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Processo n.º 300/03
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Os recorrentes J... e S... deduziram reclamação para a conferência, nos termos do n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), contra a decisão sumária do relator de não conhecimento do presente recurso.
1.1. Essa decisão sumária é do seguinte teor:
“1. Por sentença de 8 de Fevereiro de 2002 do Tribunal Judicial da Comarca de Barcelos, foi V... condenado, como autor material de um crime de homicídio negligente, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão, com execução suspensa pelo período de 2 anos, com a condição de pagar aos assistentes J... e S..., no prazo de 6 meses, a indemnização de € 49 880, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 7%, a contar do trânsito da sentença.
Desta sentença interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães os assistentes (propugnando a condenação do arguido como autor de crime de homicídio por negligência grosseira, previsto e punido no n.º 2 do citado artigo 137.º, ou, a manter-se a condenação pelo crime do n.º 1 deste preceito, a agravação da pena) e o arguido (suscitando nulidade processual, por indevida abertura da fase de instrução, e nulidades da sentença e defendendo a atenuação da pena aplicada).
Por acórdão de 23 de Setembro de 2002, o Tribunal da Relação de Guimarães, considerando que “dos factos provados não resulta (...) qualquer conduta criminalmente censurável ao arguido” e que a mesma matéria de facto “não preenche os elementos objectivos e subjectivos da responsabilidade civil, nomeadamente a existência de facto ilícito danoso, bem como do nexo de causalidade”, julgou improcedentes a pronúncia e o pedido cível, deles absolvendo o arguido.
Notificados deste acórdão, os assistentes vieram arguir a sua nulidade e inconstitucionalidade, nos seguintes termos:
“I) Arguição da nulidade do douto acórdão
1. Conforme é entendimento unânime, o objecto do recurso é definido pelas conclusões da respectiva motivação.
O mesmo é dizer que os poderes de cognição do Tribunal de recurso são delimitados por aquelas conclusões.
2. Nos presentes autos, os recursos interpostos pelos assistentes e pelo arguido circunscrevem-se à matéria de direito, conforme resulta, inequivocamente, das peças oferecidas.
Dito de outro modo, os assistentes e o arguido conformaram-se com a matéria de facto fixada em 1.ª instância, vertida na sentença recorrida.
3. De resto, para que pudesse falar-se em impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, era preciso que qualquer dos recorrentes desse cumprimento ao prescrito no n.° 3 do artigo 412.° do Código de Processo Penal (CPP), o que, manifestamente, não sucedeu, dada a referida conformação com tal vertente da decisão.
4. Consequentemente, a matéria de facto fixada na douta sentença recorrida impunha-se ao Tribunal da Relação de Guimarães, não sendo permitido a este Venerando Tribunal sindicar tal matéria de facto.
5. Nem sendo admitido a este Venerando Tribunal sindicar a própria convicção formada pela Senhora Juíza a quo, já que esta convicção foi formada em consciência e resultou da livre apreciação crítica da prova produzida em audiência de julgamento e das regras da experiência, como prescreve o artigo
127.° do CPP.
6. Mercê das limitações cognitivas que os recorrentes impuseram ao Tribunal da Relação de Guimarães, a este só era permitido pronunciar-se sobre os seguintes aspectos:
Quanto ao recurso do arguido:
– se ocorriam as nulidades e vícios processuais invocados;
– se a pena aplicada poderia vir a ser a de multa; e
– se a indemnização arbitrada era excessiva.
Quanto ao recurso dos assistentes:
– se a condenação deveria ser a título de negligência grosseira;
– se, nessa hipótese, a pena de prisão deveria ser aumentada; e
– se, mesmo a título de negligência simples, tal pena deveria ser aumentada.
7. Entende-se, ainda, que no seu juízo decisório o Tribunal da Relação de Guimarães deveria tomar em devida conta o douto parecer emitido pelo Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto, que pugnou pela improcedência do recurso do arguido, ao mesmo tempo que reconheceu a legitimidade dos assistentes e advogou a condenação do arguido como autor material do crime de homicídio por negligência grosseira, previsto e punido pelo artigo 137.°, n.º 2, do Código Penal (CP), sugerindo que a pena de prisão fosse aumentada para mais do dobro da fixada em 1.ª instância.
Isto posto,
8. Como resulta do douto acórdão em referência, o Tribunal da Relação de Guimarães, certamente por lapso, entrou na apreciação e sindicância da matéria de facto fixada em 1.ª instância, tecendo considerações sobre o modo como a Senhora Juíza a quo formou a sua convicção e a expressou no elenco dos factos provados, face à prova produzida em julgamento, sendo certo que tal tipo de actuação era vedada a este Venerando Tribunal.
9. Além disso, pode verificar-se que o Tribunal da Relação de Guimarães desenvolveu todo o seu raciocínio pelo recurso a autos de inquérito e a autos de instrução, para daí tirar ilações acerca da bondade da decisão de 1.ª instância, sendo certo que tal procedimento era vedado a este Venerando Tribunal.
10. Esta foi, aliás, a única razão para o Tribunal da Relação de Guimarães acabar por absolver o arguido.
11. Na verdade, em 1.ª instância, face à prova produzida em audiência (única prova que podia ser considerada pela Senhora Juíza a quo, para a qual esta remeteu, na fundamentação), o arguido foi condenado, por a convicção do Tribunal se ter formado nesse sentido, em exacta articulação com a matéria de facto aí apurada.
12. Em contrapartida, o Tribunal da Relação de Guimarães optou por absolver o arguido.
Para chegar a tal resultado, esse Venerando Tribunal entrou em domínios que lhe estavam vedados:
– não só porque a própria matéria de facto fixada em 1.ª instância se há-de ter por definitiva (pois que não foi impugnada por ninguém, nem sequer o Tribunal de recurso dispõe de quaisquer meios para aceder à prova em que se baseou tal decisão de facto),
– mas também porque lançou mão de elementos relativos a fases processuais (inquérito e instrução) cuja utilização é proibida por lei.
Sem prescindir,
13. O que vem de dizer-se não sofreria qualquer abalo se fosse suscitada a aplicabilidade do regime consignado no n.° 2 do artigo 410.° do CPP.
14. Note-se, no entanto, que o Tribunal da Relação de Guimarães não invocou sequer tal preceito legal para justificar o apontado procedimento.
