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Processo n.º 798/02
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A assistente A. e o Ministério Público interpuseram recurso, para o Tribunal da Relação de Guimarães, do acórdão da Vara de Competência Mista do Tribunal da Comarca de Braga, de 19 de Fevereiro de 2002, que absolveu o arguido B. do crime por que fora acusado, abrangendo ambos os recursos matéria de facto e matéria de direito.
Por acórdão de 8 de Julho de 2002, o Tribunal da Relação de Guimarães rejeitou os recursos relativamente à matéria de facto e julgou-os improcedentes quanto à matéria de direito. Aquela rejeição baseou-se no entendimento de que: (i) nos termos do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, incumbe aos recorrentes, sempre que impugnam a matéria de facto, não só o ónus de concretizar os pontos de facto que consideram incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa da recorrida (ónus que, no presente caso, eles cumpriram), mas também, sempre que as provas tenham sido gravadas, o ónus da sua concretização por referência aos suportes técnicos e de proceder à respectiva transcrição (transcrição a que os recorrentes não procederam); e (ii) a omissão da transcrição implica a rejeição dos recursos que incidam sobre a matéria de facto, por manifesta inviabilidade dos mesmos, nos termos do artigo 420.º, n.º 1, do mesmo Código.
Notificada deste acórdão, a assistente A. veio interpor recurso do mesmo para o Tribunal Constitucional, tendo, a convite do Desembargador Relator, especificado que o recurso era interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro
(doravante designada por LTC), que pretende ver apreciada a constitucionalidade da norma do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, “interpretada no sentido de que a falta de transcrição, na/com a motivação das especificações da prova gravada previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 daquele artigo (412.º do Código de Processo Penal) tem como efeito a rejeição automática do recurso sobre a matéria de facto, sem que ao recorrente seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência”, por violação do artigo 32.º, n.º 1, conjugado com os artigos 13.º e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, e que a questão de constitucionalidade só foi suscitada no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional por tal questão só ter surgido com a prolação do acórdão recorrido.
Neste Tribunal Constitucional, a recorrente apresentou alegações, concluindo pelo provimento do recurso, por a interpretação impugnada violar as citadas normas constitucionais.
O representante do Ministério Público contra-alegou, concluindo:
“1.° – Antes da prolação do Assento n.° 2/03 do Supremo Tribunal de Justiça – e perante as interpretações contraditórias da jurisprudência – não pode considerar-se «decisão-surpresa», de conteúdo insólito ou imprevisível, com a qual o recorrente não pudesse razoavelmente contar, a que se traduz em considerar que recai sobre o recorrente que pretende impugnar matéria de facto, gravada ou registada, o ónus de proceder às transcrições dos depoimentos em que funda a impugnação deduzida – cumprindo-lhe, consequentemente, suscitar, antes da prolação da decisão recorrida, a questão da inconstitucionalidade de tal interpretação.
2.º – Não viola o direito de acesso à justiça de que beneficia o assistente o entendimento de que recai sobre ele o ónus de transcrever os depoimentos gravados em que funda o recurso que interpõe quanto à decisão de facto, não tendo lugar o convite ao aperfeiçoamento de tal deficiência substancial que torna inconcludente a motivação deduzida.
3.° – Termos em que não deverá conhecer-se do recurso, por inverificação dos seus pressupostos; ou, subsidiariamente, terá o mesmo de ser julgado improcedente, por não padecer de inconstitucionalidade a interpretação normativa questionada pela recorrente.”
Notificada a recorrente para, querendo, se pronunciar sobre a questão prévia suscitada, apresentou resposta propugnando o desatendimento dessa questão.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
Apreciando prioritariamente, como cumpre, a questão do não conhecimento do recurso suscitada nas contra-alegações do Ministério Público, recorda-se que a admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – que foi o interposto pela recorrente – depende da suscitação “durante o processo” da inconstitucionalidade da(s) norma(s) aplicada(s) pela decisão recorrida e cuja conformidade constitucional o recorrente pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, esclarecendo o n.º 2 do artigo 72.º da mesma Lei que tal recurso só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”.
Constitui jurisprudência consolidada deste Tribunal Constitucional que o apontado requisito só se pode considerar preenchido se a questão de constitucionalidade tiver sido suscitada antes de o tribunal recorrido ter proferido a decisão final, pois com a prolação desta decisão se esgota, em princípio, o seu poder jurisdicional. Por isso, tem sido uniformemente entendido que, proferida a decisão final, a arguição da sua nulidade ou o pedido da sua aclaração, rectificação ou reforma não constituem já meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade, pois a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, não a torna obscura ou ambígua, nem envolve “lapso manifesto” do juiz quer na determinação da norma aplicável, quer na qualificação jurídica dos factos, nem desconsideração de elementos constantes do processo que implicassem necessariamente, só por si, decisão diversa da proferida. E também, por maioria de razão, não constitui meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade a sua invocação, pela primeira vez, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade ou nas respectivas alegações.
