Imprimir acórdão
Proc. nº 280/03
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. Inconformado com a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de Fevereiro de 2003 (cfr. fls. 5 a 59 e, especialmente, fls. 56 a 58), na parte em que rejeitou um recurso interlocutório que o arguido e ora reclamante A. havia interposto de um despacho que lhe havia indeferido um requerimento para que fosse ordenada a comparência em audiência de julgamento dos “infiltrados”, pretendeu o mesmo recorrer daquela decisão para o Tribunal Constitucional, o que fez através de um requerimento que tem o seguinte teor (fls. 118):
“A., com os sinais dos autos, não se conformando com o douto acórdão na parte em que rejeitou o seu recurso interlocutório, invocando para essa efeito o disposto no artigo 400º, n.º 1, al. a) do CPP; do mesmo vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que faz nos seguintes termos:
- O recurso é interposto ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, al. b) da Lei 28/82 de
15/9.
- Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da norma ínsita no artigo
400º, n.º 1, al. a) do CPP na interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida, isto é, considerando que se integra na categoria de despacho de mero expediente a decisão judicial exarada nos termos narrados no n.º 1 da sua motivação, decisão que contra lei expressa (artigo 16º da Lei 93/99 de 14/7), com audição do M.P. e sem audição do recorrente, determinou que se instruísse o processo para a audição de testemunhas com reserva do conhecimento da identidade, quando não se verificam as condições que permitem tal audição.
- Tal norma, da forma e com a interpretação que foi dada, violou o art. 32º, n.º
1 e 5 da CRP.
- A questão da inconstitucionalidade não foi suscitada anteriormente, porquanto a interpretação dada à norma na decisão recorrida foi de todo imprevisível, não podendo razoavelmente o recorrente contar com a sua aplicação. O recurso foi admitido. Não lhe era exigível, pois, que antevisse a possibilidade da aplicação da norma questionada ao caso concreto, de modo a impôr-lhe o ónus de suscitar a questão anteriormente”.
2. O recurso não foi, porém, admitido, por decisão do Ex.mo Conselheiro Relator do processo no Supremo Tribunal de Justiça (fls. 119 e 120), que se fundou, para tanto, na seguinte fundamentação:
“(...) Mas não se admite tal recurso, por duas ordens de razões. Em primeiro lugar: como se viu o recorrente restringiu expressamente o recurso à questão do recurso interlocutório, não impugnando o restante do decidido no acórdão deste Supremo Tribunal. Ora com o trânsito do mesmo na parte não impugnada, e por tal, carece de sentido útil o conhecimento do recurso interlocutório, por se ter entendido (com trânsito) que a prova era válida e legal. Ora, como tem entendido o Tribunal Constitucional, não devem ser conhecidos os recursos, quando da decisão a tomar não resulte, no caso sujeito, efeito útil. Em segundo lugar: como se viu, o recorrente invoca tratar-se o acórdão recorrido, na parte impugnada uma decisão surpresa, não lhe sendo exigível que a antecipasse, por forma a suscitá-la no processo. Mas tal não é exacto. Essa questão foi suscitada na resposta do M.P. à motivação do recurso interlocutório e pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto na audiência, em alegações orais, produzidas antes das alegações orais do requerente que, não obstante não suscitou, quando podia e devia, a questão de constitucionalidade que agora quer ver apreciada (cfr. fls. 1463/65), como se documenta na decisão recorrida”.
3. Inconformado com esta decisão que não lhe admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional, apresentou o recorrente a presente reclamação, que fundamentou nos seguintes termos:
“1 – Sustenta a decisão reclamada que, por não ter impugnado, na globalidade, o acórdão do STJ, o mesmo transitou em julgado na parte não impugnada, pelo que carece de sentido o recurso.
2 – Porém, tal não é verdade.
3 – É que o acórdão do STJ é um todo e a questão objecto do recurso – o recurso interlocutório – é uma questão prévia e, como tal, deveria ter sido decidida, à questão da validade da prova.
4 – tendo-se questionado o acórdão do STJ, na parte que de tal era passível, naturalmente, que não há trânsito em julgado, enquanto o segmento posto em crise não for decidido.
5 – Assim, se como se espera, lhe for dada razão na questão levantada, obviamente, o recurso terá efeito útil, já que obrigará o STJ a conhecer da questão que não quis conhecer antes e, se lhe for dada razão, obrigará à produção de prova, em primeira instância, nos termos reclamados na motivação do recurso interlocutório.
6 – Sustenta, mais, a decisão reclamada que a decisão do STJ não foi uma decisão surpresa, porquanto já tinha sido levantada na resposta do MP à motivação do recurso e em alegações orais pelo Sr. Procurador Geral-Adjunto, em audiência.
7 – Não deixa de ser surpreendente, apesar de ser verdade que na contra-motivação se escrevera sobre o assunto e, em alegações orais se tenha, igualmente, falado do mesmo, que se exija que o recorrente pudesse tomar posição sobre o mesmo, para além da posição que, igualmente, assumiu nas alegações orais, em defesa da sua tese, já que, processualmente, não existe resposta à contra-motivação e as alegações orais não ficam documentadas.
8 – É que é surpresa absoluta, tendo sido tal a tramitação processual, e visto a argumentação aduzida na contra-motivação escrita, aceitar que o STJ considere que um despacho dos do que estão em discussão, seja destinado «...a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes...», que é a forma como a lei define o tipo de despachos onde se quer enquadrar aquele: despacho de mero expediente (artigo 156º, n.º 4 do CPC).
9 – Estamos perante o tribunal que tem quase a última palavra sobre o direito, e tal despacho, claramente, interfere no conflito de interesses entre as partes”.
4. Já neste Tribunal foram os autos com vista ao Ministério Público, que se pronunciou no sentido da improcedência da reclamação, posição que fundamentou nos seguintes termos:
“A presente reclamação é claramente improcedente, já que se não verifica um pressuposto de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta interposto: a suscitação durante o processo da questão de inconstitucionalidade normativa que integra o respectivo objecto, para o que teve o arguido-reclamante plena oportunidade processual: na verdade, a questão de irrecorribilidade do despacho impugnado através do recurso interlocutório do arguido já havia sido suscitada pelo M.P. no âmbito da contramotivação que apresentara (cf. fls. 57 dos autos). Ora, comportando a normal tramitação do recurso na audiência que decorreu perante o Supremo a produção de alegações orais pelos sujeitos processuais, teve o arguido plena oportunidade para questionar, sob o prisma da constitucionalidade, tal entendimento, sendo manifesta a eventualidade de aquele Tribunal vir a aderir a um tal entendimento e qualificação, requerendo que ficasse consignado em acta a suscitação desta questão (cf. acs. 637/96 e
397/97). O não cumprimento pelo recorrente de tal ónus inviabiliza, pois, a apreciação do recurso interposto”.
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentação.
5. A admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 pressupõe, designadamente, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a questão de constitucionalidade normativa que pretende ver apreciada, constituindo desde há muito jurisprudência assente neste Tribunal
(veja-se, entre muitos nesse sentido, os acórdãos nºs 62/85, 90/85 e 450/87, in Acórdãos do Tribunal Constitucional., 5º vol., p. 497 e 663 e 10º vol., pp. 573, respectivamente) que, em princípio, tal implica que a questão de constitucionalidade seja suscitada antes da prolação da decisão recorrida.
Em consequência, tem este Tribunal afirmado repetidamente que, em regra, o requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional não constitui meio ou momento processualmente adequado para suscitar, pela primeira vez, a questão de inconstitucionalidade - como, in casu, aconteceu.
Somente tem este Tribunal admitido que a questão de constitucionalidade seja suscitada já depois de proferida a decisão recorrida em hipóteses, de todo em todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não tenha tido oportunidade processual de o fazer antes, ou em que o poder jurisdicional, por força de norma processual específica, não se tenha esgotado com a prolação da decisão recorrida.
E, nessa sequência, tem o Tribunal entendido que uma das situações em que o interessado não dispõe de oportunidade processual para suscitar a questão da constitucionalidade antes de esgotado o poder jurisdicional é precisamente a daqueles casos em que é confrontado com uma situação de aplicação ou interpretação normativa, feita pela decisão recorrida, de todo imprevisível ou inesperada, em termos de não lhe ser exigível que a antecipasse, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da prolação dessa decisão.
Importa, pois, decidir se é essa a hipótese que se verifica nos autos, como sustenta o ora reclamante.
Cremos que não.
Desde logo a aplicação pela decisão recorrida do artigo 400º, n.º 1, al. a), do CPP, na dimensão normativa que vem questionada pelo reclamante, não pode, manifestamente, qualificar-se como imprevisível ou inesperada, em termos de não ser exigível a sua antecipação. É que – como, bem, se refere na decisão reclamada – a aplicação de tal preceito, com o sentido com que veio a ser aplicado pelo Supremo Tribunal de Justiça, já havia sido expressamente defendida pelo Ministério Público, quer na contra-motivação ao recurso interlocutório apresentado pelo ora reclamante, quer nas alegações orais produzidas em audiência perante o Supremo.
Acresce que, ao contrário do que sustenta, o ora reclamante teve efectivamente oportunidade processual de suscitar a questão constitucionalidade que agora pretende ver apreciada antes de ser proferida a decisão recorrida. Como, bem, demonstram a decisão reclamada e a alegação do Ex.mo Representante do Ministério Público neste Tribunal, o ora reclamante podia – e devia – tê-lo feito nas alegações orais que apresentou no Supremo Tribunal de Justiça, requerendo então que essa suscitação ficasse consignada em acta.
Como se ponderou no acórdão n.º 397/97 (Diário da República, II Série, de 17 de Julho de 1997), em jurisprudência que mantém inteira validade, “é certo que a suscitação de inconstitucionalidade pode ocorrer numas alegação orais, que aliás traduzem um momento anterior à decisão. Porém, nesta hipótese, sobre a parte interessada nessa suscitação impende o ónus de fazer consignar na acta, ditando o pertinente requerimento, a aludida invocação”.
Assim, não tendo sido suscitada pelo recorrente durante o processo a questão da constitucionalidade que agora pretende ver apreciada, conforme exige a al. b) do nº 1 do art. 70º da lei do Tribunal Constitucional, ao abrigo da qual é interposto o recurso, não pode, efectivamente, o mesmo ser admitido.
III. Decisão.
Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 9 de Maio de 2003 Gil Galvão Bravo Serra Luís Nunes de Almeida