Imprimir acórdão
Processo n.º 241/02
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A.., deduziu impugnação judicial contra a liquidação de taxa, efectuada pela Câmara Municipal de Matosinhos, no valor de Esc. 81.421.400$00 (posteriormente corrigida para 57.181.950$00, cfr. fls. 533), respeitante à ocupação do subsolo daquele município com condutas de combustível – Pipeline --------- – referente ao ano de 1999. Por sentença do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto, 1º Juízo, de 31 de Janeiro de 2002, de fls. 1717 e seguintes, foram julgadas “inconstitucionais as normas constantes dos n.ºs 4 e 7 do artigo 36° do Anexo I ao Regulamento e Tabela de Taxas e Licenças da Câmara Municipal de Matosinhos, na redacção dada em sua deliberação de 28/12/98, publicada no aviso n.º 1610/99, do Apêndice n.º
31 ao DR n.º 61, II Série, de 13/03/99”, e procedente a impugnação, com a consequente anulação da liquidação. Em síntese, o Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto entendeu que as referidas normas, ao abrigo das quais foi praticado o acto de liquidação em causa, envolvem a criação de um imposto, criação essa que se encontra 'reservada
à Assembleia da República ou ao Governo por ela devidamente autorizado – artigo
168°, nº 1, alínea i) da Constituição da República Portuguesa (até à revisão de
1997), actual artigo 165°, nº 1, alínea i)”. Assim sendo, 'tais normas são organicamente inconstitucionais, pois que o Regulamento criador emanou de mera deliberação da Assembleia Municipal, no caso, do município de Matosinhos'. E que, ainda que se entendesse diferentemente, seriam materialmente inconstitucionais, por violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da igualdade: “do confronto dos valores fixados com os estabelecidos nos artºs 36º a 38º do Regulamento na sua anterior redacção com os estabelecidos no artº 36º na redacção actual constata-se que, pese embora os aumentos aprovados se apliquem a muitas outras situações, a alteração de valores fixada para as outras condutas é praticamente irrisória quando comparada com o aumento destinado às condutas utilizadas pela impugnante”.
2. Desta sentença veio o Ministério Público recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (requerimento de fls. 1737). O recurso foi admitido. Notificadas para o efeito, as partes apresentaram as respectivas alegações. O Ministério Público concluiu nos seguintes termos:
'1º - A concepção constitucional de 'taxa' pressupõe – face ao entendimento da jurisprudência constitucional – a necessidade de existência de uma relação sinalagmática, a desnecessidade de uma exacta equivalência económica, a aferição do respectivo montante em função não só do custo, mas também do grau de utilidade prestada, e a exigência de uma não manifesta desproporcionalidade na sua fixação.
2° - A taxa devida pela utilização do subsolo viário municipal, através da instalação de condutas subterrâneas para o transporte de produtos petrolíferos, tem natureza sinalagmática, já que é devida em função de uma utilização individualizável de um bem do domínio público municipal.
3º - A circunstância de na fixação do montante de tal taxa se ponderar a utilidade económica que, para o utente, decorre do consentimento na utilização do subsolo municipal – não atendendo apenas a outras prestações ou custos devidos ou suportados pelo município e às áreas físicas ocupadas – não implica
'manifesta desproporção' da taxa fixada pela norma regulamentar objecto do presente recurso.
4° - Não podem invocar-se como parâmetros de uma alegada desproporcionalidade os montantes originariamente fixados, há várias décadas, como contrapartida de tal utilização do subsolo, nem as decorrentes das restantes utilizações alternativas do subsolo municipal, já que o montante das taxas não pode considerar-se
'cristalizado' em função das circunstâncias existentes no momento da sua criação, nem é vedado à Administração ponderar os riscos e utilidades que decorrem das várias utilizações possíveis do subsolo municipal, reflectindo-os no respectivo montante.
5°- Termos em que deverá proceder o presente recurso.'
A recorrida A.. contra-alegou, sustentando a inconstitucionalidade das normas impugnadas e exprimindo concordância com a decisão recorrida. Em síntese, chamando a atenção para a matéria de facto que foi considerada provada, a recorrida frisou que o montante a pagar pela utilização do subsolo foi actualizado por diversas vezes, não sendo exacto que o aumento em apreciação, que não reflecte qualquer alteração nas relações com o município, venha ultrapassar qualquer “cristalização” de um valor há muito fixado.