Só assim não será nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade.
O problema que se coloca nestes autos é justamente o de saber se o acórdão recorrido encerra interpretação normativa de tal modo inesperada que não tornava exigível que a recorrente suscitasse a questão da sua inconstitucionalidade antes da sua prolação.
Como se refere na contra-alegação do Ministério Público, trata-se de caso similar ao versado no Acórdão n.º 121/03, desta 2.ª Secção, que, indeferindo reclamação de decisão sumária, concluiu pela natureza previsível da interpretação acolhida no acórdão recorrido e, consequentemente, pela inadequação da suscitação da questão de inconstitucionalidade apenas após a prolação desse acórdão. Lê-se no citado Acórdão n.º 121/03:
“3. Os reclamantes apenas impugnam na presente reclamação a parte da Decisão Sumária na qual se concluiu pelo não conhecimento do objecto do recurso relativo às normas dos artigos 412.º, n.ºs 3 e 4, e 101.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. (...)
Os reclamantes, após afirmarem, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, que suscitaram a questão que pretendem ver apreciada nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação do Porto, vêm na presente reclamação sustentar que não tiveram oportunidade processual de suscitar essa questão, consistente na interpretação segundo a qual impende sobre os recorrentes o ónus da transcrição da prova gravada.
Ora, tal questão, relativa à interpretação do direito infraconstitucional, não é nova na jurisprudência (nomeadamente, na jurisprudência constitucional). Com efeito, o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a mesma questão, tendo concluído pela não inconstitucionalidade de norma de conteúdo idêntico ao da norma que os recorrentes impugnam (Acórdão n.º 677/99, de 21 de Dezembro – Diário da República, II Série, de 28 de Fevereiro de 2000).
Assim, em face da orientação jurisprudencial existente e da própria jurisprudência do Tribunal Constitucional no sentido da não inconstitucionalidade, era objectivamente configurável e previsível para os recorrentes que o Tribunal da Relação do Porto pudesse vir a acolher a solução que efectivamente acolheu, não sendo procedente afirmar que tal decisão constitui uma «decisão surpresa» no sentido em que o Tribunal Constitucional tem definido essa noção para o efeito de dispensa do ónus de suscitação durante o processo da questão de constitucionalidade normativa (cf. Acórdão n.º 155/95, de
15 de Março – Diário da República, II Série, de 20 de Junho de 1995).
Nessa medida, impendia sobre os reclamantes o ónus da suscitação da questão de constitucionalidade normativa que pretendem ver apreciada. Não tendo cumprido tal ónus, não se verificam os pressupostos processuais do recurso interposto, pelo que a presente reclamação é improcedente.”
Acresce que, no presente caso, tendo o representante do Ministério Público no Tribunal da Relação de Guimarães, no seu parecer, discutido, como “questão prévia”, o problema de saber a quem competia proceder à transcrição da prova gravada, sustentando a tese de que esse encargo recaía sobre o tribunal e promovendo, por isso, sob pena de o Tribunal da Relação ficar impossibilitado de proceder ao reexame da prova, a baixa do processo à 1.ª instância para se proceder à transcrição, a recorrente foi notificada desse parecer, tendo apresentado resposta a manifestar a sua concordância com o mesmo. Acontece que essa solicitação de baixa do processo à 1.ª instância foi tacitamente indeferida pelo Desembargador Relator, quando determinou que o processo fosse aos vistos dos Juízes Adjuntos e depois concluso ao Presidente da Secção para designação de dia para julgamento do recurso. Tendo o Presidente da Secção designado dia para julgamento do recurso, sem prévio envio à 1.ª instância, a recorrente reclamou deste despacho para a conferência, por dele resultar que não iria ser conhecida, antes do julgamento do recurso, a “questão prévia” suscitada pelo Ministério Público. Ora, nessa reclamação, numa fase processual em que era perfeitamente previsível que o Tribunal da Relação se preparava para não conhecer dos recursos da matéria de facto, por não ter sido feita a imprescindível transcrição da prova gravada, a recorrente não suscitou – como podia e devia ter feito – a questão de inconstitucionalidade que agora pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
Conclui-se, assim, que tal questão não foi suscitada “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”, razão que obsta ao conhecimento do objecto do recurso.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em não conhecer do objecto do presente recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
8 (oito) unidades de conta.
Lisboa, 2 de Julho de 2003.
Mário José de Araújo Torres (Relator)
Benjamim Silva Rodrigues
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos