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Processo n.º 3/2003
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres (Cons.ª Maria Fernanda Palma)
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A. foi condenado, por sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Marco de Canaveses, de 30 de Novembro de 2001, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punível nos termos do artigo
24.º, n.ºs 1, 2, 5 e 6, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro (doravante designado por RJIFNA), na pena de 17 meses de prisão, tendo sido suspensa a respectiva execução, nos termos do artigo 50.º do Código Penal, pelo período de
30 meses, com a condição de o arguido pagar à Administração Fiscal, no prazo de cinco anos, a quantia de 31 746 309$00.
O arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, sustentando a inconstitucionalidade da norma do artigo 11.º, n.º 7, do RJIFNA, com fundamento em que “a imposição legal da suspensão da execução da pena ser condicionada ao pagamento do imposto e legais acréscimos”, nos termos dessa norma, “é materialmente inconstitucional, por atentar contra os princípios da proporcionalidade, da igualdade e da exigibilidade, consagrados nos artigos 18.° e 13.° da Constituição da República Portuguesa (CRP)”, pois “o arguido nunca teve nem tem possibilidades económico-financeiras para satisfazer as prestações tributárias em causa; os serviços fiscais nunca foram capazes de cobrar o que quer que fosse, sendo lícito concluir que os débitos fiscais não se integraram no seu património; a condição imposta por lei, de pagamento da prestação tributária ou dos impostos, é manifestamente desajustada, desproporcionada e violenta, ofendendo os princípios do direito penal e o nosso sistema jurídico e a filosofia que o informa; tal condição viola o artigo 50.° do Código Penal”.
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 3 de Julho de 2002, negou provimento ao recurso, tendo, a propósito da questão de constitucionalidade suscitada, expendido o seguinte:
“B – Dispõe o artigo 11.°, n.ºs 6 e 7, do RJIFNA (Decreto-Lei n.°
20-A/90, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.° 394/93, de 24 de Novembro) que:
6 – É admissível nos termos do Código Penal a suspensão da pena, com as particularidades constantes do n.º 7.
7 – A suspensão é sempre condicionada ao pagamento ao Estado, em prazo a fixar pelo juiz, nos termos do n.º 8 [autorização de pagamento da multa em prestações], do imposto e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa, sendo aplicável, em caso de falta de cumprimento do prazo, apenas o disposto nas alíneas b), c) e d) do artigo 50.° do Código Penal.
Como já se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional, de 4 de Novembro de 1987, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 371, págs. 182 a 184:
«A suspensão da execução da pena (“condenação condicional”) foi primeiramente regulada, entre nós, pela Lei de 6 de Julho de 1983, nos seus artigos 8.° e seguintes.
(...) A matéria foi posteriormente objecto de regulamentação no artigo 633.° do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto n.º 16 489, de
15 de Fevereiro de 1929, no Decreto-Lei n.° 29 636, de 27 de Maio de 1939
(artigos 9.° e 10.°), no artigo 88.° do Código Penal de 1886 (na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.° 39 688, de 5 de Junho de 1954) e, finalmente, nos artigos 48.° a 52.° do Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.° 400/82.
Actualmente a matéria vem regulada nos artigos 50.° a 57.° do Código Penal.
Ora, o artigo 10.° do referido Decreto-Lei n.° 29 636 veio estabelecer que “a pena pode ser suspensa nas mesmas condições em que pode ser concedida a liberdade condicional” e, sendo uma dessas condições – nos termos do artigo 396.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.º 26 643, de 28 de Maio de 1936
(Reforma Prisional) – “que (o recluso) repare o dano causado às vítimas do delito”, nunca se suscitou sequer a dúvida sobre se a respectiva norma atentaria contra o princípio da proibição da chamada “prisão por dívidas”.
É certo que por aplicação do artigo 398.° do citado Decreto-Lei n.º
26 643, a suspensão da execução da pena podia ser revogada se o réu não cumprisse alguma da obrigações que lhe tivessem sido impostas e, portanto, se deixasse de “reparar o dano causado”.
É que, nos termos do artigo 50.°, alínea d), do Código Penal de 1982
(no actual Código Penal será revogada a suspensão, além do mais, por infracção grosseira de deveres impostos), o tribunal pode revogar a suspensão da pena “se, durante o período da suspensão, o condenado deixar de cumprir, com culpa, qualquer dos deveres impostos na sentença”, v. g., o de “pagar, dentro de certo prazo, a indemnização devida ao lesado” (artigo 49.°, n.º 1, alínea a), 1.ª parte, do Código Penal de 1982 – artigo 51.º, n.º 1, alínea a), 1.ª parte, do Código Penal actual).
Nunca, porém, se poderá falar numa prisão em resultado do não pagamento de uma dívida: a causa primeira da prisão é a prática de um facto punível, sendo certo que o que é vedado é a privação da liberdade pela única razão do não cumprimento de uma obrigação contratual, o que é coisa diferente.»
Aliás, no mesmo sentido, vão os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.°s 663/98, 312/00 e 516/00, aliás também citados, a propósito, na douta resposta do Ministério Público.
Assim sendo, a norma constante do artigo 11.°, n.° 7, do RJIFNA não viola o preceituado no artigo 13.°, da CRP, nem o disposto no seu artigo 18.°, pois não se vislumbra que a solução legal [contenha] qualquer medida discriminatória, desnecessária ou excessiva, susceptível de construir violação do artigo 18.°, n.º 2, da CRP.”
O recorrente interpôs, deste acórdão, recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), visando a apreciação da inconstitucionalidade da norma do artigo 11.º, n.º 7, do RJIFNA por pretensa violação dos artigos 13.º e 18.º da Constituição.
Neste Tribunal, o recorrente apresentou alegações, que culminam com a formulação das seguintes conclusões:
“– A actividade do recorrente decorre no sector agrícola e silvícola em que é prática corrente um vazio de cumprimento fiscal que a Administração Fiscal vai, por certo, tolerando, já por inoperância do seu funcionamento, já pelo agravamento que acarretaria para maior afundamento dessas mesmas actividades, já tão depauperadas;
– E a inoperância da máquina fiscal permite criar em certos contribuintes uma «falsa confiança» de que nada será exigido, tal o prazo que demora a agir para cobrar o que entende ser devido;
– No caso concreto, apesar do reconhecimento de que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, não foi apurado o resultado concreto pessoal que daí resultou, já que a matéria de facto provada permite concluir pela sua pobreza, o que seria essencial para um melhor apuramento do dolo com que eventualmente agiu;
– O Estado tende a actuar repressivamente por ser incapaz de agir preventivamente e de forma atempada na cobrança dos impostos e, por isso, viola os princípios constitucionais consagrados para defesa dos cidadãos;
– O disposto no artigo 11.º, n.ºs 6 e 7, do RJIFNA é materialmente inconstitucional por ofensa dos princípios constitucionais da justiça, da igualdade, da proporcionalidade e da capacidade contributiva, por não permitir ao julgador decidir de acordo com o caso concreto e, consequentemente, conforme a culpa e capacidade económica do arguido;
– Por outro lado, os valores da liberdade e da dignidade humana sobrepõem-se, no caso em apreço, ao fim repressivo da pena, tanto mais que o Estado não é suficientemente capaz para em tempo útil prevenir e evitar situações como as dos autos; e seria tão simples instituir um regime de responsabilidade solidária entre o que recebe e o que paga o IVA;
Violaram, pois, as aliás doutíssimas decisões, como doutíssimos são também o parecer dos Ex.mos Magistrados do Ministério Público, o disposto nos artigos 2.º, 13.º, 18.º, n.º 2, 107.º e 266.º, n.º 2, da Constituição.
Neste termos, declarando-se materialmente inconstitucional o disposto no artigo 11.º, n.ºs 6 e 7, do RJIFNA, na sua actual redacção, e condenando-se o arguido sem a obrigação de pagamento imposta, farão, como sempre, inteira justiça.”
O representante do Ministério Público contra-alegou, concluindo:
“1 – As normas dos n.ºs 6 e 7 do artigo 11.º do RJIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 20-A/90 (na redacção do Decreto-Lei n.° 394/93, de 24 de Novembro), ao exigirem, como factor determinativo condicionador para a suspensão da execução da pena, o pagamento da prestação tributária e acréscimos legais, inviabilizando uma adequada ponderação da culpa concreta do agente e da sua real situação económica e financeira, com reflexos na transformação da ameaça de prisão no seu cumprimento efectivo, colidem com os princípios constitucionais da culpa, adequação e proporcionalidade.
2 – Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
Colhidos os vistos e não tendo logrado vencimento o projecto de acórdão apresentado pela originária Relatora, procedeu-se a mudança de relator.
2. Fundamentação
2.1. O artigo 11.º, n.ºs 6, 7 e 8, do RJIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção do Decreto-Lei n.º
394/93, de 24 de Novembro, tem a seguinte redacção:
Artigo 11.º (Pena de prisão ou multa. Suspensão)
(...)
6. É admissível nos termos do Código Penal a suspensão da pena, com as particularidades constantes do n.º 7.
7. A suspensão é sempre condicionada ao pagamento ao Estado, em prazo a fixar pelo juiz nos termos do n.º 8, do imposto e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa, sendo aplicável, em caso de falta do cumprimento do prazo, apenas o disposto nas alíneas b), c) e d) do artigo 50.º do Código Penal.