3. Não havendo obstáculos ao conhecimento do recurso, cabe começar por fixar o respectivo objecto.
É o seguinte o texto das normas impugnadas (n.ºs 4 e 7 do artigo 36° do Anexo I ao Regulamento e Tabela de Taxas e Licenças da Câmara Municipal de Matosinhos, na redacção dada pela deliberação da Assembleia Municipal de 28.12.98, publicada no Aviso n.º 1610/99, do Apêndice n.º 31 ao Diário da República, II Série, n.º
61, de 13 de Março de 1999):
Artigo 36º Construções ou instalações no subsolo
1 – Depósitos subterrâneos não destinados a bombas abastecedoras, por metro cúbico ou fracção e por mês – 5000$00.
2 – Tubos, condutas, cabos e semelhantes sem fins industriais: Até 20 cm de diâmetro, por m/l ou fracção e por ano –100$; Por cada 5 cm a mais de diâmetro - 40$.
3 – Tubos, condutas, cabos e semelhantes com fins industriais ou comerciais, nomeadamente para abastecimento de água, salvo ligações aos colectores municipais: Até 20 cm de diâmetro, por m/l ou fracção e por ano –1500$; Por cada 5 cm a mais de diâmetro - 500$.
4 – Tubos, condutas, cabos e semelhantes com fins industriais ou comerciais para abastecimento com produtos derivados do petróleo ou químicos, por m/l ou fracção e por ano - 15.000$00.
5 – Tubos, cabos e semelhantes de comunicações e afins: Até 20 cm de diâmetro, por m/l ou fracção e por ano –220$; Por cada 5 cm a mais de diâmetro - 60$.
6 – Tubos, cabos, condutas subterrâneas de abastecimento domiciliário de gás: Até 20 cm de diâmetro, por m/l ou fracção e por ano –220$; Por cada 5 cm a mais de diâmetro - 60$.
7 – Condutas subterrâneas de produtos petrolíferos e afins destinados à refinação ou armazenagem: Até 20 cm de diâmetro, por m/l ou fracção e por ano –50.000$; Por cada 5 cm a mais de diâmetro - 4.000$.
8 – Câmaras, caixas de visita ou afins, por metro cúbico ou fracção e por ano –
5.000$00.
(...)
Constituem o objecto deste recurso, assim, as normas constantes dos n.ºs 4 e 7 do artigo 36º, cuja aplicação foi recusada pela sentença recorrida porque, ao implicarem 'um aumento desmesurado e totalmente desproporcionado', 'várias vezes superior a 1.000%', das taxas nelas previstas, 'sem qualquer alteração das condições de ocupação do subsolo, afigura-se-nos que sob o 'rótulo' de taxas
(alteração), aquela entidade [Câmara Municipal de Matosinhos] mais não fez do que lançar um imposto sobre a impugnante, ou, pelo menos, uma ‘contribuição especial’’’. Tratando-se, portanto de um imposto, o diploma que o criou haveria de ter sido emitido pela Assembleia da República, ou pelo Governo ao abrigo de autorização legislativa daquela, de acordo com o disposto no artigo 165°, n.º 1, alínea i), da Constituição. Não o tendo sido, estão as normas contidas nos n.ºs 4 e 7 do artigo 36° do Anexo I do referido Regulamento feridas de inconstitucionalidade orgânica; e, em qualquer caso, como já se disse, de inconstitucionalidade material.
4. Convém ter presente que, na versão imediatamente anterior deste Regulamento, as normas correspondentes tinham o seguinte teor (cfr. Regulamento a fls. 147 e segs.):
Artigo 36º Construções ou instalações especiais no solo ou subsolo
1 – Depósitos subterrâneos com excepção dos destinados a bombas abastecedoras
- por metro cúbico ou fracção e por mês – 4.500$00
(...)
5 – Outras construções ou instalações especiais no solo ou no subsolo: a) Por metro quadrado ou fracção e por ano – 1.070$00.
Artigo 37º
Ocupações diversas
(...)
3 – Tubos, condutas, cabos condutores e semelhantes: Por metro linear ou fracção e por ano a) Até 20 cm de diâmetro – 90$; b) Com diâmetro superior a 20 cm - 170$.
(...). Estes montantes, que valiam para o ano de 1998, foram encontrados através da aplicação da regra de actualização prevista no artigo 2º do próprio Regulamento aos montantes aprovados para 1997 (cfr. Regulamento a fls. 81) E convém igualmente recordar o que foi considerado na sentença recorrida, começando pela matéria de facto provada:
“1 – A impugnante foi autorizada a construir e explorar (...) uma instalação para armazenagem de produtos petrolíferos no Lugar de Real, concelho de Matosinhos;
(...)
2 – Essa instalação foi então constituída por ‘quatro reservatórios superficiais, com a capacidade total de 26.367 m3, para produtos de 3ª categoria e seis reservatórios superficiais, com a capacidade total de 19.331 m3, para produtos de 1ª e 2ª categorias, destinados só à recepção e entrega e à distribuição e consumo’;
3 – Tais reservatórios são servidos por condutas subterrâneas ou oleodutos
‘pipelines’ que pertencem em compropriedade à impugnante e às sociedades petrolíferas ‘B.’ e ‘C.’;
4 – Esses oleodutos atravessam terrenos do domínio público municipal, sob vias de circulação rodoviária, continuando em área sob jurisdição da Administração dos Portos de Douro e Leixões (APDL);
5 – A Assembleia Municipal de Matosinhos, em sessão ordinária de 28/12/98, aprovou, por proposta da Câmara, o Regulamento de Obras na Via Pública e as alterações apresentadas ao Regulamento e Tabela de Taxas e licenças e ao regulamento da Taxa Municipal de Urbanização;
(...)
6 –Com base na alteração referida no ponto anterior, a CMM liquidou à ora impugnante a taxa de 81.421.400$00, referente ao ano de 1999, respeitante à ocupação do subsolo daquele município para transporte de produtos petrolíferos;
(...)
8 – Previamente a CMM solicitou à ora impugnante que actualizasse junto da Câmara os elementos respeitantes à empresa, de forma a permitir a aplicação dos normas aprovadas e contidas no ponto n.º 5) (...);
9 – Em 12/08/99 e após levantamento desses dados, a CMM remeteu à impugnante a informação acerca das secções e extensões das condutas exploradas por esta no subsolo do domínio público municipal (...);
10 – Na sequência da impugnação dos autos e nos termos do artº 130º do Código de Processo do Trabalho, a CMM corrigiu o montante da taxa aludida em 6) para
51.181.950$00 (...);
(...)
13 – A manutenção, inspecção e reparação das condutas atrás referidas, sempre esteve a cargo da impugnante e das outras empresas referidas em 3), de acordo com um plano previamente estabelecido entre elas;
(...)”. Após tecer diversas considerações sobre a distinção entre taxa e imposto, cujo
“traço essencial” situou “no carácter bilateral ou sinalagmático da taxa” e na
“natureza unilateral” do imposto, a sentença procedeu ao confronto entre os n.ºs
4 e 7 do artigo 36º do Regulamento, na versão aplicada na liquidação, e o n.º 3 do artigo 37º (na parte relevante) da sua versão imediatamente anterior, concluindo que “Resulta, assim, que as taxas em causa sofreram um agravamento muitas vezes superior a mil % sem que da parte do município houvesse qualquer alteração da contrapartida. A manutenção, inspecção e reparação das condutas atrás referidas, sempre esteve a cargo da impugnante (e das outras empresas referidas em 3); são elas que também recorrem a empresas externas para certificações.
Aliás, desde a instalação dos ‘pipelines’ que não houve qualquer alteração na prestação por parte da CMM (...). Tal aumento não se confunde com qualquer actualização em função da inflação. O que está e esteve sempre em causa foi a remuneração pela ocupação do subsolo que subjaz às estradas e ruas municipais do domínio público viário do município de Matosinhos.
