade empregadora deve enviar à Inspecção-Geral do Trabalho relação nominal dos trabalhadores que efectuaram trabalho suplementar durante o semestre anterior, com discriminação do número de horas prestadas ao abrigo dos n.ºs 1 e 2 do artigo 4.º, visada pela comissão de trabalhadores.
Se bem se entende a decisão impugnada, recusou ela a aplicação do normativo ínsito no nº 2 do artº 10º acima transcrito, dado que ao recorrente vinha imputada, para além da falta de registo do total de horas de trabalho suplementar, a falta de registo das importâncias a pagar.
É, no mínimo, estranho o assim decidido, na medida em que, constituindo o não cumprimento do disposto no artº 10º (e não se distinguindo aí entre qualquer dos seus números) do Decreto-Lei nº 421/83 a sujeição da entidade patronal à imposição de uma multa fixada entre determinados montantes, ex vi do prescrito no nº 3 do artº 11º do mesmo diploma, pelo mero facto de, ao se descortinar no acórdão recorrido um vício de inconstitucionalidade no nº 2 daquele artº 10º, ter concluído que a conduta do recorrente não se poderia enquadrar nos demais números daquele artigo.
Seja como for (e porque aquele particular constitui matéria que se situa fora dos poderes cognitivos deste Tribunal e, por isso, não pode ser objecto de censura por parte do mesmo), o que é certo é que o acórdão em apreço recusou a aplicação da norma vertida no nº 2 do falado artº 10º na parte em que determina que do registo de horas de trabalho suplementar devem constar, para além do que expressamente se prescreve nos seus números 1 a 3, os elementos que vierem a ser fixados em despacho do Ministro do Trabalho e Segurança Social, argumentando que tais elementos constituíam definição do conteúdo da contra-ordenação prevista naquele artigo, sendo que tal matéria constituía reserva relativa de competência da Assembleia da República.
É a todos os títulos evidente o desacerto de um tal raciocínio.
4. Em primeiro lugar, impõe-se transcrever o despacho do Ministro do Emprego e da Segurança Social proferido em 27 de Outubro de 1992 na sequência da nova redacção conferida ao Decreto-Lei nº 421/83 pelo Decreto-Lei nº 398/91, (despacho esse publicado na 2ª Série do Diário da República de 17 de Novembro de 1992).
O despacho sobre o registo de horas de trabalho suplementar, previsto no nº 2 do art. 10.º do Dec.-Lei 421/83, de 2-12, encontra-se actualmente publicado no BTE, 1.ª, 6, de 15-2-84, e no DR, 2.ª, 91, de 17-4-84.
As alterações introduzidas pelo Dec.-Lei 398/91, de 16-10, nomeadamente em matéria de registo de trabalho suplementar, por via da nova redacção dada ao referido art. 10.º tornaram o despacho referido desconforme às actuais normas legais.
Entre aquelas alterações importa salientar a que suprime a obrigatoriedade de o registo de trabalho suplementar ser efectuado em livro, a que possibilita o registo por meios computorizados, a que obriga ao registo das horas de início e termo da prestação de trabalho, bem como ao visto do trabalhador imediatamente após esta prestação, e ainda a que permite, em certos casos, a substituição do descanso compensatório por trabalho remunerado com um acréscimo não inferior a 100%.
Nestes termos, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 10º do Dec.-Lei 421/83, de 2-12, determino o seguinte:
1 - O registo de trabalho suplementar, previsto no art. 10.º do Dec.-Lei 421/83, de 2-12, na redacção dada pelo art. 2.º do Dec.-Lei 398/91, de
16-10, deve conter os elementos e ser efectuado em obediência ao modelo fixado no mapa anexo, que faz parte integrante do presente despacho.
2 - O registo referido no número anterior pode ser efectuado em livro ou outro suporte documental adequado, designadamente em impressos adaptados a sistemas de relógio de ponto, mecanográficos ou computorizados.
3 - Os suportes documentais de registo de trabalho suplementar devem encontrar-se permanentemente actualizados, sem emendas ou rasuras não ressalvadas, e ser conservados em arquivo pelo prazo mínimo de cinco anos.
4 - É revogado o despacho publicado no BTE, 1.ª, 6, de 15-2-84, e no DR, 2.ª, 91, de 17-4-84.
Anote-se que, segundo o modelo a que se reporta aquele despacho, o registo de horas de trabalho suplementar deve conter as seguintes menções:-
- dia, mês, ano e local em que o trabalho suplementar foi prestado e indicação da firma ou denominação da entidade empregadora;
- número de horas prestadas, com indicação do início e do termo, em dias úteis, dias feriados, dias de descanso complementar e dias de descanso semanal obrigatório;
- total de horas nos meses anteriores e no mês em curso;
- importância a pagar, com discriminação da remuneração base, acréscimo e do total ilíquido;
- descanso compensatório ou substituição deste, com indicação, neste último caso, dos respectivos período e acréscimo;
- fundamento do trabalho suplementar;
- visto do trabalhador.