8. Sempre que a situação económica e financeira do condenado o justifique, o tribunal pode autorizar o pagamento da multa em prestações, não podendo a última delas ir além dos dois anos subsequentes à data da condenação.
(...)
Nos termos do artigo 4.º, n.º 1, do RJIFNA, aos crimes fiscais são aplicáveis, subsidiariamente, o Código Penal e legislação complementar.
O artigo 50.º do Código Penal – para o qual parcialmente remetia o n.º 7 do artigo 11.º do RJIFNA – dispunha, antes da revisão desse Código ocorrida em 1995, o seguinte:
Artigo 50.º (Falta de cumprimento dos deveres) Se durante o período da suspensão o condenado deixar de cumprir, com culpa, qualquer dos deveres impostos na sentença, ou for punido por outro crime, pode o tribunal, conforme os casos: a) Fazer-lhe uma solene advertência; b) Exigir-lhe garantias do cumprimento dos deveres impostos; c) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de 1 ano; d) Revogar a suspensão da pena.
Com a revisão do Código Penal operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, a regulação constante deste artigo 50.º passou a estar contida, com algumas alterações, no artigo 55.º, cuja redacção é a seguinte:
Artigo 55.º (Falta de cumprimento das condições da suspensão) Se, durante o período da suspensão, o condenado, culposamente, deixar de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta impostos, ou não corresponder ao plano de readaptação, pode o tribunal: a) Fazer uma solene advertência; b) Exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão; c) Impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de readaptação; d) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de 1 ano nem por forma a exceder o prazo máximo de suspensão previsto no n.º 5 do artigo 50.º.
Para concluir este ponto, importa referir que o RJIFNA foi entretanto revogado pelo Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, cujo artigo 3.º considera aplicáveis subsidiariamente, quanto aos crimes e seu processamento, as disposições do Código Penal, e cujo artigo 14.º dispõe, sob a epígrafe Suspensão da execução da pena de prisão:
“1 – A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.
2 – Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode: a) Exigir garantias de cumprimento; b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível; c) Revogar a suspensão da pena de prisão.
Como se refere no recente Acórdão n.º 256/03 (Diário da República, II Série, n.º 150, de 2 de Julho de 2003, pág. 9872), que não julgou inconstitucionais as normas do n.º 7 do artigo 11.º do RJIFNA e do artigo 14.º do RGIT (no sentido da não inconstitucionalidade desta última norma também viria a decidir o Acórdão n.º 335/03, que, nesse ponto, reproduz a fundamentação do Acórdão n.º 256/03), comparando essa norma com o (posterior) artigo 14.º do RGIT, verifica-se que ambos condicionam a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das quantias em dívida: não sendo pagas tais quantias, o primeiro preceito remetia (em parte) para o regime do Código Penal relativo ao não cumprimento culposo das condições da suspensão; já o segundo preceito – que englobou tal regime do Código Penal – é mais dúbio, porque não faz referência à necessidade de culpa do condenado. De qualquer modo, deve entender-se que a já referida aplicação subsidiária do Código Penal, prevista no artigo 3.º, alínea a), do RGIT (cf. os artigos 55.º e 56.º do referido Código), bem como a circunstância de só o incumprimento culposo conduzir a um prognóstico desfavorável relativamente ao comportamento do delinquente implicam a conclusão de que o artigo 14.º, n.º 2, do RGIT, quando se refere à falta de pagamento das quantias, tem em vista a falta de pagamento culposa (refira-se, a propósito, na sequência de Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português / Parte Geral, II
– As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, págs. 342-343, que pressuposto material de aplicação da suspensão da execução da pena de prisão é a existência de um prognóstico favorável a esse respeito).
Seja como for, ambos os preceitos – o artigo 11.º, n.º
7, do RJIFNA e o (posterior) artigo 14.º do RGIT – divergem substancialmente do regime do Código Penal respeitante aos deveres que podem condicionar a suspensão da execução da pena. Em primeiro lugar, porque nem na redacção originária do Código Penal (cf. artigo 49.º), nem na redacção emergente da revisão de 1995
(cf. artigo 51.º) se sujeita obrigatoriamente a suspensão da execução da pena ao pagamento da quantia devida à vítima ou ao lesado. Em segundo lugar, porque o artigo 51.º, n.º 2, desse Código (versão de 1995) expressamente dispõe o seguinte: “Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir”.
Relativamente a este preceito, observa Manuel Lopes Maia Gonçalves (Código Penal Português, 14.ª edição, Almedina, Coimbra, pág. 195):
“No n.º 2 consagra-se o princípio da razoabilidade, a que tem de obedecer a imposição dos deveres. O texto tem um conteúdo algo vago, e nem poderia ser de outro modo, dada a amplitude dos deveres que podem ser impostos. Trata-se de exprimir um princípio de orientação para o tribunal, de modo a habilitá-lo a delimitar o domínio em que há-de mover-se na sua faculdade de determinação dos deveres a cumprir pelo condenado em vista da reparação do mal causado pelo crime.
O juiz deve averiguar da possibilidade de cumprimento dos deveres impostos, ainda que, posteriormente, no caso de incumprimento, deva apreciar da alteração das circunstâncias que determinaram a impossibilidade, para o efeito de decidir sobre a revogação da suspensão. Não devem ser impostos ao arguido deveres, nomeadamente o de indemnizar, sem que seja viável a possibilidade de cumprimento desses deveres. Como pondera o Prof. Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, III, pág. 208, prática contrária significaria apenas adiar a execução da pena de prisão.”
Mas já Jorge de Figueiredo Dias (obra citada, pág. 350), antes da entrada em vigor da revisão do Código Penal de 1995 – que introduziu o mencionado artigo 51.º, n.º 2 –, observava que a imposição de deveres e regras de conduta haveria forçosamente de sofrer uma dupla limitação: “a de que, em geral, eles sejam compatíveis com a lei, nomeadamente com todo o asseguramento possível dos direitos fundamentais do condenado; e a de que, além disso, o seu cumprimento seja exigível no caso concreto”. E acrescentava (obra citada, pág.
351): “Quanto à exigibilidade de que, em concreto, devem revestir-se os deveres e regras de conduta, o critério essencial é o de que eles têm de encontrar-se numa relação estrita de adequação e de proporcionalidade com os fins preventivos almejados. Não seria adequado, neste sentido, impor ao agente, v. g., o reatamento de uma relação conjugal ou amorosa; como não seria proporcional impor-lhe, v. g., uma apresentação diária a uma qualquer entidade oficial durante os 5 anos de suspensão ou muito distante do seu local de residência ou de trabalho”.
Concretamente quanto à obrigação do condenado de “pagar dentro de certo prazo a indemnização devida ao lesado ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea” enquanto condição de suspensão da execução da pena consagrada no artigo 49.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal de 1982
(versão originária), entendia Jorge de Figueiredo Dias (obra citada, pág. 352), que “conexionando esta obrigação com a cláusula de exigibilidade contida no artigo 49.º, n.º 3, parece dever concluir-se que a suspensão é ainda compatível com um pagamento parcial, se o tribunal concluir que só este é concretamente exigível”.
2.2. No presente recurso, está apenas em causa a norma do n.º 7 do artigo 11.º do RJIFNA, na parte em que impõe que a suspensão da execução da pena de prisão seja condicionada ao pagamento ao Estado do imposto e acréscimos legais. Segundo o recorrente, esta imposição, na medida em que não permite ao julgador decidir de acordo com o caso concreto, isto é, de acordo com a culpa e com a capacidade económica do arguido, se a suspensão da execução da pena de prisão deve ser condicionada ao pagamento da dívida em falta, viola o disposto nos artigos 2.º, 13.º, 18.º, n.º 2, 107.º e 266.º, n.º 2, da Constituição. Segundo o Ministério Público, a norma impugnada colide com os princípios constitucionais da culpa, da adequação e da proporcionalidade.
Conforme se referia no projecto de acórdão da originária Relatora – proposições que se continuam a secundar –, a intervenção penal tem, na Constituição, como suporte, enquanto restrição de direitos fundamentais, a protecção de outros direitos ou de bens jurídicos essencialmente constitutivos dos valores constitucionais (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição), na medida em que outros meios de intervenção social se revelem insuficientes ou ineficazes
(cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 211/95, Diário da República, II Série, de 24 de Junho de 1995, 95/2001 e 70/2002, Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 2002, e 99/2002, Diário da República, II Série, de 4 de Abril de 2002 e, na doutrina, Figueiredo Dias, Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pág. 74 e seguintes; Temas Básicos de Direito Penal, 2001, pág. 61 e seguintes; Sousa e Brito, “Lei Penal na Constituição”, em Estudos sobre a Constituição, 2.º vol., 1978, pág. 199 e seguintes; e Fernanda Palma, Direito Penal, Parte Geral, 1994, pág. 65 e seguintes). Os princípios de intervenção mínima do Direito Penal e da máxima restrição das sanções criminais traduzem-se em que a escolha das penas privativas da liberdade apenas se verifique quando outros meios ou penas não se mostrarem adequados e eficazes na perspectiva das finalidades do sistema penal
(neste sentido, cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pág. 74 e seguintes). O instituto da suspensão da execução da pena de prisão concretiza, precisamente, uma alternativa à pena de prisão que poderá representar, no caso concreto, o mínimo de intervenção, quando se trate de aplicação de penas de prisão não superiores a três anos, quando a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizem de forma eficaz as finalidades da punição. Para esse fim, o tribunal efectuará uma ponderação das circunstâncias relativas ao agente e ao crime, para aferir da adequação da medida (cf. artigo 50.º do Código Penal). O tribunal pode também, se o considerar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordinar a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de deveres, entre os quais se encontra o pagamento dentro de certo prazo da indemnização devida ao lesado (cf. artigos 50.º, n.º 2, e 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal).
2.3. Como é sabido – e seguindo de perto, neste ponto, a exposição do citado Acórdão n.º 256/03 –, o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a conformidade à Constituição da possibilidade do o tribunal penal subordinar a suspensão da execução da pena ao pagamento da indemnização devida ao lesado.
Assim, no Acórdão n.º 440/87 (Diário da República, II Série, n.º 39, de 17 de Fevereiro de 1988, pág. 1497; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 371, pág. 178; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 10.º volume, pág. 521), o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional a norma do artigo 49.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982 (versão originária), na parte em que ela permite que a suspensão da execução da pena seja subordinada à obrigação de o réu “pagar dentro de certo prazo a indemnização devida ao lesado”. Nesse acórdão, depois de se ter salientado que se deve considerar como princípio consagrado na Constituição a proibição da chamada “prisão por dívidas”, entendeu-se, para o que aqui releva, o seguinte:
“(...) nos termos do artigo 50.º, alínea d), do actual Código Penal, o tribunal pode revogar a suspensão da pena, «se durante o período da suspensão o condenado deixar de cumprir, com culpa, qualquer dos deveres impostos na sentença», v. g., o de «pagar dentro de certo prazo a indemnização devida ao lesado» (artigo 49.º, n.º 1, alínea a), primeira parte). Nunca, porém, se poderá falar numa prisão em resultado do não pagamento de uma dívida: – a causa primeira da prisão é a prática de um «facto punível» (artigo 48.º do Código). Como se escreveu no acórdão recorrido, «o que é vedado é a privação da liberdade pela única razão do não cumprimento de uma obrigação contratual, o que é coisa diferente».
Aliás, a revogação da suspensão da pena é apenas uma das faculdades concedidas ao tribunal pelo citado artigo 50.º para o caso de, durante o período da suspensão, o condenado deixar de cumprir, com culpa, qualquer dos deveres impostos na sentença: – na verdade, “conforme os casos”, pode o tribunal, em vez de revogar a suspensão, “fazer-lhe (ao réu) uma solene advertência (alínea a)), exigir-lhe garantias do cumprimento dos deveres impostos» (alínea b)) ou «prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de um ano» (alínea c)).”
Por outro lado, no Acórdão n.º 596/99 (Diário da República, II Série, n.º 44, de 22 de Fevereiro de 2000, pág. 3600; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 491, pág. 5; e Acórdãos do Tribunal Constitucional,
45.º vol., pág. 273), o Tribunal Constitucional não considerou inconstitucional, designadamente por violação do artigo 27.º, n.º 1, da Constituição, a norma constante do artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na parte em que permite ao juiz condicionar a suspensão da execução da pena de prisão à efectiva reparação dos danos causados ao ofendido. Foram os seguintes os fundamentos dessa decisão:
“8. A alegada inconstitucionalidade do artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na redacção do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março. Dispõe o artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal que «a suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea». Trata-se mais uma vez, no entender do recorrente, da previsão de uma situação de
«prisão por dívidas», proibida pela Constituição. Desde logo deve notar-se que tem inteira razão o Ministério Público quando refere que, a proceder, a argumentação do recorrente acabaria por redundar em seu próprio prejuízo, «na medida em que a considerar-se inconstitucional a norma ora objecto de recurso, estaria afastada a possibilidade de suspensão da execução da pena – que só se justifica pela ‘condição’ estabelecida naquele preceito – restando-lhe o inexorável cumprimento da pena de prisão que a decisão recorrida, em primeira linha, lhe impôs...».
É, no entanto, manifestamente improcedente a alegação de que a norma que se extrai do artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, traduz uma violação do princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à liberdade e à segurança (artigo 27.º, n.º 1, da Constituição). Na realidade, e mais uma vez, não se trata aqui da impossibilidade de cumprimento como única razão da privação da liberdade, mas antes da consideração de que, em certos casos, a suspensão da execução da pena de prisão só permite realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição se a ela – suspensão da execução – se associar a reparação dos danos provocados ao lesado, traduzida no pagamento (ou prestação de garantia de pagamento) da indemnização devida.”
No entanto, apesar da afinidade com a questão de que ora cumpre apreciar, nos arestos citados (a que se pode aditar o Acórdão n.º
305/01, no Diário da República, II Série, n.º 268, de 19 de Novembro de 2001, pág. 19 139, e em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 50.º vol., pág. 715) o que estava em causa era “saber se o condicionamento da suspensão pelo pagamento da indemnização não configuraria, quando aquele pagamento não viesse a ser feito, uma (inconstitucional) prisão por dívidas”.
De qualquer modo, como se sublinha no Acórdão n.º
256/03, dos arestos citados extrai-se uma ideia importante para a resolução da presente questão: é ela a de que não faz sentido analisá-la à luz da proibição da prisão por dívidas. Na verdade, mesmo que se considerasse – e é isso que importa determinar – desproporcionada a imposição da obrigação do pagamento da totalidade da quantia em dívida como condição de suspensão da execução da pena, o certo é que o motivo primário do cumprimento da pena de prisão não radicaria na falta de pagamento de tal quantia, mas na prática de um facto punível.
2.4. A questão em análise tem também algumas afinidades
– como se salienta no Acórdão n.º 256/03, cuja fundamentação continuamos a acompanhar – com a questão da conformidade constitucional do estabelecimento dos limites da pena de multa em função do valor da prestação em falta, analisada pelo Tribunal Constitucional a propósito dos artigos 24.º, n.º 1, e 23.º, n.º
4, do RJIFNA (cf., por exemplo, os acórdãos n.ºs 548/01 e 432/02, no Diário da República, II Série, n.º 161, de 15 de Julho de 2002, pág. 12 639, e n.º 302, de 31 de Dezembro de 2002, pág. 21 183, respectivamente, e o primeiro também publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 51.º vol., pág. 549). No
último aresto citado, disse-se nomeadamente o seguinte:
“Por outro lado – e sendo certo que o legislador goza de ampla margem de liberdade na fixação dos limites mínimo e máximo das molduras penais –, não se afigura que o critério da vantagem patrimonial pretendida pelo agente, adoptado na norma em apreço, se revele ofensivo dos princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação das penas. Contrariamente ao que sustenta o recorrente, a adopção de um tal critério não significa que a pena aplicável ao crime de fraude fiscal prossiga o fim da retaliação ou da expiação. É que a conduta que lhe subjaz é tanto mais grave e socialmente mais lesiva quanto mais elevado for o montante envolvido: como tal, é ainda a protecção de um bem jurídico o que se visa e não a mera censura do agente.”
Desta passagem retira o Acórdão n.º 256/03 uma importante consideração para o problema que nos ocupa: “é ela a de que, podendo a realização dos fins do Estado – dependente do cumprimento do dever de pagar impostos – justificar a adopção do critério da vantagem patrimonial no estabelecimento dos limites da pena de multa, não há qualquer motivo para censurar, como desproporcionada, a obrigação de pagamento da quantia em dívida como condição da suspensão da execução da pena”, pois “as razões que, relativamente à generalidade dos crimes, subjazem ao regime constante do artigo
51.º, n.º 2, do Código Penal, não têm necessariamente de assumir preponderância nos crimes tributários: no caso destes crimes, a eficácia do sistema fiscal pode perfeitamente justificar regime diverso, que exclua a relevância das condições pessoais do condenado no momento da imposição da obrigação de pagamento e atenda unicamente ao montante da quantia em dívida. Dito de outro modo, o objectivo de interesse público que preside ao dever de pagamento dos impostos justifica um tratamento diferenciado face a outros deveres de carácter patrimonial e, como tal, uma concepção da suspensão da execução da pena como medida sancionatória que cuida mais da vítima do que do delinquente (sobre a suspensão da execução da pena como medida que «permite cuidar ao mesmo tempo do delinquente e da vítima», veja-se Manso-Preto, «Algumas considerações sobre a suspensão condicional da pena», in Textos, Centro de Estudos Judiciários, 1990-91, pág. 173)”.
Por isso se concluiu no citado acórdão que “as normas em apreço não se afiguram, portanto, desproporcionadas, quando apenas encaradas na perspectiva da automática correspondência entre o montante da quantia em dívida e o montante a pagar como condição de suspensão da execução da pena, atendendo
à justificável primazia que, no caso dos crimes fiscais, assume o interesse em arrecadar impostos”.
É que – acrescente-se – ao submeter a suspensão da execução da pena a esta condição, não se está, em rigor, a criar um novo dever que passa a onerar o condenado: o dever de pagamento ou de reposição já existia anteriormente e continuará a existir independentemente da sua imposição como condição para a suspensão da pena.
2.5. Cabe, todavia, questionar – prossegue o Acórdão n.º
256/03 – se não existirá desproporção quando, no momento da imposição da obrigação, o julgador se apercebe de que o condenado muito provavelmente não irá pagar o montante em dívida, por impossibilidade de o fazer. Questão a que o citado aresto responde nos seguintes termos, que se acompanham:
“Esta impossibilidade, que não chegou a ser declarada pelo tribunal recorrido (...), não altera, todavia, a conclusão a que se chegou.
Em primeiro lugar, porque perante tal impossibilidade, a lei não exclui a possibilidade de suspensão da execução da pena.
Dir-se-á que tal exclusão se encontra implícita na lei, atendendo a que não seria razoável que a lei permitisse ao juiz condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de um dever que ele próprio sabe ser de cumprimento impossível.
Todavia, tal objecção não procede, pois que traz implícita a ideia de que o juiz necessariamente elabora um prognóstico quanto à possibilidade de cumprimento da obrigação, no momento do decretamento da suspensão da execução da pena. Ora, nada permite supor a existência de um tal prognóstico: sucede apenas que a lei – bem ou mal, mas este aspecto é, para a questão de constitucionalidade que nos ocupa, irrelevante –, verificadas as condições gerais de suspensão da execução da pena (nas quais não se inclui a possibilidade de cumprimento da obrigação de pagamento da quantia em dívida), permite o decretamento de tal suspensão. O juízo do julgador quanto à possibilidade de pagar é, para tal efeito, indiferente.
Em segundo lugar, porque mesmo parecendo impossível o cumprimento no momento da imposição da obrigação que condiciona a suspensão da execução da pena, pode suceder que, mais tarde, se altere a fortuna do condenado e, como tal, seja possível ao Estado arrecadar a totalidade da quantia em dívida.
A imposição de uma obrigação de cumprimento muito difícil ou de aparência impossível teria assim esta vantagem: a de dispensar a modificação do dever (cf. artigo 51.º, n.º 3, do Código Penal) no caso de alteração (para melhor) da situação económica do condenado. E, neste caso, não se vislumbra qualquer razão para o seu tratamento de favor, nem à luz do princípio da culpa, nem à luz dos princípios da proporcionalidade e da adequação.
Em terceiro lugar, e decisivamente, o não cumprimento não culposo da obrigação não determina a revogação da suspensão da execução da pena. Como claramente decorre do regime do Código Penal para o qual remetia o artigo 11.º, n.º 7, do RJIFNA, bem como do n.º 2 do artigo 14.º do RGIT, a revogação é sempre uma possibilidade; além disso, a revogação não dispensa a culpa do condenado (...).
Não colidem, assim, com os princípios constitucionais da culpa, adequação e proporcionalidade as normas contidas no artigo 11.º, n.º 7, do RJIFNA e no artigo 14.º do RGIT.”
É este entendimento que ora se reitera.
3. Decisão
Em face do exposto, acorda-se em:
a) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 7 do artigo 11.º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, que determina que a suspensão da execução da pena de prisão seja condicionada à imposição do pagamento ao Estado, em prazo a fixar pelo juiz nos termos do subsequente n.º 8, do imposto e acréscimos legais devidos pelo condenado; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 15 de Julho de 2003.
Mário José de Araújo Torres (Relator)
Benjamim Silva Rodrigues
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma (Vencida nos termos da declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos Declaração de voto
Tendo sido a primitiva relatora, votei vencida o presente Acórdão com os seguintes fundamentos:
Enquanto restrição de direitos fundamentais, a intervenção penal tem como fundamento constitucional a protecção de outros direitos ou de bens jurídicos corespondentes a valores constitucionais (artigo 18º, nº 2, da Constituição), na estrita medida em que outros meios de intervenção social se revelem insuficientes, inadequados ou ineficazes (cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 211/95, D.R., II Série, de 24 de Junho de 1995, 95/2001 e
70/2002, D.R., II Série, de 24 de Abril de 2002, e 99/2002, D.R., II Série, de 4 de Abril de 2002 e, na doutrina, Figueiredo Dias, Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, p. 74 e ss.; Temas Básicos de Direito Penal, 2001, p. 61 e ss.; Sousa e Brito, Lei Penal na Constituição, em Estudos sobre a Constituição, 2º vol., 1978, p. 199 e ss.; e Fernanda Palma, Direito Penal, Parte Geral, 1994, p. 65 e ss.). Os princípios da intervenção mínima do Direito Penal e da máxima restrição das sanções criminais implicam que a escolha das penas privativas da liberdade apenas se verifique quando outros meios ou penas não se mostrarem suficientes, adequados e eficazes na perspectiva das finalidades do sistema penal (neste sentido, cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, p. 74 e ss.). O instituto da suspensão da execução da pena de prisão concretiza, precisamente, uma alternativa à pena de prisão que poderá representar, no caso concreto, o mínimo de intervenção, quando se trate de aplicação de penas de prisão não superiores a três anos e a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizem de forma eficaz as finalidades da punição. Para esse fim, o tribunal efectuará uma ponderação das circunstâncias relativas ao agente e ao crime, para aferir da adequação e da suficiência da medida (cfr. artigo 50º, nº 1, do Código Penal). O tribunal pode também, se o considerar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordinar a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de deveres, entre os quais se encontra o pagamento dentro de certo prazo da indemnização devida ao lesado [cfr. artigos 50º, nº 2, e 51º, nº 1, alínea a), do Código Penal]. O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a conformidade à Constituição de tal solução legal, tendo concluído pela não inconstitucionalidade das normas então em questão (cf. Acórdão nºs 596/99 e
305/2001 – D.R., II Série, de 22 de Fevereiro de 2000 e de 19 de Novembro de
2001, respectivamente). No entanto, a norma agora em apreciação, diferentemente das que foram objecto dos arestos citados, não consagra a sujeição da execução da pena de prisão ao pagamento da quantia em dívida como uma possibilidade que, de acordo com a ponderação do tribunal, se mostre conveniente e adequada à realização das finalidades da pena no caso concreto e que opere em conjunto com a ponderação das condições individuais do agente como se considerava naquela jurisprudência. Com efeito, a norma em questão estabelece o pagamento da dívida fiscal como condição necessária da suspensão da execução da pena de prisão e, portanto, como um comportamento sempre exigível para ser suspensa a pena, independentemente das condições económicas concretas do condenado e, consequentemente, da possibilidade de utilização de outros meios que realizem conveniente e adequadamente as finalidades punitivas. Ora, verificando-se a sujeição necessária da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da dívida fiscal, fica inviabilizada a plena ponderação em concreto das exigências de prevenção e de reintegração no momento de decidir a efectiva aplicação e execução da pena. Assim, a suspensão da execução da pena de prisão é obrigatoriamente associada ao pagamento do montante em dívida pela prática do crime tributário, que absorverá todas as outras ponderações (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português cit., p. 352, nota 68, referindo a solução da lei alemã que “põe, muito correctamente, o pagamento na dependência das forças do condenado”). Dá-se, portanto, a transfiguração de um meio concretizador dos princípios e das finalidades do sistema punitivo, sobretudo na perspectiva da utilização de alternativas à pena de prisão, num meio de produção de um resultado desejável pelo sistema jurídico, independentemente da concreta ponderação de outras possibilidades de satisfação das finalidades punitivas. Não procede, aqui, o argumento de que o fundamento da pena sempre será a prática do crime e não o incumprimento de obrigação como justificação da legitimidade constitucional da solução impugnada, uma vez que a suspensão da pena, como alternativa à prisão, não pode ter como condição a concreta capacidade económica do agente – o que seria violador dos próprios princípios da culpa, que constitui corolário da essencial dignidade da pessoa humana, do direito à liberdade e da igualdade (artigos 1º, 27º, nº 1, e 13º da Constituição). A subordinação obrigatória da suspensão da execução da pena de prisão à exigência do pagamento do montante em dívida, na medida em que pressupõe o alheamento de uma qualquer ponderação da personalidade do agente, das suas condições de vida, da sua capacidade económica, da sua conduta anterior e posterior ao crime, da avaliação da culpa e da ilicitude e das necessidades concretas de ressocialização e de prevenção, é estranha à justificação e à finalidade constitucionalmente relevantes das penas. Tal regime consubstancia um desvirtuamento dos meios penais e uma instrumentalização do sistema punitivo pela recuperação de dívidas fiscais. Ora, para a cobrança de impostos a Administração Fiscal deve dispor de meios executivos próprios, adequados e eficazes. Em termos penais, a ausência de pagamento e de cobrança, neste estádio, só pode relevar na medida em que exprima uma atitude hostil ou indiferente aos bens jurídicos, mas não se, por exemplo, resultar de uma situação de carência económica. As normas dos nºs 6 e 7 do artigo 11º do Regime Geral das Infracções Fiscais não Aduaneiras, na medida em que subordinam obrigatoriamente ao pagamento da dívida em causa a suspensão da execução da pena de prisão aplicada pela prática de crime fiscal, são inconstitucionais, por violação dos princípios da igualdade, da necessidade e da proporcionalidade da pena consagrados nos artigos 13º e 18º, nº 2, da Constituição, respectivamente. Maria Fernanda Palma