(...) A taxa ‘subjudice’ (...) tem como única contrapartida a utilização do domínio público municipal (...). Ora, assim, sendo, ou seja, tendo em conta que o município aumentou nos termos apontados (mais de 55.000%), as taxas postas em crise, sem qualquer alteração das condições de ocupação do subsolo, afigura-se-nos que sob o ‘rótulo’ de taxas
(alteração), aquela entidade mais não fez do que lançar um imposto sobre a impugnante, ou, pelo menos, uma ‘contribuição especial’. O aumento desmesurado e totalmente desproporcionado daquelas taxas, mais de
15.000% (pese embora o apelo a exigências ambientais, ao aumento da poluição ou da perigosidade inerente ao produto transportado nas condutas), salvo melhor opinião, não se configura como uma taxa, na acepção tradicional deste conceito jurídico. A tal taxa (alteração) não corresponde uma alteração dos serviços prestados pelo respectivo ente público; logo, não pode ser visto como uma contraprestação ou compensação característica da tradicional noção de ‘taxa’. Porém, ainda que se considere aquele aumento (...) como uma ‘contribuição especial’, ela não tem autonomia jurídica; terá de ser considerada e tratada como um imposto (...). Daqui resulta que a criação deste tributo está reservada à Assembleia da República ou ao Governo por ela devidamente autorizado – artº 168º, n.º 1, al. i) da CRP de 1976 (até à revisão de 1997), actual artº 165º n.º 1 al. i). As taxas devem ser medidas pelo facto gerador, numa relação de custo/utilidade/preço, em termos de a taxa não poder ser superior ao custo do uso do bem do domínio público (...). Ora, salvo melhor entendimento, aqui, a alteração do valor das taxas deveria resultar da área ocupada (quanto maior a área, maior, em princípio, será o efeito sobre o uso comum), ou de qualquer outro critério que revelasse a capacidade de a ocupação afectar o interesse público e o uso comum da coisa, o que não sucedeu (pese embora o reconhecimento de que hoje o subsolo municipal constitui um ‘substracto autónomo de realização de finalidades públicas’, conforme salientado no Parecer junto aos autos pela CMM). No caso posto, as taxas não foram fixadas em função da área ocupada, já que para as mesmas áreas ocupadas elas variam de forma substancial (...). Elas foram fixadas em função da natureza da actividade económica dos titulares – cfr. o preâmbulo do Regulamento em análise – ‘neste quadro, resulta claro que as diferentes utilizações do espaço dominial não devem estar sujeitas a um regime de taxa uniforme, tão diversos são os custos suscitados por elas, as vantagens que delas advêm para os respectivos utilizadores’. Deste modo, não são contrapartida do custo ou do valor do uso privativo; foram antes norteadas pela capacidade contributiva e pela natureza da actividade desenvolvida, como se de impostos se tratasse.
(...) tais ‘taxas’ não são devidas (não correspondem ao pagamento do preço da ocupação do subsolo dominial, ou dito de outro modo, não foram alteradas por qualquer razão justificativa decorrente da contrapartida da própria taxa.
(...) E, sendo as ‘taxas’ subjudice um verdadeiro imposto, daí decorre que as normas regulamentares ao abrigo das quais elas foram mexidas/alteradas, ou seja, as contidas nos 4 e 7 do artº 36º do Regulamento, estão viciadas ou eivadas de nulidade – cfr. o n.º 4 do artº 1º da Lei n.º 1/87, de 6 de Janeiro. Mas, (...) mais do que inválidas, tais normas são organicamente inconstitucionais, pois que o Regulamento criador emanou de mera deliberação da Assembleia Municipal, no caso, do município de Matosinhos.
(...) Contudo, sempre se dirá que se não se verificasse tal inconstitucionalidade orgânica, sempre tais normas seriam materialmente inconstitucionais, por violação do princípio da proporcionalidade e até da igualdade (do confronto dos valores fixados nos artºs 36º a 38º do Regulamento na sua anterior redacção com os estabelecidos no artº 36º na redacção actual constata-se que, pese embora os aumentos aprovados se apliquem a muitas outras situações, a alteração de valores fixada para as outras condutas é praticamente irrisória quando comparada com o aumento destinado às condutas utilizadas pela impugnante).
5. A primeira questão de constitucionalidade suscitada no presente recurso prende-se, pois, com alegada violação, pelas normas dos n.ºs 4 e 7 do artigo 36° do mencionado Anexo I ao Regulamento e Tabela de Taxas e Licenças da Câmara Municipal de Matosinhos, em primeiro lugar, da alínea i) do n.º 1 do artigo 165° da Constituição.
É nos artigos 103º e 165º, n.º 1, alínea i) da Constituição, na redacção resultante da Revisão Constitucional de 1997, que se encontra consagrado, como se sabe, o princípio da legalidade fiscal, quer na sua dimensão de reserva material de lei (que assenta directamente no nº 2 do artigo 103º), quer na dimensão de reserva (relativa) de lei da Assembleia da República (alínea i) do nº 1 do artigo 165º). A Constituição, na versão anterior à actual, integrava na reserva de competência parlamentar a matéria dos impostos e sistema fiscal, mas não já (ao menos em bloco) a das taxas. A revisão de 1997 veio incluir nessa reserva o “regime geral das taxas”; não é, porém, o que agora interessa, porque, como o Tribunal Constitucional já teve ocasião de afirmar, não se incluem nesse regime geral as regras relativas à fixação do respectivo montante (cfr. Acórdão nº 377/94, Diário da República, II Série, de 7 de Setembro de 1994, que, embora anterior à Revisão Constitucional de 1997, para averiguar se deveria ou não considerar-se integrantes do sistema fiscal os princípios gerais relativos às taxas, considerou expressamente não incluídas nesse regime geral as regras relativas à fixação do respectivo montante). Por seu lado, o Decreto-Lei n.º 100/84, de 29 de Março (vigente à data da aprovação da deliberação que aprovou as alterações) atribuía, na alínea l) do n.º 2 do seu artigo 39º, às assembleias municipais a competência para aprovar taxas municipais e estabelecer os respectivos quantitativos. Deste modo, averiguar a eventual desconformidade com a Constituição das normas que constituem o objecto do presente recurso começa por implicar saber se o tributo nelas previsto deve ser qualificado como uma taxa ou um imposto.
6. O Tribunal Constitucional foi já por diversas vezes chamado a pronunciar-se sobre o problema da distinção constitucional entre imposto e taxa, tendo entendido, de modo constante, que o critério essencial de diferenciação entre as suas figuras se encontra na unilateralidade ou bilateralidade dos tributos: enquanto o imposto tem estrutura unilateral, a taxa caracteriza-se pelo seu carácter bilateral e sinalagmático. Para relembrar o alcance desta distinção básica, podemos recorrer ao Acórdão nº
115/2002 (Diário da República, II série, de 28 de Maio de 2002), que a tratou desenvolvidamente, bem como à doutrina e jurisprudência ali citadas. Sintetizando os pontos relevantes, cumpre começar por observar, em primeiro lugar, que a afirmação do carácter sinalagmático das taxas implica reconhecer que a sua estrutura “supõe a existência de uma correspectividade entre a prestação pecuniária a pagar e a prestação de um serviço pelo Estado ou por outra entidade pública”, contrapartida essa que (citando o Acórdão nº 558/98, Diário da República, II Série, de 11 de Novembro de 1998), que veio a ser expressamente consagrada no n.º 2 do artigo 4º da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, para as seguintes situações: quando há “utilização de um serviço público de que beneficiará o tributado,
(...) utilização, pelo menos, de um bem público ou semi-público ou de um bem do domínio público e, finalmente, (...) remoção de um obstáculo jurídico ao exercício de determinadas actividades por parte dos particulares”.
Em segundo lugar, obriga a entender que a relação sinalagmática entre a contrapartida e o montante a pagar há-de ter um carácter substancial ou material, e não meramente formal; isso não implica, porem, que se exija uma equivalência económica rigorosa entre ambos, não sendo incompatível com a natureza sinalagmática da taxa o facto de o seu montante ser “superior (e, porventura, até consideravelmente superior) ao custo do serviço prestado”. O que não pode é ocorrer uma «desproporção intolerável» (Ac. nº 1140/96, in DR II Série, de 10/2/97)”, ou seja, “manifesta” e comprometedora, “de modo inequívoco, [d]a correspectividade pressuposta na relação sinalagmática”, sendo certo que a sua aferição há-de tomar em conta, não apenas o valor da quantia a pagar, mas também a utilidade do serviço prestado.
7. No caso de que agora nos ocupamos, e como resulta claramente da sentença recorrida, está em causa um montante a pagar como contrapartida da “utilização de um bem do domínio público”, e não da “prestação concreta de um serviço público” (cfr. n.º 2 do artigo 4º da Lei Geral Tributária).
É, pois, no confronto entre aquele valor a pagar – ou, melhor dizendo, os critérios fixados para a determinação desse valor – e esta utilização que há-de ser procurada a bilateralidade ou a natureza sinalagmática que identifica as taxas, por contraposição aos impostos.
8. Cumpre então verificar se tal carácter sinalagmático se encontra ou não presente no caso do tributo de que nos ocupamos. Dá-se como provado na sentença que o montante a pagar tem apenas como contrapartida a utilização do subsolo com as condutas de combustível, uma vez que a sua manutenção, inspecção e reparação sempre estiveram a cargo do particular; e que “não houve qualquer alteração na prestação por parte da CMM” correspondente ao aumento que agora se questiona. Daqui retira a sentença que, não correspondendo “a tal taxa (alteração) (...) uma alteração dos serviços prestados pelo respectivo ente público”, não pode o aumento “ser vista como uma contraprestação ou compensação característica da tradicional noção de ‘taxa’”. Esta conclusão não tem, porém, devidamente em conta que o tributo a prestar ao município se destina, apenas, a pagar a utilização do subsolo; não há, pois, que o confrontar senão, justamente, com essa utilização; e a mesma observação vale para a apreciação do aumento introduzido pela nova versão do regulamento.
9. Dá-se igualmente como provado na sentença recorrida que as condutas de combustível em causa se encontram sob solo integrado no domínio público municipal viário do Município de Matosinhos. Esta circunstância exclui, desde logo, que se possa chamar à colação o julgamento de inconstitucionalidade formulado no Acórdão 515/2000 (Diário da República, II série, de 23 de Janeiro de 2001), no qual se julgou uma norma constante de um regulamento municipal que determinava o pagamento de uma taxa pela instalação de um posto de abastecimento de carburantes líquidos instalado em propriedade particular; mas permite invocar o julgamento realizado nos Acórdãos n.ºs 20/2003 (Diário da República, II série, de 28 de Fevereiro de 2003) e 204/2003 (inédito), que se ocuparam de regulamentos municipais que estabelecem taxas também pela instalação de postos de abastecimento da mesma natureza e respectivos acessos, mas em terrenos do domínio público, em normas que foram julgadas não inconstitucionais. Entendeu-se, então, destinarem-se as mesmas a pagar a vantagem patrimonial decorrente para o particular de uma utilização individualizável do domínio público viário.
É claro que a sentença recorrida aceitou, como é bom de ver, que o domínio público viário abrange não só a superfície afecta à circulação rodoviária mas também o subsolo correspondente, assim considerando que os limites da propriedade pública se definem tal como decorre do n.º 1 do artigo 1344º do Código Civil; pode, aliás, considerar-se que, na falta de lei administrativa que permita sobreposição de propriedades distintas (como sucede, no direito civil, com a propriedade horizontal ou o direito de superfície), essa conclusão é a que se há-de aceitar como a mais conforme com os princípios vigentes no âmbito dos direitos reais (Afonso Rodrigues Queiró e José Gabriel Queiró, “Propriedade pública e Direitos Reais de Uso Público no Domínio da Circulação Urbana”, in Direito e Justiça, vol. IX, tomo 2, pág. 268). Esta inclusão não implica, todavia, que se considere que ao particular apenas se possa cobrar o pagamento correspondente ao prejuízo que a existência das condutas implique para o fim com que o domínio púbico viário foi constituído, ou seja, a circulação viária, posição sustentada por José Robin de Andrade, “Taxas Municipais – Limites à sua Fixação (Parecer Jurídico)”, in Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, n.º 8, Dezembro de 1997, pág. 74. Tal posição conduziria, em rigor, à gratuitidade da utilização do subsolo, ou, como sustenta este autor, à possibilidade de apenas ser cobrado ao particular um valor simbólico, se aquele prejuízo fosse nulo ou irrelevante. Também não implica que se não possa reconhecer ao subsolo um valor económico autónomo em relação ao solo, reconhecimento necessário em virtude de o subsolo poder ser utilizado separadamente do solo – como sucede, justamente, com as condutas que agora estão em causa e com uma multiplicidade de outras hipóteses, como todos sabem. No parecer junto aos autos a fls. 579, da autoria de António da Gama Lobo Xavier e Paulo Castro Rangel, aliás, chama-se a atenção para que a nova Lei das Finanças Locais (a Lei n.º 42/98, de 6 e Agosto) reconhece, na al. c) do seu artigo 19º, a autonomia do valor económico do subsolo. Ora cabe perguntar se não deverá até considerar-se que a boa gestão do interesse público exige das entidades titulares de tal domínio a sua administração mais racional do ponto de vista económico, cobrando pela sua utilização o correspondente ao valor que proporcionam aos interessados, valor a que se poderá chegar, nomeadamente, por confronto com o que lhes custaria a utilização de subsolo privado (no caso das condutas de combustível, o que teriam que pagar aos proprietários dos terrenos correspondentes) ou o transporte por meios alternativos (por estrada, por exemplo), ou ainda considerando outras utilizações possíveis do subsolo que ficam excluídas. O Tribunal não considera, assim, que considerar o valor económico autónomo do subsolo para o cálculo do valor da taxa implique o risco de “subverter o próprio conceito de taxa”, como ponderam Sérvulo Correia e Mafalda Carmona, em parecer junto aos autos a fls. 1506.
10. Ora a verdade, como se viu, é que uma das hipóteses susceptíveis de legitimar a cobrança de uma taxa é, justamente, a da utilização de um bem do domínio público; pela natureza da contraprestação da entidade pública está pois, garantida a correspectividade característica da taxa. Resta, assim, apurar se os critérios fixados para a determinação do seu montante são de tal forma inadequados que ponham em causa essa correspectividade, de modo a que se possa concluir que não respeitam o seu significado material, ou lesam de forma inaceitável o princípio da proporcionalidade. Como resulta da leitura das normas em apreciação, os critérios ali definidos são o do volume ocupado (que se calcula tendo em conta o comprimento e o diâmetro das condutas) e o da actividade económica desenvolvida pelo particular (cujo conhecimento resulta de se considerarem o destino e a natureza do líquido transportado). Não compete ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre se tais critérios, definidos pelo autor das normas dentro do exercício da sua liberdade de conformação, são ou não os que melhor permitem determinar o efectivo valor do bem – público – reservado à utilização privativa do particular interessado; apenas lhe incumbe verificar a eventual ocorrência de uma manifesta desadequação que ponha em causa a correspectividade material entre o tributo e a contraprestação. E é essa manifesta desadequação que, claramente, não ocorre, quando o objectivo é encontrar o valor económico da utilização da porção de subsolo afecta à instalação e manutenção das condutas de combustível. A sentença recorrida, partilhando a opinião expressa por José Robin de Andrade
(op. cit., pág. 74 e segs.), entendeu que considerar para o cálculo do montante a pagar a natureza do líquido que circula nas condutas e a actividade económica do particular demonstra que é a respectiva capacidade contributiva que releva e que, portanto, o município criou, não uma taxa, mas um verdadeiro imposto; para que assim não fosse, seria necessário que aquele cálculo se efectuasse tendo, apenas, em conta o volume de subsolo ocupado com as condutas, porque é esse volume que permite determinar o prejuízo que a ocupação acarreta para a circulação rodoviária. A verdade, porém, é que não se vê por que razão é que o maior ou menor volume das condutas há-de causar maior ou menor prejuízo para a circulação, uma vez que elas se encontram no subsolo; mais conforme com essa determinação seria, porventura, a relevância da natureza do líquido contido nas condutas, nomeadamente por permitir, por essa via, distinguir líquidos susceptíveis de prejudicar o solo (por serem poluentes, e em maior ou menor grau, por exemplo) dos que não o são.
Em suma, o Tribunal entende que os critérios constantes das normas em apreciação permitem avaliar a vantagem individualizada que o particular retira do uso privativo do subsolo do domínio público de que beneficia, vantagem essa que há que compensar mediante o pagamento do tributo correspondente. Inaceitável seria que o valor a pagar fosse meramente simbólico, por implicar a reserva sem contrapartida aos beneficiários de vantagens proporcionadas por bens públicos. Como escreveu Marcello Caetano, (Manual de Direito administrativo, II, 3ª reimp. da 10ª edição., Coimbra, 1986, págs. 943-944), “O uso privativo, ao contrário do uso comum, não é em regra gratuito: os particulares são obrigados ao pagamento de taxas, calculadas em função da área a ocupar e do valor das utilidades proporcionadas”; em nota a esta afirmação, acrescentou que se admitem isenções ou reduções “a favor das pessoas colectivas de direito público ou de particulares para fins de beneficiência” (nota 1 da pág. 944). Há, pois, que concluir que não há razões para considerar que tais critérios se revelem inadequados à concretização do sinalagma característico das taxas, o que permite afastar a acusação de inconstitucionalidade orgânica das normas que os definem.
11. A sentença recorrida aponta ainda às mesmas normas o vício da inconstitucionalidade material, seja por violação o princípio da igualdade, seja por infracção do princípio da proporcionalidade. Considera, em primeiro lugar, violado o princípio da igualdade porque entende que, “pese embora os aumentos aprovados se apliquem a muitas outras situações, a alteração de valores fixada para as outras condutas é praticamente irrisória quando comparada com o aumento destinado às condutas utilizadas pela impugnante”. O Tribunal Constitucional já se pronunciou inúmeras vezes sobre as exigências do princípio constitucional da igualdade, salientando repetidamente que significa, em síntese, a proibição do arbítrio. Assim, no Acórdão n.º 319/2000 (Diário da República, II série, de 18 de Outubro de 2000), para cujas considerações agora se remete, salientou-se, mais uma vez, que o princípio da igualdade “não anula a liberdade de conformação do legislador” e que, como se escreveu no Acórdão n.º
563/96 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33º, pág. 47 e segs.),implica «que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento desigual para as situações de facto desiguais (proibindo, inversamente, o tratamento desigual de situações iguais e o tratamento igual das situações desiguais) - cfr., entre tantos outros, e além do já citado acórdão nº 186/90, os acórdãos nºs. 39/88, 187/90, 188/90, 330/93, 381/93, 516/93 e 335/94, publicados no referido jornal oficial, I Série, de 3 de Março de 1988, e II Série, de 12 de Setembro de 1990, 30 de Julho de 1993, 6 de Outubro do mesmo ano, e 19 de Janeiro e 30 de Agosto de 1994, respectivamente», mas «não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, “razoável, racional e objectivamente fundadas”, sob pena de, assim não sucedendo, “estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes”, no ponderar do citado acórdão nº 335/94. Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar, diz-nos J.C. Vieira de Andrade – Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 299).
Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como “princípio negativo de controlo” ao limite externo de conformação da iniciativa do legislador - cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. Cit., pág. 127 e, por exemplo, os Acórdãos nºs. 157/88, publicado no Diário da República, I Série, de 26 de Julho de 1988, e os já citados nºs. 330/93 e 335/94 - sem que lhe retire, no entanto, a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou mais) grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e jurídicas postadas face a um determinado referencial (“tertium comparationis”). A diferença pode, na verdade, justificar o tratamento desigual, eliminado o arbítrio (cfr., a este propósito, Gomes Canotilho, in – Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124, pág. 327; Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, pág. 425; acórdão nº 330/93).» Ora as exigências do princípio da igualdade não são infringidas pela diferença apontada na sentença, que é uma mera consequência da alteração dos critérios de cálculo.
12. Finalmente, há que considerar o princípio da proporcionalidade, que a sentença recorrida igualmente considera infringido. Trata-se de um princípio que também já foi objecto de inúmeras considerações pelo Tribunal Constitucional. Assim, e recorrendo ao Acórdão n.º 187/2001
(Diário da República, II série, de 26 de Junho de 2001), cabe recordar que «o princípio da proporcionalidade, em sentido lato, pode (...) desdobrar-se analiticamente em três exigências da relação entre as medidas e os fins prosseguidos: a adequação das medidas aos fins; a necessidade ou exigibilidade das medidas e a proporcionalidade em sentido estrito, ou “justa medida”. Como se escreveu no (...) Acórdão n.º 634/93, invocando a doutrina:
'o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).'»
Ora cumpre reconhecer que, como se afirma na referida sentença, foi consideravelmente aumentado o valor da taxa a pagar pelo particular, sem que tal aumento tenha sido acompanhado de uma qualquer alteração na utilização do subsolo; e que é exacto que ao longo dos anos o valor inicialmente fixado foi sendo actualizado, como frisa a recorrida, nos termos previstos nas diversas versões do Regulamento. Estes aumentos resultantes de meras actualizações daquele valor nada relevam, porém, no presente contexto, e não se podem sequer comparar com o que agora nos ocupa. A verdade, todavia, é que a afirmação da violação da proporcionalidade, constante, quer da sentença, quer das alegações da recorrida, não é acompanhada de elementos que permitam ao Tribunal Constitucional qualquer apreciação. Não é do facto de não ter existido nenhuma alteração na prestação da Câmara que, necessariamente, se pode concluir pela violação da proporcionalidade; seria necessário, para o efeito, que tivesse sido feita a demonstração de que há uma desproporção intolerável entre a quantia a pagar e, por exemplo, o montante que o particular teria de desembolsar se recorresse a outro meio alternativo de circulação, ou se tivesse de pagar a utilização de subsolo sob propriedade privada. Não podendo, pois, o Tribunal Constitucional concluir pelo manifesto desajustamento entre o montante a pagar a título de taxa pela utilização do subsolo do domínio público municipal e o valor que o particular retira dessa utilização, não pode igualmente concluir pela inconstitucionalidade das normas em apreciação por violação do princípio da proporcionalidade.
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucionais as normas constantes dos n.ºs 4 e 7 do artigo 36° do Anexo I ao Regulamento e Tabela de Taxas e Licenças da Câmara Municipal de Matosinhos, na redacção resultante da deliberação aprovada em de 28 de Dezembro de 1998, publicada no aviso n.º 1610/99, do Apêndice n.º 31 ao DR n.º 61, II Série, de 13/03/99; b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso, determinando que a sentença recorrida seja reformulada de acordo com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 14 de Julho de 2003 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Gil Galvão Luís Nunes de Almeida