Assim, e desde logo, muito dificilmente se vislumbrará que, afora o que se reporta à indicação das importâncias a pagar aos trabalhadores que desempenhem trabalho suplementar, o modelo em causa, determinado pelo citado despacho, imponha às entidades patronais a indicação de outros elementos que se não contenham já no artº 10º do Decreto-Lei nº 421/83.
5. Mas, independentemente disso, há que ponderar que, de todo o modo, o nº 2 daquele artº 10º, ao estabelecer que do registo do trabalho suplementar que deve ser detido pelas entidades empregadoras devem, para além dos elementos previstos no dito artigo, constar ainda outros elementos que forem fixados pelo Ministro do Trabalho e Segurança Social, não está, de todo em todo
- e, para o que ora releva, ao definir os pressupostos de facto cujo não cumprimento, por força do disposto no 11º do Decreto-Lei nº 421/83, dá lugar ao sancionamento, com multa, da entidade empregadora -, a reger sobre matéria sujeita à competência legislativa da Assembleia da República.
Na verdade, inclui-se na reserva legislativa parlamentar
- cfr., hoje, o artigo 165º, nº 1, alínea d), da Constituição e, aquando da edição do Decreto-lei nº 421/83, artigo 168º, nº 1, alínea d) - tão só a definição do regime geral dos actos ilícitos de mera ordenação social.
Sobre este ponto, tem este tribunal seguido uma jurisprudência impressiva segundo a qual só a edição de normas ditas
«primárias», ou seja, que fazem parte do regime geral do ilícito de mera ordenação social, se insere na competência reservada relativa da Assembleia da República, cabendo ao Governo, dentro dos limites da «lei-quadro» daquele ilícito, e no exercício da sua competência legislativa concorrente, delinear ilícitos contra-ordenacionais, estabelecer a correspondente punição e moldar regras secundárias do processo contra-ordenacional (cfr., por entre muitos outros, os Acórdãos números 56/84 e 158/92, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, respectivamente 3º volume, 153 e seguintes, e 21º volume, 713 e seguintes).
Ora, sendo assim, forçoso é concluir que o delineamento do ilícito (hoje perspectivado como contra-ordenacional), e respectiva punição, a que se reportam os artigos 10º e 11º, nº 3 do Decreto-Lei nº 421/83, se inserem indiscutivelmente na competência legislativa governamental.
6. Aquele delineamento, consiste, como se depara límpido, na obrigatoriedade de do registo de trabalho suplementar que as entidades empregadoras devem possuir constarem determinados elementos cuja especificação de carácter puramente descritivo e casuístico, se contém, não só no preceito que estabelece tal obrigatoriedade, como ainda em normação regulamentar (que é, ao fim e ao resto como se deverá caracterizar o despacho ministerial a que alude o nº 2 do artº 10º do Decreto-Lei nº 421/83).
Como refere o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto na sua alegação, “definido por lei que deve necessariamente existir um registo de trabalho suplementar prestado, é evidente que é perfeitamente possível e legítimo ‘delegar’ em diplomas regulamentares a exacta previsão de quais são os elementos que devem integrar tal registo, por tal matéria não estar obviamente sujeita a qualquer ‘reserva de lei’”.
O juízo de censura contra-ordenacional, consiste, in casu, na imposição de um do registo de trabalho suplementar que deve conter determinados elementos, tornando-se, assim, para as entidades patronais, claro qual a conduta que devem adoptar.
Desta sorte, a especificação dos elementos a que se reporta o despacho ministerial, a que deve ser conferida publicidade - o que, indubitavelmente, no caso, aconteceu - não traduz, por si, a formulação de um juízo valorativo de natureza contra-ordenacional, mas a sua execução e concretização de um critério já localizável na norma que figurou a previsão desse ilícito (cfr., embora a um outro propósito, mas com algum paralelismo, os Acórdão números 545/2000 e 171/2002, o primeiro publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 48º volume, 541 a 550, e o segundo na 2ª Série do Diário da República de 1 de Junho de 2002), não se podendo, desta arte, sequer sustentar que a norma ora apreciada, na parte em causa, se perspectiva como uma norma sancionatória «em branco».
7. Em face do exposto, concede-se provimento ao recurso, consequentemente se determinando a reforma do acórdão impugnado de acordo com o juízo ora efectuado sobre a questão de inconstitucionalidade.
Lisboa, 14 de Maio de 2003 Bravo Serra Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida