Imprimir acórdão
Processo nº 346/2003
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência,
na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Notificado do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de Fevereiro de
2003, que negou provimento ao recurso que interpusera da sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Torres Vedras que o condenara pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, A. recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo a apreciação da constitucionalidade das normas contidas nos artigos 127º (admite-se que a referência ao artigo 126º, no requerimento de interposição de recurso, seja um lapso), 374º, n.º 2 e 379º, d) [supõe-se que seja a)] do Código de Processo Penal. Segundo afirma no requerimento de interposição de recurso, o primeiro dos preceitos indicados foi interpretado pelo tribunal recorrido “no sentido de não implicar ao julgador, ao aplicar [apreciar] livremente a prova, ao procurar através dela atingir a liberdade material, o dever de observância das regras de experiência comum utilizando como método de avaliação a aquisição do conhecimento critérios objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e controlo”, o que violaria o disposto nos n.ºs 2 e 5 do artigo 32º e os artigos
13º e 16º da Constituição. Quanto aos outros dois preceitos, infringiriam os artigos 205º, n.º1 e 32º, n.ºs
1 e 5 da Constituição por “serem aferidos em termos de não determinarem a fundamentação da matéria de facto individualmente em relação a cada elemento de facto dado por assente, não procedendo a qualquer valoração dos mais meios de prova carreados pelo Recorrente em audiência de julgamento, conferindo um carácter inconstitucional à obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais”. Indica ainda que foi violado o “princípio in dubio pro reo”, embora não explique a que norma se refere. O recurso não foi admitido, pelo despacho de fls. 90 por, no que toca à norma referida aos artigos 374º, n.º 2 e 379, n.º 1, a) do Código de Processo Penal, não ter sido suscitada durante o processo a sua inconstitucionalidade mas, apenas, a sua violação e por, relativamente ao artigo 127º do mesmo Código, não ter sido aplicado “no acórdão recorrido com o sentido indicado pelo arguido”.
2. Inconformado, A. veio reclamar para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no nº 4 do artigo 76º da Lei nº 28/82, sustentado não ocorrerem os motivos apontados para a não admissão do recurso.
3. Notificados para se pronunciarem, os reclamados MINISTÉRIO PÚBLICO e B. vieram pronunciar-se no sentido da improcedência da reclamação, pelos motivos constantes do despacho de não admissão.
4. Com efeito, a presente reclamação é manifestamente improcedente. Quanto à norma que o reclamante extrai do artigo 127º do Código de Processo Penal, que dispõe que “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, basta ler o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa agora em recurso para se concluir, tal como fez o despacho de não admissão, que a mesma não corresponde ao sentido com que tal preceito foi aplicado:
“Esta disposição, nomeadamente no segmento sedimentado na epígrafe, não confere ao tribunal qualquer poder arbitrário e incontrolável quanto à decisão de facto. O princípio da livre apreciação da prova implica, antes de mais, enquanto princípio metodológico que é, a proibição do estabelecimento de critérios legais e abstractos de decisão da matéria de facto, ou seja, a proibição da existência de um sistema de prova legal. Tem, assim, uma dimensão negativa. Para além disso, apela à utilização de critérios racionais para a valoração da prova e, como tal, exteriorizáveis e controláveis. Nesta dimensão positiva interliga-se com o primeiro segmento da disposição citada, segundo o qual “a prova é apreciada segundo as regras da experiência”, regras essas que são as da experiência comum, comunitariamente sedimentadas, e não qualquer particular experiência ou disposição do julgador. Foi com o indicado sentido e não com o apontado pelo recorrente que a srªa juíza aplicou esta disposição e valorou, consequentemente, a prova que podia considerar. Não padece esta disposição, como inúmeras vezes já foi sustentado pelo Tribunal Constitucional, de qualquer antagonismo com a lei fundamental, pelo que, com esse motivo, a sua aplicação não deve ser recusada (artigo 204º da Constituição da República Portuguesa).” Não tendo sido aplicada a norma com o sentido que o reclamante considerou inconstitucional, não poderia o Tribunal Constitucional conhecer do recurso na parte que lhe diz respeito (cfr., por exemplo, os Acórdãos nºs 311/94, 187/95 e
366/96, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 1 de Agosto de 1994, 22 de Junho de 1995 e de 10 de Maio de 1996), o que significa que a reclamação também não pode ser deferida.
5. O mesmo sucede, aliás, quanto às restantes normas. Em primeiro lugar, porque, tal como se decidiu no despacho de não admissão, o reclamante não suscitou a sua inconstitucionalidade “durante o processo”, nos termos exigidos pelos artigos 70º, n.º 1, b) e 72º, n.º 2, da Lei nº 28/82. Com efeito, invocar a violação de um preceito legal – como indiscutivelmente o reclamante fez na peça processual indicada na reclamação – não equivale a alegar a respectiva inconstitucionalidade, sendo que é essa alegação que é condição de admissibilidade do recurso que interpôs. Em segundo lugar e porque, independentemente de saber se foi ou não cumprida esta exigência, os preceitos indicados – os n.º 2 do artigo 374º e a alínea a) do n.º 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal – também não foram interpretados pelo acórdão recorrido com o sentido que o reclamante acusa de infringir a Constituição, como se verifica, igualmente, pela leitura do acórdão recorrido. Desde logo, e ao apreciar a nulidade que o ora reclamante atribuiu à sentença da primeira instância, o acórdão recorrido, após descrever o conteúdo dos preceitos em causa, afirmou que “é precisamente isso que a srª juíza fez na sentença, onde, ao longo de 4 páginas (...), fundamentou pormenorizadamente a sua decisão quanto à matéria de facto, explicitando a apreciação que fez sobre cada um dos meios de prova considerados, os factos que directamente deles resultavam e as inferências que permitiam, dando cinta dos motivos pelos quais não considerava críveis certos depoimentos prestados em audiência. Embora se perceba que o recorrente possa discordar dessa fundamentação, não pode
é dizer que se verifica a invocada nulidade”. Seguidamente, e ao proceder à reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, e ao confirmá-la, o acórdão recorrido manteve o critério que enunciou. Assim, e também por este motivo, não poderia o recurso ser conhecido pelo Tribunal Constitucional quanto às normas agora em causa, o que sempre justificaria o indeferimento da reclamação.
Nestes termos, decide-se indeferir a reclamação. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs.
Lisboa, 7 de Julho de 2003 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida