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Proc. n.º 465/00
2ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – O relatório
1. A., juiz de direito, identificado com os demais sinais dos autos, recorre para este Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na al. b) do n.º 1 do art.º 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, sucessivamente alterada
(doravante designada apenas por LTC), do acórdão da Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça (doravante STJ), que negou provimento ao recurso contencioso que aquele havia interposto da deliberação do Conselho Superior da Magistratura, de 18/01/2000, que «mandou instaurar procedimento disciplinar contra o ora recorrente, sem prejuízo da presunção de inocência até à decisão final por indícios de factos (morosidade) susceptíveis de integrar responsabilidade do juiz a quem coube a direcção da fase instrutória do processo conhecido por «”...............”».
2. O recorrente pede que se aprecie a inconstitucionalidade do art.º
111º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ), aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de Julho e sucessivamente alterada, na interpretação que lhe foi dada e aplicada pelo STJ no acórdão recorrido, segundo a qual o CSM poderá instaurar processo disciplinar contra juiz de direito dos tribunais judiciais sem dependência de pedido, alegando que a norma, assim entendida, viola os art.os
202.º, n.os 1 e 2, 212.º, n.os 1 e 3, 217.º, n.os 1 e 3 e 218.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e cujas directivas determinam o referente do art.º 168.º, n.º 1 do EMJ.
3. O recorrente contesta o acórdão recorrido com base nas razões que sintetiza nas seguintes proposições conclusivas das suas alegações de recurso:
«(a) Na leitura que o Acórdão do STJ, recorrido, deu dos artigos
111.º e 149.º/a do EMJ, é permitida ao CSM acção disciplinar oficiosa contra os magistrados judiciais.
(b) Tal interpretação dos preceitos torna-os inconstitucionais, por contrariedade com os art.os 202.º/1.2, 203.º, 215.º/1 ss., 217.º/1.3, 218.º/1 e
218.º/2 CRP.
(c) Os quais fazem emergir sistemicamente uma directiva constitucional que impõe a vigência do princípio do pedido nas causas disciplinares contra os juízes;
(d) Na verdade, os Magistrados Judiciais, como titulares do órgão de soberania Tribunais, um e cada um independentes, têm de ter um estatuto de pares, sem subordinação interna;
(e) E a característica disciplinar oficiosa emerge, pelo contrário, num corpo de subordinados, tal como são os funcionários da Administração Pública;
(f) Aliás, essa vigência do princípio do pedido, que se conclama, constitui garantia fundamental implícita, ordenada à protecção do jus dicere.... nomeadamente contra as pressões dos media.
(g) Recobra sentido pleno na substância do estatuto (de juízes) que a Constituição outorga a todos os vogais do CSM (art.º 118.º/2 CRP)».
4. O recorrido Conselho Superior da Magistratura, em contra-alegações, ofereceu o mérito dos autos.
5. O acórdão recorrido estribou-se, em síntese, na consideração de que uma interpretação conforme à Constituição – e, no caso, ao seu art.º 217.º, n.º 3 - dos art.os 111.º, 149.º, al. a) e 168.º do EMJ leva à conclusão de que cabe ao CSM exercer a função disciplinar relativamente aos juízes, mesmo oficiosamente, não havendo qualquer violação desse inciso constitucional nem de quaisquer outras normas.
B – A fundamentação
6. A questão decidenda
É a de saber se a interpretação/aplicação feitas pelo Acórdão recorrido dos art.º 111.º e 149.º, al. a) do EMJ no sentido de ser de ser permitida ao CSM acção disciplinar oficiosa contra os Magistrados Judiciais violam as normas constitucionais dos art.os 202.º, n.os 1 e 2, 203.º, 215.º n.os
1 e ss., 217.º, n.os 1 e 3, 218.º n.º 1 e 218.º, n.º 2 da CRP.
7. Do mérito do recurso de (in)constitucionalidade
7.1. Segundo um enunciado simples, o raciocínio do recorrente assenta na seguinte argumentação: O CSM desenvolve uma actividade quase jurisdicional, a qual tem a sua máxima expressão no n.º 2 do art.º 218º da CRP, quando aplica a todos os vogais do Conselho, incluindo os não juízes, as regras sobre garantias dos juízes. Deste modo, esse Conselho participa da função jurisdicional e, por essa via, comunga do princípio da separação dos poderes, entre eles se contando os definidos nos art.os 203.º (independência dos tribunais), 205.º, n.º 2 (obrigatoriedade das decisões para todas as entidades públicas e prevalência sobre as de quaisquer outras autoridades), 215.º n.os 1 e 2 (unidade do corpo dos juizes dos tribunais judiciais), 217.º, n.os 1 e 3
(indicação do CSM como órgão a quem cabe proceder à nomeação, colocação, transferência e promoção dos juizes dos tribunais judiciais e ao exercício da acção disciplinar e prescrição de que cabe à lei definir as regras e determinar a competência para a colocação, transferência e promoção, bem como para o exercício da acção disciplinar em relação aos juizes dos restantes tribunais, com salvaguarda das garantias da Constituição), 218.º n.os 1 e 2 (composição do CSM e atribuição a todos o seus vogais das regras sobre garantias dos juízes). É devido à natureza de actos quase jurisdicionais que pratica que os actos do CSM são sindicados pelo STJ, nos termos do art.º 168º do EMJ, sob pena de, arredada que fosse essa sua qualidade, este preceito ser inconstitucional por violação do disposto no art.º 212.º, n.º 3 da CRP (reserva do juiz administrativo e fiscal). Ora, a jurisdição não actua oficiosamente, pois tal não está previsto no art.º
202º da Lei Fundamental, senão a requerimento da parte ou entidade equiparada
(M.º P.º, Inspectores Judiciais). Enquanto entendido em sentido contrário, como o foi, o art.º 111.º do EMJ é inconstitucional por violar este comando da lei fundamental.
7.2. Mas a argumentação do recorrente não merece acolhimento. Senão vejamos. O CSM é um órgão constitucional autónomo que foi criado logo na versão originária da Constituição, que remetia a sua composição para a lei, mas obrigando, desde logo, que parte dos seus membros fossem juízes (art.º 223.º n.º1). Só pela revisão constitucional de 1982 é que a Lei Fundamental passou a definir directamente a composição do CSM, constando hoje do art.º 218.º.
Segundo as palavras de J. J. Gomes Canotilho (cfr. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6ª edição, pp. 681), “os conselhos superiores de administração e de gestão das magistraturas apresentam-se, no figurino constitucional, como órgãos de defesa da independência externa dos magistrados relativamente a outros poderes estranhos à organização judiciária. No entanto, a sua composição indicia que não se trata de órgãos de autogoverno da magistratura ou do Ministério Público.
...
As funções dos conselhos superiores não podem perturbar a independência interna dos magistrados, isto é, o livre exercício da sua actividade sem quaisquer vínculos perante os órgãos dirigentes da magistratura ou dos tribunais superiores (a não ser os prescritos na lei)”. O CSM é, pois, um órgão de administração e de gestão dos magistrados. Mas embora tenha previsto a sua existência e forma de composição, a Constituição
não elencou todas as suas competências, deixando essa tarefa para o legislador ordinário - o art.º 149.º da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho (sucessivamente alterada). Todavia, apesar disso, é possível surpreender, na Lei Fundamental, a enunciação das suas competências mais importantes relativamente à administração e gestão dos magistrados. Elas constam, essencialmente, do art.º 217º, n.o 1 que assim dispõe:
“A nomeação, a colocação, a transferência e a promoção dos juízes dos tribunais judiciais e o exercício da acção disciplinar competem ao Conselho Superior da Magistratura, nos termos da lei” (n.º 1). O preceito atribui ao CSM, entre outras, a competência para o exercício da acção disciplinar contra os magistrados, nos termos a definir por lei. O comando constitucional não estabeleceu autonomamente qualquer pressuposto ou condição para o exercício da acção disciplinar, mormente aquele que o ora recorrente entende existir com foros constitucionais – um pretenso princípio da actuação do CSM apenas a pedido. Segundo a axiologia constitucional fundamentante da configuração do CSM, podemos afirmar que o princípio da oficiosidade do processo disciplinar está de acordo com a sua natureza de órgão de administração e de gestão dos magistrados. A responsabilidade disciplinar é a que decorre da condenação por uma infracção disciplinar. E segundo se estabelece no art.º 82º do EMJ “constituem infracção disciplinar os factos, ainda que meramente culposos, praticados por magistrados judiciais com violação dos seus deveres profissionais e os actos ou omissões da sua vida pública ou que nela se repercutam incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções”. Ora, cabendo, por força da Constituição, ao CSM a administração e gestão dos magistrados, estará na primeira linha das suas competências o exercício da acção disciplinar, a título oficioso, - e na prática da vida a título principal -, como modo de responsabilizar os magistrados que pratiquem factos susceptíveis de serem havidos como infracção disciplinar. A competência disciplinar é um atributo ou poder próprio de qualquer organização administrativa, sem o que as instituições dificilmente funcionariam. Sendo a administração desempenhada pelo CSM levada a cabo a título autónomo, só a ele poderá caber a competência disciplinar e esta envolve necessariamente o poder de agir oficiosamente sempre que se verifique uma infracção disciplinar, dado que esta representa uma violação ao dever de cumprir o serviço público que está cometido ao funcionário ou agente (magistrado). Como é evidente, extravasa a competência do CSM interferir com a independência interna ou endógena do juiz ou seja com o livre exercício da sua actividade de julgador a levar a cabo com respeito apenas pela lei e dentro dos seus limites e das regras extrajurídicas cujo uso a mesma lhe consinta, mormente na avaliação em termos objectivos da matéria de facto, de acordo com a sua consciência. Mas a oficiosidade ou a exigência de um acto propulsor externo da acção disciplinar em nada interferem com essa independência interna, na medida em que delas não resulta que sobre o juiz impenda a realização de qualquer concreto indirizzo quanto ao sentido da sua actividade como julgador. O CSM não desempenha qualquer actividade (quase) jurisdicional, como o recorrente defende, como modo de justificar o recurso dos seus actos que se encontra previsto no art.º 168º do EMJ. Os actos que pratica têm a natureza de actos administrativos, enquanto representando “estatuições autoritárias de efeitos jurídicos externos positivos ou negativos relativamente a um caso
(situação) individual e concreto/a praticadas por um agente da Administração no uso de poderes de Direito Administrativo (Cfr. Rogério Ehrhardt Soares, Direito Administrativo, Lições ao Curso Complementar, 1978, pp. 76 e art.º 120º do Código de Procedimento Administrativo), ao abrigo de disposições de direito administrativo. Enquanto actos de natureza administrativa, não poderiam deixar de ser contenciosamente sindicáveis, por força da garantia concedida no art.º 268.º n.º
4 da CRP. O referido art.º 168º do EMJ limita-se assim a ser uma mera concretização da garantia do direito ao recurso dos actos administrativos lesivos que se encontra consagrada no art.º 268.º n.º 4 da CRP. Por outro lado, as garantias que o art.º
218.º n.º 2 concede aos vogais do Conselho tendem apenas a dotá-los de condições de independência e de inamovibilidade, para poderem actuar melhor na administração e gestão dos juízes que integram o órgão tribunais. Ora, da atribuição destas garantias não terá, assim, de inferir-se qualquer natureza jurisdicional do acto praticado pelo órgão. Assim sendo, não será de concluir pela inconstitucionalidade, por ofensa do parâmetro do art.º 217.º, n.º 1 da CRP, dos preceitos da lei ordinária para a qual a Constituição remeteu a definição do regime disciplinar, e que se vê exercida nos art.os 110.º e ss. da referida Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, do qual resulte não ser obrigatória a formulação de pedido mediante a apresentação de requerimento do ofendido, do Ministério Público ou dos Inspectores Judiciais, como actos propulsores da acção disciplinar. Deste modo, não poderá assacar-se ao art.º 111.º do EMJ que se limita a dispor que “compete ao Conselho Superior da Magistratura a instauração de procedimento disciplinar contra magistrados” o vício de inconstitucionalidade de que o apodou o recorrente. A circunstância de a lei atribuir ao STJ a competência para deles conhecer, subtraindo-os ao âmbito de competência dos tribunais administrativos e fiscais, tal como esta está enunciada no art.º 212.º n.º 3 da CRP, deve-se apenas a razões históricas e de proximidade com o desempenho das funções por parte desses magistrados, quer relativamente ao tribunal julgador, quer relativamente aos membros do CSM. E não vale defender, como o recorrente sustenta, que essa subtracção será inconstitucional. Na verdade, a Constituição – e por decorrência a lei ordinária
- atribui, por vezes, a competência para conhecer de certas matérias que caberiam na competência dos tribunais de uma certa ordem aos tribunais de outra ordem. Falamos da repartição de competências entre os tribunais comuns da ordem administrativa, cuja constitucionalização aconteceu na revisão de 1989, e dos tribunais comuns da ordem judicial, a cujas competências se referem, respectivamente, os art.os 212.º n.º 3 e 202.º n.º 2 da CRP. Com a introdução deste art.º 212.º n.º 3 abriu-se, na Comunidade Jurídica, a discussão sobre a questão de saber se nela se tinha consagrado uma reserva material absoluta de jurisdição para o conhecimento das relações jurídicas administrativas e tributárias. Gomes Canotilho e Vital Moreira (cfr. Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3ª edição, revista, 1993) defenderam a posição afirmativa, escrevendo:
“[A] letra do preceito constitucional parece não deixar margem para excepções, no sentido de consentir que estes tribunais possam julgar outras questões ou que certas questões de ordem administrativa possam ser atribuídas a outros tribunais. E se é certo que o primeiro ponto não causa dificuldades, já o segundo as levanta, visto não serem poucas as áreas em que a lei tradicionalmente confia a outros tribunais a competência para o julgamento de questões que em princípio se devem ter por administrativas [...]. Por isso, melhor se diria que estes tribunais são os tribunais comuns em matéria administrativa e fiscal, à imagem da norma relativa aos tribunais judiciais
(art.º 213.º, n.º 1, mas só forçadamente é que o presente texto consente tal interpretação)”. Mas como dá nota o acórdão n.º 508/94, deste Tribunal, publicado no DR., II Série, de 13/12/94, “na doutrina administrativa, porém, tende a considerar-se que este número do art.º 214º ( numeração de então) não consagra uma reserva material absoluta, surgindo posições mais mitigadas. Assim, Vieira de Andrade aceita o entendimento de Sérvulo Correia de que a «melhor doutrina [....] parece ser, no entanto, a que não lê o referido preceito constitucional como um imperativo estrito, contendo uma proibição absoluta, mas [...] como uma regra definidora de um modelo típico, susceptível de adaptações e de desvios em casos especiais, desde que sem prejuízo do núcleo caracterizador do modelo» (Direito Administrativo e Fiscal, Lições Policopiadas, Coimbra 1993-1994, págs. 9 a 11 – posição essa que hoje continua a manter, conforme afirma in Justiça Administrativa (Lições), 3ª edição, págs. 25 e segs., ali se dá conta da posição de Freitas do Amaral no sentido da possibilidade de remissão do legislador para a legislação comum de questões emergentes de relações jurídicas administrativas quando estejam em causa direitos fundamentais dos cidadãos, de forma a assegurar uma protecção mais intensa desses direitos). Tem sido, de resto, esta a posição que este Tribunal tomou, nomeadamente, a propósito da questão da competência dos tribunais comuns para conhecer das questões relativas às expropriações por utilidade pública ( cfr. Acórdãos n.os
746/95 e 965/96 publicados in AcsTc, vol. 34.º, respectivamente, págs. 245 e
425), e das questões relativas aos recursos de actos do Conselho Superior da Magistratura (cfr. Acórdãos n.os 347/97, 697/98 e 40/99 - o primeiro e terceiro publicados, respectivamente, no DR, II Série, de 25 de Julho de 1996 e de 14 de Maio de 1999 e o segundo inédito), não obstante estarem em causa relações jurídicas de natureza administrativa. De resto, o próprio legislador tem prosseguido a mesma leitura do comando constitucional. O caso mais evidente, até pela sua importância prática, é o da atribuição aos tribunais comuns da competência para conhecer dos recursos das decisões administrativas de aplicação de coimas, no âmbito das contra-ordenações
(cfr. art.º 59.º e segs. do DL. n.º 433/82, de 27 de Outubro). Ainda recentemente, excluiu da competência dos tribunais administrativos matérias que, sem rebuço algum, neles se deviam incluir em razão da sua natureza. Referimo-nos, seguramente, às matérias constantes das alíneas a), b) e c) do n.º
3 do art.4.º do novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro. Temos, pois, de concluir que a norma do art.º 111.º do EMJ, quando entendida no sentido de o CSM poder oficiosamente exercer a acção disciplinar contra os juízes dos tribunais judiciais, não é materialmente inconstitucional por violação das disposições constitucionais que o recorrente aponta. Sendo assim, o recurso não merece provimento.
C – A decisão
8. Destarte, atento tudo o exposto, este Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso. Custas pelo recorrente com 15 UC.
Lisboa, 27 de Maio de 2003 Benjamim Rodrigues Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos