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Proc. n.º 245/03 TC - 1ª Secção Rel.: Consº Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - A., identificado nos autos, recorre para este Tribunal do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de fls. 179 e segs., ao abrigo do artigo 70º n.º 1 alínea b) da LTC, pedindo a apreciação da constitucionalidade da norma ínsita no artigo 412º do Código das Sociedades Comerciais, 'na interpretação ou dimensão de que está vedada a impugnação judicial directa das deliberações do conselho de administração nulas ou anuláveis', o que, segundo o recorrente, viola o direito de acesso aos tribunais garantido pelo artigo 20º n.º 1 da Constituição.
O recurso foi admitido e, produzidas alegações, nelas o recorrente formulou as seguintes conclusões:
1 - É admissível a impugnação judicial, directa, das deliberações do conselho de administração nulas ou anuláveis.
2 - Sindicabilidade judicial que não é vedada pelo art.
412º do CSC.
3 - É inconstitucional a interpretação ou dimensão da norma do art. 412º do CSC, perfilhada pelos Senhores Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto, no sentido de que está vedada a impugnação judicial directa das deliberações do conselho de administração nulas ou anuláveis, por violar o direito de acesso aos tribunais garantido no art. 20º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
4 - Tal direito de acesso aos tribunais é um princípio estruturante do Estado de Direito.
5 - Tal garantia assume a dupla dimensão do direito de defesa, dos particulares perante os tribunais contra actos dos poderes públicos e do direito de protecção do particular, através dos tribunais a violações por terceiros dos seus direitos e interesses legítimos - cfr. art. 202º n.º 2 da CRP.
6 - Esta última dimensão implica o direito de acção, ou seja o direito subjectivo do particular de levar determinada pretensão ao conhecimento e decisão dos órgãos jurisdicionais.
7 - É que todos os indivíduos que se julguem lesados podem recorrer directamente aos tribunais, contra quaisquer acções ou omissões ofensivas concretas, praticadas por entidades públicas ou privadas.
8 - É igualmente incontroverso que a protecção jurisdicional não pode ser esvaziada de conteúdo em virtude da inexistência da determinação legal da via adequada. O direito de acesso aos tribunais implica o direito ao processo, isto é, o direito a uma decisão final sobre o fundo da causa, fundada no direito. Mas a tutela jurisdicional não pode ficar comprometida em virtude da exigência legal de pressupostos desnecessários, não adequados e desproporcionados. Daí que se considere, pacificamente, proibido o estabelecimento de requisitos processuais desnecessários ou desviados de um sentido conforme ao direito fundamental de acesso aos tribunais.
9 - Tanto mais que no caso concreto, atento o facto de apenas possuir o Recorrente 2 % das acções da sociedade recorrida, nunca poderia ele impor a convocatória de uma assembleia geral destinada a apreciar a validade ou invalidade da deliberação impugnada e nem que esse assunto constasse da ordem de trabalhos de qualquer assembleia convocada, cfr. art. 375º n.º 2 e 378º n.º1 do CSC. E, no caso, atentos os factos tais como relatados na petição inicial da acção, mesmo que a assembleia viesse a ser convocada, sempre seria a mesma inútil face ao facto assente de os restantes 98 % do capital social estarem nas mãos dos mesmos grupos que, com a única excepção do recorrente, constituem o Conselho de Administração.
10 - Assim, a douta decisão recorrida violou o art. 412º do CSC e o artº 20º n.º 1 da CRP.'
Os recorridos B. e outros contra-alegaram, sustentando que se deve negar provimento ao recurso, em síntese, com os seguintes fundamentos:
- a apreciação da nulidade ou anulabilidade de uma deliberação do conselho de administração, pelo próprio conselho ou pela assembleia geral, não está dependente dos requisitos que, em geral, limitam a faculdade de requerer a convocação de assembleias gerais ou de nelas fazer incluir assuntos;
- para este efeito, basta que o recorrente tenha direito a voto, sendo certo que no caso em apreço a cada acção corresponde um voto;
- quando se trate de apreciar actos de administradores, qualquer assembleia geral poderá, sem dependência de prazo e sem necessidade de convocação para o efeito, deliberar sobre declaração de nulidade ou anulação de qualquer deliberação;
- o largo prazo que se confere aos accionistas (com direito a voto apenas, e não com qualquer percentagem do capital) para suscitarem por simples requerimento a nulidade ou a anulabilidade de uma deliberação do conselho perante a assembleia geral (3 anos no mínimo) adicionado da possibilidade que a partir daí a lei lhes confere para em 30 dias suscitarem judicialmente a invalidade da deliberação social que então for tomada, confere conteúdo e densidade recursória bastante ao direito de acção emergente do artº
411º do CSC, estando por isso eficazmente assegurado o direito constitucional de acesso ao direito e aos tribunais consagrado no artº 20º da Constituição;
- o legislador ordinário tem a liberdade de conformar o exercício do direito de acesso aos tribunais nos moldes que entenda adequados e só quando da interpretação seguida se revelar impossível, ou extremamente difícil, o recurso aos tribunais - o que não ocorre no caso - faz sentido recorrer à protecção constitucional.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir
2 - Resulta dos autos:
- O ora recorrente intentou no Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia acção contra a sociedade recorrida e outros nela formulando, entre outros, o pedido de declaração de nulidade da deliberação do Conselho de Administração daquela sociedade, de 20/7/2001, nos termos da qual se decidiu vender um veículo automóvel que fora anteriormente entregue ao Autor para seu uso exclusivo;
- Na sua contestação, os Réus suscitaram a questão da insindicabilidade judicial directa, em sede de contencioso de anulação, das deliberações do conselho de administração;
- Em réplica, o Autor manteve o entendimento de que os accionistas podem impugnar contenciosa e directamente as deliberações nulas do conselho de administração.
- Por sentença de 16/5/2002, o Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia julgou procedente a excepção deduzida pelos réus, considerando que a acção de nulidade só pode dirigir-se contra deliberações de assembleias gerais, cabendo recurso da deliberação do conselho de administração para a assembleia geral.
- Desta decisão recorreu o Autor para o Tribunal da Relação do Porto, suscitando nas alegações a questão da inconstitucionalidade, por violação do artigo 20º n.º 1 da CRP, da interpretação dada à norma do artigo
412º do CSC no sentido de estar vedada a impugnação directa de deliberações do conselho de administração.
- Pelo acórdão ora recorrido o Tribunal da Relação do Porto negou provimento ao recurso, nele se escrevendo na parte que interessa:
'Temos, assim, de concluir que nenhum sócio pode, visto a lei não lho consentir, demandar directamente os tribunais, sem prévio recurso à assembleia geral, com vista à declaração de nulidade ou anulabilidade de uma deliberação desse órgão.
E tal entendimento não é inconstitucional, não viola o disposto no art. 20º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, de (sic) violar o direito de acesso dos cidadãos aos tribunais.
As deliberações dos órgãos de administração das sociedades anónimas são actos internos da própria sociedade, susceptíveis de interferirem com os direitos dos seus sócios ou de terceiros.
Porém, qualquer accionista com direito a voto, qualquer membro do
órgão de administração ou o órgão de fiscalização, pode requerer à assembleia geral que declare a nulidade ou anulabilidade de deliberações de órgão da administração, como bem expresso está no citado art. 412º. E da resolução da assembleia geral pode o interessado recorrer aos tribunais. Donde, nunca ser cerceado o recurso aos tribunais, daí não existir qualquer inconstitucionalidade.'
3 - A questão de constitucionalidade que cumpre conhecer é a seguinte: ofende o direito de acesso aos tribunais a interpretação do artigo 412º do Código das Sociedades Comerciais no sentido de que não é admissível a impugnação judicial directa (pedido de declaração de nulidade) de decisão do conselho de administração de uma sociedade anónima, devendo o interessado (accionista) requerer, previamente, à assembleia geral da mesma sociedade, a anulação ou declaração de nulidade daquela decisão sendo, então, directamente impugnável a deliberação da assembleia geral que recair sobre tal requerimento ?
Dispõe o citado artigo 412º do CSM:
'1 - O próprio conselho ou a assembleia geral pode declarar a nulidade ou anular deliberações do conselho viciadas, a requerimento de qualquer administrador, do conselho fiscal ou de qualquer accionista com direito de voto, dentro do prazo de um ano a partir do conhecimento da irregularidade, mas não depois de decorridos três anos a contar da deliberação.
2 - Os prazos referidos no número anterior não se aplicam quando se trate de apreciação pela assembleia geral de actos de administradores, podendo então a assembleia deliberar sobre a declaração de nulidade ou anulação, mesmo que o assunto não conste da convocatória.
3 - A assembleia geral dos accionistas pode, contudo, ratificar qualquer deliberação anulável do conselho de administração, ou substituir por uma deliberação sua a deliberação nula, desde que esta não verse sobre matéria da exclusiva competência do conselho de administração.
4 - Os administradores não devem executar ou consentir que sejam executadas deliberações nulas.'
Desde há muito que a questão da impugnabilidade das decisões dos administradores
(lato sensu) das sociedades tem sido discutida na jurisprudência e na doutrina nacionais.
Já o Prof. José Alberto dos Reis ('Código de Processo Civil anotado', 3ª ed., p.
676), em comentário aos artigos 403º e 404º do CPC, então em vigor, defendia que
a acção anulatória não poderia ser utilizada contra deliberações tomadas pelos
órgãos administrativos propriamente ditos (gerência, direcção, administração), mas apenas contra deliberações tomadas em reuniões ou em assembleias gerais de sócios.
Esta doutrina foi igualmente seguida por Rodrigues Bastos (Notas ao Código de Processo Civil, vol. II, p. 247) Pinto Furtado ('Código Comercial anotado', vol. I, p. 507) e Carlos Osório de Castro ('Os valores mobiliários - conceito e espécies', 2ª ed., p. 76 e nota 17) e na Revista dos Tribunais, ano 90º, p. 357, anotação VI ao Acórdão do STJ de 21/4/72.
Na jurisprudência e neste mesmo sentido cfr. , para além do citado acórdão do STJ de 21/4/72, os acórdãos do mesmo Supremo Tribunal de 26/3/46, in RLJ, 79º Ano, pp. 139 e segs , da Relação de Coimbra de 3/12/91 in CJ, ano XVI, T. V, p.
73 e da Relação do Porto de 11/12/97, Pº n.º 9730158.
Em sentido oposto, pronunciaram--se Raul Ventura ('Estudos vários sobre sociedades anónimas', p. 558), Pinto Furtado, revendo a sua posição anterior
('Deliberações dos sócios', p. 221) e Taveira da Fonseca ('Deliberações Sociais
- Suspensão e anulação', Textos, CEJ, p. 144.
Não compete a este Tribunal, no âmbito dos poderes de cognição que lhe estão conferidos, sindicar o acerto da interpretação do artigo 412º do CSC que, no acórdão recorrido, é feita, no estrito plano do direito infraconstitucional, nem assumir posição sobre a referida querela doutrinária.
Do mesmo passo, deve o Tribunal dar como assente - o que, de resto, as parte não controvertem - que, de acordo com o preceito citado, é lícito a qualquer sócio requerer à assembleia geral a declaração de nulidade ou a anulação de decisão do conselho de administração, podendo igualmente aquele órgão, quando se trate de apreciação geral de actos de administradores, deliberar sobre a declaração de nulidade ou anulação, independentemente de o assunto constar, ou não, da convocatória.
Ao Tribunal Constitucional compete, assim, e apenas, decidir sobre se o procedimento de impugnação das decisões do conselho de administração, tal como o acórdão recorrido o desenha, ofende o direito de acesso aos tribunais.
Ora, sobre os direitos consagrados no artigo 20º da Constituição, tem o Tribunal Constitucional firmado uma jurisprudência, sintetizada, entre outros, no Acórdão n.º 529/94, in Acórdãos do Tribunal Constitucional 29º vol., p. 57, reiterada vg. no Acórdão n.º 576/98 (inédito)nos seguintes termos:
“2 - O artigo 20º do diploma básico estatui o direito geral à protecção jurídica, abarcando, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (cf. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., pp. 161 e seguintes), vários direitos componentes, como sejam o de acesso ao direito, o acesso aos tribunais, o de informação e consulta jurídicas e o de patrocínio judiciário. No que tange à componente de direito de acesso aos tribunais – ou de acesso à tutela jurisdicional –, tem este Tribunal entendido que o mesmo implica a garantia de uma eficaz e efectiva protecção jurisdicional, desdobrada: No direito, para defesa de um direito ou interesse legítimo, de acesso a órgãos independentes e imparciais titulados por quem goza estatutariamente de prerrogativas de inamovibilidade e irresponsabilidade quanto às suas decisões;
.................................................................................'
Direito fundamental, o acesso aos tribunais para defesa de direitos e interesses legítimos há-de imperativamente ser facultado pelo legislador em termos que permitam uma tutela efectiva desses direitos e interesses.
Mas dispõe o legislador de uma considerável margem de liberdade na regulação desse acesso. Liberdade que, no entanto, não pode configurar os meios utilizados para atingir o desiderato constitucional, de modo tal que o acesso se torne injustificada ou desnecessariamente complexo.
Ora, é manifesto que da norma em causa, tal como foi interpretada no acórdão recorrido, não resulta a impossibilidade de o accionista sujeitar à sindicância jurisdicional a questão da validade da decisão do conselho de administração, isto através da deliberação da assembleia geral que a não declare nula ou a não anule.
Nesta medida, não pode, desde logo, afirmar-se que a lei impede o acesso aos tribunais.
E não pode igualmente entender-se que o meio sempre facultado ao accionista para tal acesso (sem necessidade de deter os 5 % de capital para requerer a convocatória de uma assembleia geral nos termos do artigo 375º n.º 2 do CSC) - requerimento, dirigido à assembleia geral, de declaração de nulidade ou de anulação da decisão do conselho de administração, ou proposta no mesmo sentido na assembleia geral que vise a apreciação geral da actuação dos administradores - se revista de particular complexidade ou onerosidade.
De resto, esta exigência não é destituída de fundamento, não só em função da relativa proeminência das assembleia gerais nos órgãos societários, como por razões de ordem prática, referidas pelos recorridos, no sentido de evitar nocivas perturbações, ou paralizações, na actividade gestionária da sociedade.
Por outro lado, não está excluído que, apesar da correspondência das maiorias entre os conselhos de administração e as assembleias gerais, a assembleia geral venha a decidir em sentido favorável ao requerente, assim evitando ao accionista o recurso aos tribunais para tutela do seu direito; o
'recurso' à assembleia geral não é, pois, necessariamente inútil.
Improcede, deste modo, a alegação de inconstitucionalidade, por violação do artigo 20º n.º 1 da CRP, da norma do artigo 412º do CSC, interpretada nos termos descritos pelo acórdão recorrido.
4 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa, 24 de Setembro de 2003
Artur Maurício Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos Luís Nunes de Almeida