15. Ainda que o fizesse – que não fez –, fá-lo-ia de modo infundado.
16. Com efeito, a matéria de facto fixada em 1.ª instância (cuja é inalterável e se impõe ao Tribunal de recurso) é mais do que suficiente para a decisão proferida, não há qualquer contradição nos fundamentos da decisão, nem entre estes e a própria decisão, assim como não há erro notório na apreciação da prova.
17. Acresce que, nos termos do proémio do citado n.° 2 do artigo
410.° do CPP, a existirem tais vícios – que não existem –, a sua verificação pelo Tribunal ad quem só podia ocorrer «desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum».
18. Conforme é entendimento unânime, doutrinal e jurisprudencialmente, o mecanismo do n.° 2 do artigo 410.° do CPP jamais pode ser desencadeado através de elementos externos à sentença, pois que o recurso tem por objecto a decisão recorrida e não a questão sobre que esta incidiu (cf., por todos, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Dezembro de 1990, apud Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, 11.ª edição, 1999, pág. 743).
19. No caso dos autos, a sentença recorrida contém todos os requisitos necessários e bastantes para a decisão de condenação proferida, dela não resultando nada que aponte para as hipóteses das alíneas do n.° 2 do artigo
410.° do CPP, tanto mais que o facto «morte» consta, sobejamente, dos autos e está documentado por certidão, sendo que os pontos 10 e 11 da «fundamentação de facto» expressam a consciência da ilicitude por parte do arguido, de que a Senhora Juíza a quo ficou convicta.
20. Tanto assim é que o douto acórdão em referência recorre, exaustivamente, a elementos externos à sentença recorrida, o que, insiste-se, é proibido por lei.
Procedendo como procedeu, penetrando em domínios excluídos do presente recurso e dos seus poderes cognitivos, o douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães conheceu de matérias de que não podia conhecer.
Por via disso, tal douto acórdão enferma da nulidade de excesso de pronúncia consignada na alínea c) do n.° 1 do artigo 379.° do CPP, aplicável ex vi artigo 425.° do mesmo Código, nulidade que expressamente se invoca.
Em face do exposto, serve o presente para requerer o suprimento da apontada nulidade e a consequentemente substituição do douto acórdão proferido por outro que julgue os recursos em conformidade, dentro dos limites cognitivos do Tribunal de recurso, concluindo pela condenação do arguido.
II) Arguição da inconstitucionalidade do douto acórdão
1. Por mera cautela, e para a hipótese de não ser atendida a arguição da nulidade, cumpre referir que o douto acórdão proferido neste autos padece de inconstitucionalidade, por conter decisão que viola a estrutura acusatória do processo criminal, consagrada no n.° 5 do artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que expressamente se invoca, para os devidos efeitos.
2. Conforme é do conhecimento geral, a estrutura acusatória do processo penal implica, por um lado, a distinção entre instrução, acusação e julgamento, e, por outro, a distinção entre o juiz de instrução e o juiz de julgamento, e entre ambos e o órgão acusador.
3. Em termos simplistas, significa isto que quem acusa não julga.
4. Daí, desde logo, os impedimentos fixados nos artigos 39.º, n.º 1, alínea c), e 40.° do CPP.
5. Daí, também e muito relevantemente, o princípio fixado no artigo
355.°, n.º 1, do CPP, segundo o qual «Não valem em julgamento, nomeadamente, para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência».
6. A estrutura acusatória do processo penal – com dignidade constitucional, como dito – marca uma clara distinção entre as fases anteriores ao julgamento e o próprio julgamento.
7. Pretende-se acautelar que a decisão seja proferida apenas e só com base na prova produzida perante o órgão de julgamento, o que constitui uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial.
8. No caso dos autos, não é difícil constatar, até pelo teor do douto acórdão proferido, que o Tribunal da Relação de Guimarães se socorreu, exclusivamente, para fundar a sua decisão, de autos de inquérito e de instrução.
9. Tal procedimento deste Venerando Tribunal subverte, completamente, a estrutura acusatória do processo penal, cuja foi respeitada, milimetricamente, em 1.ª instância.
10. Se os Senhores Juízes Desembargadores que subscreveram o douto acórdão em referência não poderiam julgar este recurso, caso tivessem intervindo em fases processuais anteriores, por assim o exigir a estrutura acusatória do processo penal,
11. É evidente que, embora não tendo intervindo, lhes é vedado, hoje, o acesso a elementos aos quais só pode aceder quem tenha intervenção nessas fases.
12. Salvo melhor opinião, qualquer construção em contrário constitui uma perversão do princípio constitucional da estrutura acusatória do processo penal português.
Em face do que antecede, impõe-se concluir que o douto acórdão em referência, por perverter o princípio da estrutura acusatória do processo penal, padece de inconstitucionalidade, cuja arguição se reitera.”
Estas arguições de nulidade e de inconstitucionalidade foram indeferidas por acórdão de 2 de Dezembro de 2002.
Notificados deste acórdão, vieram os assistentes, além do mais, interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por
último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), do acórdão de 23 de Setembro de 2002, nos seguintes termos:
“1. O douto acórdão em referência, que absolveu o médico arguido (o qual vinha condenado pelo crime de homicídio por negligência) contém decisão que só foi assim proferida em virtude de uma interpretação e aplicação da lei violadora da estrutura acusatória do processo criminal, consagrada no n.° 5 do artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa.
2. A inconstitucionalidade apontada assenta, por um lado, no facto de o Tribunal da Relação de Guimarães ter fundado a sua decisão em elementos de autos de inquérito e de instrução, fora dos casos em que, excepcionalmente, isso
é permitido.
3. Por outro lado, a inconstitucionalidade apontada radica na circunstância de o Tribunal da Relação de Guimarães ter posto em causa a própria matéria de facto fixada na sentença da 1.ª instância, quando é certo que os recursos dela interpostos se limitavam à matéria de direito.
Neste domínio, a Relação de Guimarães questionou mesmo a convicção formada pelo Tribunal de 1.ª instância, quando é certo que este se apoiou, essencialmente, na prova produzida em audiência (com particular relevo para os depoimentos prestados de viva voz por reputados especialistas e um perito médico), e quando é certo que a Relação de Guimarães, pura e simplesmente, não pôde aceder a tais depoimentos, em termos de lhe ser viável sindicar o seu concreto significado e relevo para a convicção formada em 1.ª instância.
4. Aliás, a leitura atenta da sentença da comarca de Barcelos permite concluir que, quanto aos pontos 1) a 11) da matéria de facto dada como provada (e esta é a matéria da vertente criminal), a convicção do tribunal se baseou «na apreciação crítica das declarações dos assistentes e nos depoimentos das testemunhas prestados em sede de audiência».
5. Quer isto dizer que, sobre estes pontos (que foram os que justificaram a condenação, como resulta, expressis verbis, da fundamentação da sentença), ao Tribunal da Relação de Guimarães não era lícito tecer quaisquer considerações, pondo em causa o que quer que fosse.
6. Actuando como actuou, a Relação de Guimarães violou, claramente, a estrutura acusatória do processo criminal português, consagrada no n.° 5 do artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa.
7. Face às circunstâncias do caso, e considerando que nada fazia prever que a Relação de Guimarães viesse a decidir como decidiu (não só porque o Ministério Público até propôs o aumento da pena aplicada em 1.ª instância, mas também, e sobremaneira, porque o arguido não «ousou» sequer pedir a sua absolvição), os assistentes apenas se viram confrontados com a apontada inconstitucionalidade ao serem notificados do acórdão absolutório.
Porque a decisão da Relação de Guimarães, além da dita inconstitucionalidade, enferma da nulidade de excesso de pronúncia, foi tal nulidade invocada perante o próprio Tribunal, logo acompanhada da arguição da inconstitucionalidade, por cautela (cf. a peça entrada em juízo em 2 de Outubro de 2002).
Indeferida a invocada nulidade e não havendo recurso do acórdão absolutório, mais não resta do que a interposição do presente recurso para o Tribunal Constitucional, na certeza de que, face ao que vem de dizer-se, essa peça é o meio adequado para suscitar a inconstitucionalidade, já que, em condições normais, não era exigível aos assistentes que a suscitassem mais cedo.
Com efeito, só foi possível que a Relação de Guimarães decidisse como decidiu em virtude de uma interpretação e aplicação da lei, de todo, inesperada e insólita, ao mesmo tempo que inconstitucional.
Na verdade, em condições normais, e neste concreto processo, ninguém podia antever que o arguido fosse sequer absolvido, menos ainda com base numa orientação totalmente violadora da nossa Lei Fundamental.
Concretizando, temos que o acórdão absolutório da Relação de Guimarães fez uso de poderes de cognição desconformes aos limites fixados nos artigos 403.°, 410.°, n.º 2, e 431.° do CPP, pôs em causa a convicção formada em
1.ª instância, assim violando o princípio da livre convicção consagrado no artigo 127.° do CPP, fez uma utilização de elementos constantes dos autos em desconformidade com os limites consignados nos artigos 355.° e 356.° do CPP, acabando mesmo por, reflexamente, atentar contra as cautelas estatuídas pelos artigos 39.°, n.º 1, alínea c), e 40.° do CPP.
Quer isto dizer que a Relação de Guimarães, estando a sua cognição condicionada pelos parâmetros fixados pelos referidos preceitos, fez deles uma interpretação e uma aplicação que atentam, de modo ostensivo, contra o princípio da estrutura acusatória consagrado no processo penal português, princípio esse de que aqueles preceitos são expressão.
Consequentemente, temos que o acórdão em apreço fez daqueles preceitos legais uma interpretação e uma aplicação violadoras do princípio consignado no n.° 5 do artigo 32.° do Código de Processo Penal, razão pela qual deve ser admitido o presente recurso.
Mais cumpre referir, desde já, que o novo acórdão proferido pela Relação de Guimarães, em 2 de Dezembro de 2002, pronunciando-se sobre a nulidade invocada, intenta «compor as coisas», em ordem a afastar a mancha da inconstitucionalidade de que padece o acórdão de 23 de Setembro de 2002, no termos sobreditos.
Para tal, numa técnica própria de interpretação autêntica (que não é permitida), esse novo acórdão pretende que os excessos cometidos não teriam sido determinantes para a decisão, quando é certo que a decisão é a que consta do acórdão de 23 de Setembro de 2002 ora recorrido, nem mais, nem menos.
Além disso, o novo acórdão afirma que tudo não passa de uma diferente qualificação jurídica dos factos fixados em 1.ª instância, o que seria permitido ao tribunal de recurso.
Se é certo que, em alguns casos, o tribunal de recurso pode proceder a diferente qualificação dos factos, é também certo que isto deve conter-se nos limites dos já citados artigos 410.º, n.º 2, e 431.° do CPP.
Ao proceder como procedeu, mesmo admitindo esta perspectiva «mais suave» do segundo acórdão, a decisão da Relação de Guimarães sempre continuou violando o mesmo n.° 5 do artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa, por fazer daqueles artigos 410.°, n.º 2, e 431.° do CPP uma interpretação e aplicação contrárias ao princípio constitucional da estrutura acusatória do nosso processo penal.
Com efeito, o «ensaio» acerca da (in)consciência da ilicitude que podemos surpreender no segundo acórdão nunca poderia colher no caso vertente.
Em primeiro lugar, porque a sentença de 1.ª instância, vista ela como um todo (e não a fragmentando, fragmentação essa que é realizada, em termos inusitados, pelo acórdão ora recorrido) revela que o Tribunal condenou o arguido por haver formado a convicção de que:
– o arguido diagnosticou um certo quadro clínico (registado, aliás, na ficha do doente),
– o arguido não providenciou pelo imediato internamento do doente,
– a terapêutica receitada não foi adequada,
– a morte do doente ficou a dever-se à falta de cuidados médicos
(nomeadamente, o internamento hospitalar em serviço de pediatria),
– o arguido não desenvolveu todas as diligências médicas que lhe eram exigíveis e estavam ao seu alcance para evitar a morte do doente, e
– o arguido podia e devia prever que a sua actuação podia causar, como causou, a morte do doente.
Este quadro factual é incontornável para o próprio Tribunal de recurso, não só porque foi fixado em 1.ª instância segundo a livre convicção do Tribunal, mas também porque a Relação não dispõe de quaisquer elementos capazes de abalarem tal convicção.
E este quadro é, em todas as latitudes, mais do suficiente para incriminar um médico por conduta assumida no exercício da sua profissão.
De resto, vista a sentença de 1.ª instância sempre num todo (como deve ser), é imperioso concluir que a mesma dá rigoroso cumprimento, além do mais, ao prescrito no artigo 368.° do CPP.
Por razões um tanto ao quanto incompreensíveis, a Relação de Guimarães preocupou-se, não com o que ficou provado e não com a convicção formada pelo Tribunal de 1.ª instância, mas sim com o que terá ficado por provar.
Como é sabido, em processo, os factos não provados têm-se apenas por não alegados, logo perdendo utilidade.
O que importa, outrossim, é a factualidade fixada pelo Tribunal e a convicção que este formou acerca do incriminação do arguido. Isto, para dizer que a Relação de Guimarães ultrapassou os seus limites de cognição e, assim, violou o princípio do acusatório, quando se preocupou em repristinar matéria que estava apenas no despacho de pronúncia e que o Tribunal de 1.ª instância não levou em conta (porque até nem tinha de levar) para a condenação.
Como também é sabido, a condenação não supõe a completa adesão aos factos da pronúncia.
Basta que, desses, se provem os necessários à incriminação.
Foi o que aconteceu na comarca de Barcelos.
Assim resulta da sentença de 1.ª instância.
Os artigos 7.° a 10.° da pronúncia não eram imprescindíveis nem essenciais à condenação (eram, até, meramente acessórios – conclusivos ou difusos, na douta expressão contida na pág. 5 do acórdão de 2 de Dezembro de
2002, o qual, ele próprio, revela a incongruência da orientação assumida pela Relação).
Como se sabe, o que é conclusivo ou difuso não constitui verdadeira factualidade. Portanto, não se vê razão para a Relação de Guimarães se interessar por esses aspectos menores.
Daí que o Tribunal de 1.ª instância não haja hesitado em condenar o médico arguido, face à factualidade apurada.
Depois, o artigo 16.° da pronúncia não constituiu factualidade em si, mais não sendo do que uma formulação conclusiva do que ficou alegado nos artigos precedentes da decisão instrutória – esses, sim, contendo factos relevantes, dados como provados em 1.ª instância.
Daí, também, que o Tribunal de 1.ª instância não tivesse que dar como provado o escrito no artigo 16.° da pronúncia.
Basta ler com atenção essa sentença para verificar que a Senhora Juíza, no escrupuloso cumprimento do prescrito no artigo 368.° do CPP, respeitou o iter necessário e suficiente para a condenação a que chegou.
Nessa decisão, está assumida a ilicitude da conduta do médico arguido.
A partir daí, a Relação de Guimarães jamais poderia fazer retroceder o juízo decisório.
Sem necessidade de maior explanação, pede-se vénia para referir que, juridicamente, não é explicável ou compreensível a decisão da Relação de Guimarães.
Em segundo lugar, a Relação de Guimarães parece ignorar que o processo em apreço tem como arguido um médico que está a ser julgado por conduta assumida no exercício profissional da medicina, o que significa que é nesse
âmbito que deve ser realizado o juízo de censura sobre a sua actuação, como é entendimento pacífico, doutrinal e jurisprudencialmente (cf., nomeadamente, os ensinamentos constantes do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de Outubro de 1998, publicado na Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1998, tomo III, págs. 183-186, mais concretamente no 4.° parágrafo da coluna da direita da pág. 185).
Equivale isto a dizer que, neste caso, o Tribunal de recurso jamais poderia questionar a ilicitude assumida na sentença de 1.ª instância.
Questionando esse ponto, a Relação de Guimarães está, mais uma vez, a fazer dos artigos 410.°, n.º 2, e 431.° do CPP uma interpretação e uma aplicação contrárias ao princípio constitucional do acusatório, assim violando o n.° 5 do artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa.
Por isso, também por aí, sempre se justifica o presente recurso dirigido ao Tribunal Constitucional.
***
Bem vistas as coisas, o acórdão ora recorrido revela mais uma inconstitucionalidade.
Com efeito, no presente caso, constata-se que o Tribunal da Relação de Guimarães adoptou uma orientação decisória (errada, data vénia) inesperada, de todo, para os diversos intervenientes processuais (mesmo para o arguido, que não contava ser absolvido!).
Quer isto dizer que, face à perspectiva de decidir como decidiu, o Ex.mo Senhor Desembargador relator deveria ter proporcionado a todos os intervenientes uma tomada de posição sobre essa nova perspectiva.
É o que impõe o princípio do contraditório, de acordo com a sua formulação mais rigorosa e actual.
Em processo (civil ou penal), é proibida a prolação de
«decisões-surpresa», como é entendimento pacífico, doutrinal [entre outros, cf. J. Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Coimbra, 1996, págs. 96 e seguintes, particularmente, págs. 102-105] e jurisprudencialmente.
Do que se trata é da observância de um due process of law, o que passa por proporcionar um processo judicial justo, com direito de acesso aos mais amplos poderes de defesa, com direito a pronúncia sobre as questões decidendas.
Está em jogo o princípio constitucional do direito de acesso aos tribunais.
Tal como é jurisprudência firme do Tribunal Constitucional, este direito de acesso aos tribunais implica o direito a uma solução judicial, obtida com garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se o correcto funcionamento da regras do contraditório, em termos de cada um dos intervenientes processuais poder deduzir as suas razões (de facto e de direito).
Além disso, o Tribunal Constitucional também vem entendendo que o princípio do contraditório, ainda que não autonomamente consagrado na Constituição, possui dignidade constitucional, por decorrer, ao menos, do princípio do Estado de Direito e ser, simultaneamente, uma emanação directa do princípio da igualdade.
O princípio do contraditório, com a amplitude que, hoje, o caracteriza está consagrado no artigo 3.° do Código de Processo Civil (CPC), tendo aplicação em processo penal, tal como refere o artigo 4.° do CPP.
No caso vertente, o acórdão ora recorrido, pela orientação assumida,
é uma «decisão-surpresa», que atenta contra o princípio do contraditório.
Avançando para a decisão, sem prévia consulta dos intervenientes processuais, a Relação de Guimarães fez daquele artigo 3.° do CPC uma interpretação e uma aplicação contrárias aos princípios constitucionais do acesso ao direito e aos tribunais e da igualdade, dos quais decorre o próprio princípio do contraditório, assim violando o disposto nos artigos 13.° e 20.° da Constituição da República Portuguesa.
Por mais estas razões, também deve ser admitido o presente recurso para o Tribunal Constitucional.”
O recurso foi admitido por despacho do Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Guimarães, de 24 de Março de 2003, o que, como é sabido, não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da LTC).
Neste Tribunal Constitucional, os recorrentes foram convidados a completar a indicação dos elementos exigidos pelos n.ºs 1 e 2 do artigo 75.º-A da LTC, o que se propuseram fazer através do requerimento de fls. 682 a 687, do seguinte teor:
“O presente recurso foi interposto do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 23 de Setembro de 2002, no âmbito do processo que aí correu termos sob o n.° 101/2002 da 1.ª Secção.
Do que se trata, essencialmente, é de sindicar a interpretação que o referido acórdão fez dos preceitos processuais penais que definem os poderes cognitivos do tribunal de recurso, maxime no que contende com a estrutura acusatória do processo penal português, tal como consagrado no n.° 5 do artigo
32.° da Constituição da República Portuguesa.
Por razões de clareza, e para a adequada satisfação do douto convite que lhes foi formulado, os recorrentes passam a indicar:
1) Norma e princípio constitucionais violados
No entender dos recorrentes, o acórdão recorrido é fruto de uma interpretação e aplicação da lei violadora do princípio da estrutura acusatória do processo criminal, que encontra consagração no n.° 5 do artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa.
2) Normas cuja interpretação é inconstitucional
No caso vertente, a decisão absolutória do Tribunal da Relação de Guimarães deriva de uma interpretação inconstitucional dos seguintes preceitos do Código de Processo Penal (CPP): artigos 39.°, n.º 1, alínea c), 40.°, 127.°,
355.°, 356.°, 403.°, 410.°, n.º 2, e 431.°
Os recursos dirigidos à Relação de Guimarães limitavam-se a matéria de direito.
Nesses recursos não foi impugnada a factualidade fixada em 1.ª instância.
Os depoimentos prestados em audiência, embora gravados, não se mostram transcritos (o que sempre seria despiciendo em recursos limitados a matéria de direito).
Tal como ficou exarado na sentença proferida em 1.ª instância, a Senhora Juíza fundou a sua convicção quantos aos factos elencados de 1) a 11) – que são os factos relativos à vertente penal – nas declarações dos assistentes e nos depoimentos testemunhais prestados em audiência.
Além disso, também considerou o «registo clínico, o relatório da autópsia e os esclarecimentos prestados pelo Instituto de Medicina Legal, na parte a cuja leitura se procedeu na audiência de julgamento».
Ainda nos termos exarados nessa sentença, a conjugação dos referidos elementos probatórios levou a Senhora Juíza a afirmar que «o tribunal não tem dúvidas em concluir que a atitude do médico foi inadequada, por não ter diligenciado pelo internamento da criança face ao seu quadro clínico e ainda por a ter medicado de forma incorrecta».
Ao apreciar essa sentença, e face aos termos dos recursos dela interpostos, a intervenção da Relação de Guimarães estava delimitada pelas seguintes coordenadas:
– os seus poderes cognitivos limitavam-se a matéria de direito
(artigo 403.° do CPP);
– tinha de respeitar, integralmente, a factualidade fixada em 1.ª instância (artigos 403.°, 410.°, n.º 2, e 431.° do CPP);
– tinha de respeitar a convicção da Senhora Juíza da comarca de Barcelos e o modo como tal convicção se formou, a qual, como dito, assentou na prova produzida em audiência (artigos 127.º, 355.° e 356.° do CPP);
– não poderia considerar autos de inquérito e de instrução lidos em audiência, já que a decisão de facto não foi impugnada (artigo 403.° do CPP);
– menos ainda poderia considerar autos de inquérito e de instrução não lidos ou não reproduzidos em audiência (artigos 403.°, 355.° e 356.° do CPP).
Ainda face aos termos dos recursos interpostos, e dentro do referido condicionalismo cognitivo, a Relação de Guimarães tinha, essencialmente, de responder ao seguinte:
– a medida da condenação (note-se que nem a defesa pediu absolvição) era adequada?
– ou devia ser agravada, como pediam os assistentes e promovia o Ministério Público?
– ou devia ser atenuada, como pedia a defesa?
Se eram estes os parâmetros da intervenção da Relação de Guimarães,
é óbvio que o acórdão ora recorrido jamais poderia tecer as considerações que aí ficaram vertidas e jamais poderia concluir pela absolvição do arguido.
Ultrapassando os limites cognitivos acima enunciados, a Relação de Guimarães atentou contra os referidos preceitos legais, os quais dão corpo à estrutura acusatória do processo penal português, consagrada no artigo 32.°, n.º
5, da Constituição da República Portuguesa.
No caso vertente, a Relação de Guimarães chegou ao insólito de convocar autos de inquérito (fls. 100, 105, 119 e 128) e instrução (fls. 201 e
202) cuja leitura nem sequer ocorreu em 1.ª instância e que, por isso, nem aí podiam ter sido valorados (como não foram).
E se não podiam ser valorados em 1.ª instância (artigo 355.° do CPP), é claro que a Relação de Guimarães nunca poderia aceder a tais autos de inquérito e de instrução.
O acórdão recorrido mostra que a Relação de Guimarães ainda atentou, por via reflexa, contra as cautelas impostas pelos artigos 39.°, n.º 1, alínea c), e 40.° do CPP, os quais também materializam a estrutura acusatória do processo penal português.
Na verdade, ao ir «directamente» a autos de inquérito e de instrução buscar apoio para a decisão do recurso e para, assim, pôr em causa a decisão da
1.ª instância, a Relação de Guimarães fez tábua rasa daquilo que tais preceitos visam impedir.
De facto, esses preceitos existem para evitar que o julgador funde a sua decisão em elementos por si colhidos quando, nesses autos, já tenha exercido funções em fase processual anterior e distinta.
Ou seja, quem acusa, não julga.
E quem dirige a instrução também não julga o processo.
Se assim é, mal seria que os Juizes Desembargadores, passando por cima disso tudo, se inspirassem em elementos colhidos (por outros magistrados) em fases anteriores, sempre que tais elementos (como foi o caso) tenham acabado por não ser lidos ou produzidos (examinados) em audiência de julgamento.
Sem prejuízo do que antecede, não se ignora o disposto no n.° 2 do artigo 410.° do CPP.
No entanto, e desde logo, é de notar que a Relação de Guimarães nem sequer invocou tal preceito para justificar a sua actuação.
Depois, dúvidas não restam de que o dito preceito é, de todo, inaplicável ao caso vertente, por não se verificar nenhuma das hipóteses excepcionais aí consignadas, o que significa que a sua eventual utilização nestes autos sempre implicaria uma interpretação inconstitucional do preceito, por atentar, mais uma vez, contra a estrutura acusatória do processo penal português.
Em síntese, temos que a Relação de Guimarães, embora ciente de que os seus poderes cognitivos estavam delimitados pelos preceitos acima referidos, não os considerou minimamente, a ponto de poder dizer-se que o seu acórdão foi proferido à luz de uma interpretação livre – por isso inconstitucional – daqueles preceitos.
Só isso explica que o acórdão tenha posto em causa a factualidade fixada em 1.ª instância, que tenha usado indiscriminadamente certos trechos de autos de inquérito e de instrução, que se tenha preocupado mais com o que não ficou provado do que com aquilo que ficou efectivamente provado, enfim, que fizesse tábua rasa de uma das mais relevantes características do nosso processo penal, a sua estrutura acusatória, que tem dimensão constitucional.
3) Peça em que foi suscitada a inconstitucionalidade
A inconstitucionalidade a que respeita este recurso foi suscitada pelos assistentes-recorrentes na primeira peça que apresentaram após a notificação do acórdão absolutório de 23 de Setembro de 2002 (cf. a peça entrada em juízo em 2 de Outubro de 2002).
Face às circunstâncias do caso, e considerando que nada fazia prever que a Relação de Guimarães viesse a decidir como decidiu (não só porque o Ministério Público propôs o aumento da pena aplicada em 1.ª instância, mas também, e sobremaneira, porque o arguido nem sequer pediu a sua absolvição), os assistentes-recorrentes apenas se viram confrontados com a apontada inconstitucionalidade ao serem notificados do acórdão absolutório.
Porque a decisão da Relação de Guimarães, além da dita inconstitucionalidade, enfermava da nulidade de excesso de pronúncia, foi tal nulidade invocada perante o próprio Tribunal, logo acompanhada da arguição da inconstitucionalidade.
Salvo melhor opinião, a referida peça de 2 de Outubro de 2002 foi o meio adequado para suscitar a inconstitucionalidade, já que, em condições normais, não era exigível aos recorrentes-assistentes que a suscitassem mais cedo.
Com efeito, só foi possível que a Relação de Guimarães decidisse como decidiu em virtude de uma interpretação e aplicação da lei, de todo inesperada e insólita, ao mesmo tempo que inconstitucional.
Em condições normais, e neste processo, ninguém podia antever que o arguido fosse sequer absolvido, menos ainda com base numa orientação totalmente violadora da nossa Lei Fundamental.”
2. A admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – que foi o interposto pelos recorrentes – depende da suscitação “durante o processo” da inconstitucionalidade da(s) norma(s) aplicada(s) pela decisão recorrida e cuja conformidade constitucional o recorrente pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, esclarecendo o n.º 2 do artigo 72.º da mesma Lei que tal recurso só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”.
Constitui jurisprudência consolidada deste Tribunal Constitucional que o apontado requisito só se pode considerar preenchido se a questão de constitucionalidade tiver sido suscitada antes de o tribunal recorrido ter proferido a decisão final, pois com a prolação desta decisão se esgota, em princípio, o seu poder jurisdicional. Por isso, tem sido uniformemente entendido que, proferida a decisão final, a arguição da sua nulidade ou o pedido da sua aclaração, rectificação ou reforma não constituem já meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade, pois a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, não a torna obscura ou ambígua, nem envolve “lapso manifesto” do juiz quer na determinação da norma aplicável, quer na qualificação jurídica dos factos, nem desconsideração de elementos constantes do processo que implicassem necessariamente, só por si, decisão diversa da proferida. E também, por maioria de razão, não constitui meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade a sua invocação, pela primeira vez, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade ou nas respectivas alegações.
Só assim não será nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade.
De qualquer forma, em Portugal, diversamente dos países onde está consagrado o “recurso de amparo” (Espanha) ou a “queixa constitucional”
(Alemanha), o controlo de constitucionalidade confiado ao Tribunal Constitucional é um controlo da constitucionalidade de normas jurídicas, e não um contencioso de decisões, designadamente decisões judiciais, ou de actos processuais.
3. No presente caso, face ao carácter inesperado da decisão contida no acórdão recorrido e ao caminho insólito por ele percorrido para atingir tal decisão, com invocação directa de elementos de prova constantes das fases do inquérito e da instrução, é de considerar que não era exigível aos recorrentes que suscitassem qualquer questão de inconstitucionalidade normativa relativa a este extravasamento dos poderes de cognição do tribunal de recurso antes de terem tido conhecimento do teor da decisão e da sua fundamentação. Assim, deve considerar-se, atenta a natureza anómala da decisão, que teria sido em tempo a suscitação de pertinente questão de inconstitucionalidade feita no requerimento de arguição de nulidade do acórdão em causa.
Acontece, porém, que nessa arguição de nulidade, os recorrentes não suscitaram adequadamente nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa, antes imputaram à própria decisão judicial impugnada, em si mesma considerada, a violação da Constituição.
Sendo incontroverso que os poderes do Tribunal Constitucional em matéria de fiscalização concreta da constitucionalidade se dirigem a normas jurídicas e não a decisões judiciais, é também sabido que este Tribunal se tem considerado em geral competente para julgar a inconstitucionalidade de interpretações normativas ou de normas interpretativamente obtidas: invocar a inconstitucionalidade de uma dada interpretação de certa norma jurídica é invocar a inconstitucionalidade da própria norma, nessa interpretação. Reconhece-se que nem sempre é fácil distinguir, na prática, as situações em que a inconstitucionalidade é imputada directamente a uma decisão judicial daquelas em que o é a uma interpretação normativa. Porém, o critério a seguir para identificar este último tipo de situações (em que é admissível a intervenção do Tribunal Constitucional) passa por apurar se é discernível, no iter cognoscitivo e valorativo da decisão recorrida, um momento autónomo, mesmo que não explicitamente enunciado, de adopção de um critério normativo dotado de um mínimo de generalidade e de abstracção, que depois se vai aplicar no caso concreto. Se não estiver em causa um critério normativo de decisão, em que o tribunal recorrido se tenha baseado como ratio decidendi, mas antes e tão-só um puro acto de julgamento, directamente determinado pela ponderação da singularidade do caso concreto, aí já não é consentida, no sistema português de fiscalização de constitucionalidade, de índole normativa, a intervenção crítica do Tribunal Constitucional.
No presente caso, os recorrentes, na arguição de nulidade do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, atrás integralmente transcrita, imputaram directamente a violação do princípio constitucional do contraditório ao acórdão impugnado, não sendo discernível, mesmo de modo implícito, a suscitação de qualquer inconstitucionalidade normativa, designadamente tendo por objecto qualquer interpretação “genérica” dos artigos 39.º, n.º 1, alínea c), 40.º ou
355.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Por outro lado, só no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, e portanto já intempestivamente, é que os recorrentes vieram suscitar as questões da inconstitucionalidade da interpretação que teria sido dada aos artigos 403.º, 410.º, n.º 3, e 431.º do mesmo Código, bem como da inconstitucionalidade da interpretação que teria sido dada ao artigo 3.º do Código de Processo Civil, violadora dos princípios constitucionais do acesso ao direito e aos tribunais e da igualdade. Aliás, esta última questão deixou de ser referida pelos recorrentes no requerimento apresentado na sequência do convite formulado ao abrigo do n.º 6 do artigo 75.º-A da LTC.
Assim, apenas resta constatar que as limitações do sistema português de fiscalização de constitucionalidade, impedindo o controlo pelo Tribunal Constitucional de decisões judiciais em si mesmas violadoras de princípios e preceitos inconstitucionais, como seria o caso destes autos, obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso.
4. Em face do exposto, decide-se, ao abrigo do n.º 1 do artigo
78.º-A da LCT, não conhecer do objecto do recurso.”
1.2. A reclamação apresentada, após descrever as vicissitudes processuais do caso, desenvolve a seguinte fundamentação:
“21. Ainda assim, visto o primeiro parágrafo do ponto 3 da «decisão sumária»
(cf. pág. 24) é de realçar que o Ex.mo Conselheiro Relator anotou o «carácter inesperado da decisão contida no acórdão recorrido», bem assim o «caminho insólito por ele percorrido para atingir tal decisão, com invocação directa de elementos de prova constantes das fases do inquérito e da instrução».
22. Depois, ainda no ponto 3 da «decisão sumária», depois de aludir aos poderes do Tribunal Constitucional para julgar a inconstitucionalidade de interpretações normativas ou de normas interpretativamente obtidas, o Ex.mo Conselheiro Relator reconhece a dificuldade prática da orientação seguida pelo Tribunal Constitucional, e avança um critério para «identificar este último tipo de situações (em que é admissível a intervenção do Tribunal Constitucional» (cf. a pág. 25).
23. Perante isso, o Ex.mo Conselheiro Relator decidiu que os recorrentes não suscitaram adequadamente a inconstitucionalidade que apontaram ao acórdão da Relação de Guimarães.
24. Com o devido respeito, afigura-se que o entendimento subjacente
à «decisão sumária» foi desenvolvido em sentido inverso ao que se justifica num caso como o presente.
25. Dito de outro modo, temos que a «decisão sumária» adopta uma orientação restritiva acerca de um recurso como o presente, em termos de procurar motivos para não admitir o recurso, quando a preocupação deveria ser a inversa, isto é, a de admitir o recurso, excepto se não fosse, de todo, possível o seu conhecimento.
26. Do que se trata é de saber se o Tribunal Constitucional pode ficar indiferente ao modo como o caso da morte do H... às mãos de um médico foi resolvido pelo acórdão da Relação de Guimarães – mais a mais, depois de o Ex.mo Conselheiro Relator ter anotado o que anotou acerca desse acórdão, onde é patente a sua percepção sobre a gravidade do decidido.
27. Quando foram notificados desse acórdão, os recorrentes apontaram os inúmeros vícios de que padecia, muitos dos quais se reconduziam à inconstitucionalidade apontada.
28. É claro que, em matéria de decisões judiciais, o que está em jogo será uma inconstitucionalidade (normativa) decorrente de certa interpretação de normas jurídicas ou uma inconstitucionalidade de norma interpretativamente obtida.
29. De qualquer modo, a inconstitucionalidade existe por se violar um princípio ou uma norma constitucional.
30. Do requerimento em que arguiram a nulidade do acórdão e suscitaram a inconstitucionalidade resulta, nitidamente, a indicação dos preceitos processuais penais que balizavam a intervenção do Tribunal da Relação, o sentido e alcance desses preceitos – os quais materializam o princípio da estrutura acusatória do processo penal português.
31. Desse requerimento resulta que a inconstitucionalidade adveio do facto de a Relação de Guimarães não ter respeitado aqueles preceitos.
32. Ora, o desrespeito por esses preceitos, que a Relação não podia ignorar, é fruto de uma interpretação errada dos mesmos, interpretação errada essa que ofende a estrutura acusatória do processo penal – daí a inconstitucionalidade.
33. Salvo o devido respeito, será forçado entender que o dito requerimento não é suficiente para que possa ter-se como suscitada adequadamente a inconstitucionalidade.
34. Acresce que esse requerimento (que deve ser tomado como um todo) já contém alusão à violação do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, o que é bastante para o efeito da arguição da inconstitucionalidade.
35. É certo que o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional suscitou (intempestivamente) outra inconstitucionalidade (por isso mesmo, não referida na sequência do convite).
36. O que importa, isso sim, é notar que a inconstitucionalidade por violação da estrutura acusatória do processo penal foi arguida em tempo e que o modo utilizado foi suficiente (embora até possa aceitar-se que a técnica empregue não terá sido a mais correcta).
37. De resto, numa ponderação abrangente, sempre se justifica admitir o presente recurso.
38. Primeiro, porque a solução contida na «decisão sumária» expressa a prevalência da forma sobre a substância, algo que deve ser reduzido ao mínimo e não enfatizado.
39. Como se sabe, o nosso país continua líder em matéria de quantidade de processos decididos com fundamento em razões formais, estandarte que não nos deve orgulhar, impondo-se caminhar em sentido inverso.
40. Segundo, porque o não conhecimento do recurso pelo Tribunal Constitucional equivale a deixar sem punição o médico arguido cuja actuação clínica conduziu à morte do infeliz H... .
41. Terceiro, porque o não conhecimento do recurso pelo Tribunal Constitucional equivale a deixar sem censura o acórdão da Relação de Guimarães, cuja decisão ofende tudo e todos, ou seja, as regras processuais penais, (pelo menos) um princípio constitucional e, não menos importante, o mais básico e elementar sentido de Justiça de qualquer cidadão.
42. Depois de terem perdido o seu filho H... às mãos de um médico, os recorrentes esperavam que os Tribunais não deixassem tal médico sem punição.
43. Essa punição foi obtida, e bem, em 1.ª instância.
44. E só não foi confirmada na Relação por circunstâncias muito pouco abonatórias para a Justiça nacional.
45. O recurso para o Tribunal Constitucional é o que resta aos pais do H..., para reparar o inusitado acórdão da Relação de Guimarães.
46. Se lhes é permitido o desabafo, os Tribunais portugueses (o Tribunal Constitucional incluído) tudo devem fazer para que as decisões proferidas realizem a própria função jurisdicional, o que não é compatível com decisões formais.
47. As decisões formais devem reduzir-se ao mínimo, não sendo correcta uma certa tendência para encontrar pretextos formais justificativos do não conhecimento do mérito.
48. Cada decisão formal corresponde a uma oportunidade perdida para realizar o ideal da Justiça.
Neste momento histórico, em que o nosso país experimenta sentimentos de profundo desencanto, desalento e desconforto (pelas mais diversas razões), mais pertinente ainda é a necessidade de prevalência do fundo sobre a forma.
Salvo o devido respeito, a «decisão sumária» de que ora se reclama alinha naquela corrente mais apegada a questões prévias e formais que acabam por obstar ao conhecimento do fundo da questão.
Para todos, para o sistema judicial e para a sociedade, é premente que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre o acórdão recorrido e verifique se é admissível à 1uz da Constituição da República Portuguesa.
Se conhecer do recurso (pois não há impedimentos firmes para tal) e, depois, vier a censurar devidamente o acórdão recorrido, o Tribunal Constitucional dará um relevante contributo para que todos possamos continuar a acreditar...
No caso vertente, a situação é triplamente grave.
Primeiro, a actuação desnorteada do médico arguido causou a morte do H..., filho dos recorrentes, que tinha apenas 18 meses (e hoje estaria a chegar aos 7 anos de idade).
Segundo, o acórdão absolutório é uma decisão que viola frontalmente o Código de Processo Penal e a Constituição da República Portuguesa.
Terceiro, tal acórdão está ensombrado pela suspeição que recai sobre o seu relator (matéria que está sendo apreciada em jurisdição própria).
Em face do exposto, esperam os recorrentes que seja proferida decisão no sentido de conhecer-se do objecto do recurso.”
1.3. Notificados desta reclamação, o representante do Ministério Público e o recorrido responderam, propugnando o seu indeferimento, com a consequente confirmação da decisão reclamada.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Como se refere na resposta do Ministério Público, “as considerações dos recorrentes não abalam minimamente o cerne de tal decisão: não ter sido suscitada, em termos tempestivos e adequados, uma questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para servir de base ao recurso interposto”.
A decisão sumária reclamada reconheceu o carácter inesperado da decisão contida no acórdão recorrido para concluir que, no caso, não era exigível aos recorrentes que suscitassem qualquer questão de inconstitucionalidade normativa relativa a este extravasamento dos poderes de cognição do tribunal de recurso antes de terem tido conhecimento do teor da decisão e da sua fundamentação. A este propósito, dir-se-á que, em rigor, a tempestividade da suscitação da questão de inconstitucionalidade é independente do carácter inesperado da decisão, pois, dizendo tal questão de constitucionalidade respeito a uma nulidade da decisão, a arguição dessa nulidade constitui momento oportuno para a suscitação da questão, já que quanto
à apreciação da nulidade ainda se não mostrava esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo.
Mas o reconhecimento da tempestividade da suscitação da questão de constitucionalidade não dispensava os recorrentes de, quando a suscitaram, o fazerem em termos adequados a possibilitar a intervenção do Tribunal Constitucional, é dizer, em termos de inconstitucionalidade normativa, que não da imputação da violação da Constituição directamente à decisão judicial que se pretendia impugnar.
Ora, como se consignou na decisão sumária reclamada, no presente caso, os recorrentes, na arguição de nulidade do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, imputaram directamente a violação do princípio constitucional do contraditório ao acórdão impugnado, não sendo discernível, mesmo de modo implícito, a suscitação de qualquer inconstitucionalidade normativa, designadamente tendo por objecto qualquer interpretação “genérica” dos artigos 39.º, n.º 1, alínea c), 40.º ou 355.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. E, por outro lado, só no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, e portanto já intempestivamente, é que os recorrentes vieram suscitar as questões da inconstitucionalidade da interpretação que teria sido dada aos artigos 403.º, 410.º, n.º 3, e 431.º do mesmo Código, bem como da inconstitucionalidade da interpretação que teria sido dada ao artigo 3.º do Código de Processo Civil, violadora dos princípios constitucionais do acesso ao direito e aos tribunais e da igualdade, tendo, aliás, esta última questão deixado de ser referida pelos recorrentes no requerimento apresentado na sequência do convite formulado ao abrigo do n.º 6 do artigo 75.º-A da LTC.
Os ora reclamantes nada aduzem, em rigor, para contrariar este entendimento, que, por se mostrar correcto, se confirma.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 8 (oito) unidades de conta.
Lisboa, 15 de Julho de 2003.
Mário José de Araújo Torres (Relator)
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos