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Processo n.º 749/02
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por sentença do 2ª Juízo Criminal da Comarca de Lisboa de 11 de Julho de 2001, constante de fls. 244 e seguintes, A. foi condenado “como autor material de um crime de subtracção de menor, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 249º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de dez meses de prisão”, tendo a mesma sido declarada perdoada, nos termos dos artigos 1º, n.º 1, e 4º da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, “sob a condição resolutiva de o arguido não praticar infracção dolosa nos três anos subsequentes ao dia 13 de Maio de 1999”.
Em 4 de Outubro de 2002 foi proferido despacho com o seguinte teor:
“Os arguidos estiveram presentes na audiência de julgamento (fls.
241).
O arguido A. foi condenado em pena de prisão por sentença de
11.07.2001, sendo-lhe perdoada essa pena sob a condição de não praticar infracções nos três anos seguintes a 13.5.1999, isto é, até 13.5.2002.
Constata-se pelo CRC junto que o perdão deverá ser revogado porque o arguido cometeu factos ilícitos em 7.6.2000 (fls. 283).
O arguido ausente na audiência de julgamento deve ser notificado da sentença, nos termos do artigo 334º, n.º 6, do CPP, na versão do DL n.º
320/2000, de 15.12.
O arguido presente na audiência de julgamento e ausente na audiência de leitura de sentença é considerado notificado da sentença ‘depois de esta ter sido lida perante o defensor nomeado ou constituído’ (artigo 373º, n.º 3, do CPP, na redacção da Lei n.º 59/98, de 25.8).
No caso dos autos, o arguido esteve na audiência de julgamento, mas não esteve na audiência de leitura de sentença e, por isso, nos termos do disposto no artigo 373º, n.º 3, do CPP, na redacção da Lei n.º 59/98, de 25.8, não foi notificado pessoalmente da sentença.
Contudo, o arguido devia tê-lo sido, porquanto o disposto no artigo
373º, n.º 3, do CPP, na redacção da Lei n.º 59/98, de 25.8, viola o princípio da igualdade, as garantias de defesa e o direito ao recurso consagrados nos artigos
13º e 32º, n.ºs 1 e 7, da CRP.
Com efeito, resulta da dita disposição que o arguido não toma conhecimento pessoal em momento algum da censura penal resultante da condenação e, designadamente, dos termos condicionais em que lhe foi concedido o perdão. A situação arbitrária em que é colocado o arguido resulta evidente se se ponderar que o arguido ausente na leitura da sentença fica em uma situação de desigualdade no que toca ao exercício do direito de recurso, vendo correr contra si o prazo de recurso de cujo início não teve sequer conhecimento.
Pelo exposto, não aplico o artigo 373º, n.º 3, do CPP, na redacção em vigor, por o julgar inconstitucional e declaro o arguido não notificado da sentença e esta não transitada. Em consequência, ordeno a notificação da sentença ao arguido através da OPC e por ora não conheço da eventual revogação do perdão, por a sentença que o aplicou não ter ainda transitado.”
2. Notificado do mencionado despacho, veio o Ministério Público, “ao abrigo do disposto no art. 280º, n.º 1, al. a), da Constituição da República Portuguesa – recorrer obrigatoriamente” do mesmo.
Tendo sido convidado a completar o requerimento de interposição de recurso, nos termos conjugados dos nºs 1, 5 e 6 do artigo 75º-A da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, o recorrente fê-lo nos seguintes termos:
“O presente recurso, fundado na alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, tem como objecto a apreciação da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 373º, n.º 3, do Código de Processo Penal, enquanto dispensa a notificação pessoal da sentença condenatória ao arguido que não tenha estado presente na audiência de leitura da sentença; na verdade, tal norma foi desaplicada por se considerar que tal regime viola o princípio da igualdade, as garantias de defesa e o direito ao recurso, consagrados nos artigos 13º, e 32º, n.ºs 1 e 7 da Constituição da República Portuguesa.”
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público apresentou as suas alegações, que concluiu do seguinte modo:
“1 – A norma constante do artigo 373º, n.º 3, do Código de Processo Penal, interpretada como consagrando que o arguido – que participou em toda a audiência de produção de prova e foi notificado da data em que iria ter lugar a leitura da sentença, tendo faltado a este acto por motivo de invocada doença – sendo representado por defensor oficioso, mandado em substituição e por conta do primitivo defensor, não viola os princípios da igualdade e das garantias de defesa.
2 – Na verdade, neste circunstancialismo processual, é do pleno conhecimento do arguido a data em que ocorrerá a publicitação e depósito da sentença, a ela tendo fácil acesso, e não havendo qualquer motivo para pôr em causa o cumprimento dos deveres funcionais e deontológicos do defensor que o representou no acto.
3 – termos em que deverá proceder o presente recurso.”
Apesar de devidamente notificado, o recorrido não alegou.
4. É o seguinte o texto da norma desaplicada (artigo 373º, n.º 3, do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto):
“Artigo 373º
(Leitura de sentença)
...
3 – O arguido que não estiver presente considera-se notificado da sentença depois de esta ter sido lida perante o defensor nomeado ou constituído.”
Constitui, assim, o objecto deste recurso a norma constante do n.º 3 do artigo
373º do Código de Processo Penal, enquanto considera notificado da sentença condenatória o arguido que, tendo estado presente na audiência de produção de prova, na qual foi marcada a data para a leitura da sentença, não compareceu na audiência em que se procedeu a essa leitura, à qual assistiu defensor indicado pelo seu anterior defensor para o substituir. O despacho recorrido desaplicou esta norma por considerar que viola o princípio da igualdade, as garantias de defesa e o direito ao recurso, consagrados nos artigos 13º, e 32º, n.ºs 1 da Constituição da República Portuguesa.”
5. O Tribunal Constitucional já se pronunciou, por diversas vezes, sobre as exigências que devem rodear o acto de notificação do arguido da sentença que o condena, tendo em conta, em particular, as exigências decorrentes da protecção constitucional do direito de defesa – incluindo o direito ao recurso (n.º 1 do artigo 32º da Constituição). Torna-se, assim, conveniente realçar as particularidades do caso de que nos ocupamos, já que apresenta, simultaneamente, semelhanças e diferenças com outras hipóteses já apreciadas.
6. Assim, e em primeiro lugar, cumpre frisar que, no caso, o arguido apenas não assistiu à leitura da sentença; esteve presente na audiência de produção de prova, na qual, aliás, foi marcada a data da leitura da sentença (cfr. acta de fls. 240). Ocorre, assim, uma diferença relativamente aos casos em que foram proferidos os Acórdãos n.ºs 274/03 (Diário da República, II série, de 5 de Julho de 2003) e
278/03, que para ele remete, nos quais o Tribunal Constitucional afirmou o seguinte:
“nos casos em que o arguido foi julgado na sua ausência (e é esta a hipótese do caso sub specie, pois que se não trata, no mesmo, de uma situação em que o arguido esteve presente nas sessões de audiência, excepto na da leitura da sentença, situação essa em que, eventualmente, se poderia colocar a questão de saber se do nº 3 do art. 373º da indicada versão do Código de Processo Penal resultava a desnecessidade de notificação pessoal desse arguido da sentença) o mesmo deve ser notificado pessoalmente da sentença logo que for detido ou se apresentar voluntariamente, não se podendo contar o prazo para impugnar a sentença ou para requerer novo julgamento se essa notificação não for levada a efeito . Mas, se assim é, então concluir-se-á que se não vislumbra em que medida é que tais normativos poderão contender com o disposto nos números 1 e 6 do artigo 32º da Constituição. Em consequência, a interpretação que se deixou efectuada, porque se não mostra desconforme com indicados preceitos constitucionais, deverá ser aquela que, no vertente processo, deverá ser aplicada (nº 3 do art. 80º da Lei nº 28/82).
9. Em face do exposto, o Tribunal determina que, in casu, sejam os preceitos constantes dos artigos 334º, nº 8, e 113º, nº 7, da versão do Código de Processo Penal emergente da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, correspondentes às dos artigos
334º, nº 6, e 113º, nº 9, daquele Código resultante do Decreto-Lei nº
320-C72000, de 15 de Dezembro, conjugadas com o nº 3 do art. 373º, ainda do mesmo Código, interpretados no sentido de que consagram a necessidade de a decisão condenatória ser pessoalmente notificada ao arguido ausente, não podendo, enquanto essa notificação não ocorrer, contar o prazo para ser interposto recurso ou requerido novo julgamento.”
A diferença entre o caso sobre que incidiu o citado Acórdão n.º
274/03 e a dos presentes autos resulta precisamente da circunstância de, naquele, o arguido não se encontrar presente, quer na audiência de julgamento, quer na audiência de leitura de sentença, enquanto neste último esteve presente na audiência de julgamento, em que ocorreu toda a produção de prova, apenas se encontrando ausente na de leitura de sentença. Assim, como observa o Ministério Público nas suas alegações, “tendo estado presente no acto de encerramento da produção de prova em audiência, teve naturalmente o arguido conhecimento pessoal da data em que iria ocorrer a leitura da sentença”. Note-se, aliás, que 5 dias após a leitura da sentença o arguido veio justificar a falta à audiência (cfr. requerimento entrado a 16 de Julho de 2001, a fls.
259). Ou seja: no caso dos autos, o arguido tomou pessoalmente conhecimento da data da leitura da sentença antes da sua efectivação e teve conhecimento imediatamente depois de que ela efectivamente se realizou.
7. Em segundo lugar, o arguido esteve representado na audiência de leitura da sentença por defensor indicado pelo defensor oficioso que acompanhara a audiência anterior, e não por um defensor ad hoc, designado pelo tribunal para aquela sessão. Este ponto é relevante para comparar a hipótese em apreciação com as que foram consideradas nos Acórdãos n.ºs 59/99 (Diário da República, II série, de 30 de Março de 1999) e 109/99 (Diário da República, II série, de 15 de Junho de 1999). No Acórdão n.º 59/99, o Tribunal julgou inconstitucional a norma do artigo 113º, n.º 5, do Código de Processo Penal (a que corresponde o artigo 113º, n.º 7, na redacção da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, e o artigo 113º, n.º 9, na redacção do Decreto-Lei n.º 320-C/2000, de 15 de Dezembro), “quando interpretada no sentido de que a decisão condenatória proferida por um tribunal de recurso pode ser notificada apenas ao defensor que ali foi nomeado para substituir o primitivo defensor que, embora convocado, faltou à audiência, na qual também não esteve presente o arguido em virtude de não ter sido, nem dever ser, para ela convocado”. No Acórdão n.º 109/99, por sua vez, o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional a norma que se extrai da leitura conjugada dos artigos 411º, n.º 1, e 113º, n.º 5, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que “com o depósito da sentença na secretaria do tribunal, o arguido que, justificadamente, não esteve presente na audiência em, que se procedeu à leitura pública da mesma, deve considerar-se notificado do seu teor, para o efeito de, a partir desse momento, se contar o prazo para recorrer da sentença, se, nessa audiência, esteve presente o seu mandatário”. Escreveu-se então o seguinte: “esta norma importará um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido (são palavras do Acórdão n.º 61/88)? Nos dizeres do Acórdão n.º 40/84: violará ela aquele núcleo essencial que constitui o cerne do artigo 32º, n.º 1, da Constituição? A resposta é negativa. De facto, estando o defensor do arguido presente na audiência, em que se procede
à leitura pública da sentença e ao seu depósito na secretaria do tribunal, pode aí ficar ciente do seu conteúdo. E, de posse de uma cópia dessa sentença – que a secretaria lhe deve entregar de imediato - pode, nos dias que se seguirem, relê-la, repensá-la, reflectir, ponderar e decidir, juntamente com o arguido, sobre a conveniência de interpor recurso da mesma. Assim sendo e tendo em conta que a decisão sobre a eventual utilidade ou conveniência de interpor recurso, em regra, depende mais do conselho do defensor do que, propriamente, de uma ponderação pessoal do arguido, há que concluir que este pode decidir se deve ou não defender-se, interpondo, se quiser, em prazo contado da leitura da sentença que o condene, o respectivo recurso. E pode tomar essa decisão com inteira liberdade, sem precipitações e sem estar pressionado por qualquer urgência. O processo continua, pois, a ser a due process of law, a fair process.”
8. Em terceiro lugar, a sentença foi depositada na secretaria no dia em que foi lida em audiência, como igualmente recorda o Ministério Público nas alegações:
“a sentença condenatória, lida no termo da audiência final, foi na mesma data depositada na secretaria e logo incorporada nos autos”.
9. Daqui se conclui que o arguido dispôs de todas as condições para ter conhecimento oportuno da sentença que o condenou: esteve presente na audiência de julgamento; teve conhecimento pessoal da data em que iria ocorrer a leitura de sentença, que veio a realizar-se na data marcada e na presença do defensor oficioso indicado pelo defensor que acompanhou a audiência de julgamento; e a sentença foi, na mesma data, depositada na secretaria do tribunal.
Não encontra, assim, o Tribunal Constitucional qualquer motivo para considerar que a norma cuja aplicação foi recusada afronta as garantias de defesa ou o direito ao recurso, consagrados no n.º 1 do artigo 32º da Constituição.
10. Também não se considera violado o princípio da igualdade. Contrariamente ao que é afirmado no despacho recorrido, não é possível entender que o arguido “fica em situação de desigualdade no que toca ao exercício do direito ao recurso, vendo correr contra si o prazo de recurso de cujo início não teve sequer conhecimento”.
Com efeito, dificilmente se concebe que um arguido medianamente diligente, colocado numa situação como aquela que aqui se verificou, não tenha conhecimento de que foi proferida a sentença condenatória, sentença que lhe era facilmente acessível em tempo útil.
Nem se vê, por isso mesmo, que a norma em apreciação consagre uma solução arbitrária ou discriminatória. A presença do seu defensor, acompanhada do conhecimento, pelo arguido, da data da realização da audiência para a leitura da sentença, que é depositada na secretaria, são garantias de que o arguido dispõe, tal como disporia se tivesse assistido à leitura, do acesso à sentença em condições de lhe permitir, se assim o entender, exercer o seu direito ao recurso.
11. Assim, decide-se conceder provimento ao recurso, devendo o despacho recorrido ser reformulado em conformidade com o aqui decidido quanto à questão da constitucionalidade.
Lisboa, 24 de Setembro de 2003
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Gil Galvão Luís Nunes de Almeida