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Proc. nº 832/02
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, na 3ª secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nestes autos, em que é recorrente o Ministério Público e é recorrido C..., o Juiz do 2º Juízo do Tribunal Criminal de Lisboa exarou, em 25 de Outubro de
2002, despacho em que recusou aplicar, por inconstitucionalidade, as normas dos artigos 335º e 337º do Código de Processo Penal (1987), conjugadas com a do artigo 120º, n. 1, alínea d) do Código Penal (1982), na interpretação segundo a qual a declaração de contumácia pode ser equiparada à causa aí prevista, bem como as mesmas normas do Código de Processo Penal, conjugadas com o artigo 119º, n. 1, do Código Penal (1982), na interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça no assento n. 10/2000. Fundamentou deste modo aquela recusa:
“Os factos tiveram lugar em 20.4.1991. O arguido foi declarado contumaz a 8.3.1996 (fls. 106). O arguido está acusado da prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelos artigos 23 e 24, sem especificação de alínea, do Decreto n.
13.004, de 12.1.1927, na redacção do artigo 5 do Decreto-Lei n. 400/82, de 23.9, e pelo artigo 11 do Decreto-Lei n. 454/91, de 28.12 e artigos 313 e 314, al. c) do CP. Contudo, a acusação foi recebida, mas o Tribunal alterou a qualificação do crime, considerando que apenas se indiciava um crime p. e p. pelo artigo 11 do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28.12, conjugado com o artigo 217, n.1 do CP.
O prazo de prescrição do procedimento criminal é de dez anos em face da acusação e de cinco anos em face do despacho de fls. 98. De uma maneira ou de outra, não se verificaram quaisquer factos que interrompessem ou suspendessem aquele prazo de prescrição, nos termos dos arts. 119 e 120 do CP/1982. Com efeito, atenta a data dos factos, são aplicáveis os artigos 119 e 120 do CP/1982. As causas de interrupção e de suspensão da prescrição do procedimento criminal previstas naqueles artigos reportavam-se ao CPP/1929 e não podem ser aplicadas nem integradas analogicamente pelo CPP/1987, como tem decidido o Tribunal Constitucional (vd. Acórdãos do Tribunal Constitucional, n. 205/99, de
7.4.99 e n. 122/00, de 23.2.00, in respectivamente DR, II Série, de 5.11.1999 e de 6.6.2000). Decorre, pois, desta jurisprudência constitucional a manifesta inconstitucionalidade, por violação do artigo 29, n. 1 e 3 da CRP, da equiparação, já tentada nos tribunais, da causa de interrupção prevista no artigo 120, n. 1, al. d) do CP/1982 com a declaração de contumácia (vd. CJ, volume I, p. 149), por a omissão da contumácia entre as causas de as causas de interrupção da prescrição constituir uma ‘lacuna insusceptível de ser preenchida’ (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Editorial Notícias, 1993, p. 710). Também não pode proceder a consideração da declaração de contumácia como uma causa de suspensão da prescrição, nos termos do assento n. 10/2000, de
19.10.2000, que consubstancia uma aplicação analógica e retroactiva a factos anteriores a 1.10.1995 de uma causa de suspensão inexistente no CP/1982 (a declaração de contumácia). O argumento usado na fundamentação do assento de que “a expressão usada «nos casos especialmente previstos na lei» não se quer referir a denominações, mas a situações, a certos conteúdos. É isto que interessa, e não o nome que se lhes aplica. Para efeitos iguais tem de haver situações idênticas”’ consubstancia uma clara interpretação analógica, especialmente visível na última frase citada! Ora, as causas de interrupção e de suspensão do procedimento criminal devem ser interpretadas restritivamente e constituem um catálogo apertado que se refere apenas aos institutos processuais vigentes à data da criação da lei que regulamenta a lei da prescrição, como manda a boa doutrina ( cfr . Adolf Schönke e Horst Shröder, Strafgesetzbuch Kommentar, Munchen, editora Beck, 1991, p. 945, e Eduard Dreher e Herbert Tröndle, Strafgesetzbuch Kommentar, München, editora Beck, 1995, p. 606), seguida uniformemente pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça alemão, o Bundesgerichtshof (BGH-Entscheidungen, vol. 4, p.
135, vol. 18, p. 278, vol. 26, p. 83, e vol. 28, p. 281). Esta doutrina e esta jurisprudência são particularmente significativas, porque o Código Penal português de 1982 reproduz praticamente o sistema alemão previsto nos §§ 78, 78 a, 78 b, 78 c, 79, 79 a, e 79 b do Código Penal alemão, sendo ainda mais restrito do que este direito, por prever menos causas de suspensão e de interrupção. O intérprete português não pode, portanto, ignorar o elemento interpretativo sistemático e teleológico que inspirou o legislador português em
1982, sob pena de se estar a substituir ao legislador . Coloca-se ainda o problema de saber qual das suas questões de inconstitucionalidade deve este Tribunal conhecer primeiro, o que não é irrelevante para efeitos da interposição do recurso desta decisão. O conhecimento da inconstitucionalidade do artigo 120 do CP/1982 é prévio ao conhecimento da inconstitucionalidade do artigo 119 do CP/1982, uma vez que a interrupção é mais gravosa para o arguido do que a suspensão da prescrição. Deve, pois, este Tribunal conhecer primeiro da questão da inconstitucionalidade do regime das causas de interrupção da prescrição e depois da inconstitucionalidade do regime das causas de suspensão da prescrição, ficando deste modo salvaguardada a prioridade lógica do recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional da decisão de inconstitucionalidade da interpretação do artigo 120 do CP/1982, que não se encontra decidida por qualquer acórdão de fixação de jurisprudência. Aliás, mesmo em relação à questão da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 119 do CP/1982, nos termos em que foi decidida pelo assento n. 10/2000, a prioridade do recurso para o STJ da decisão que negue a aplicação da interpretação fixada no assento com base na sua inconstitucionalidade poderia ter como consequência a manutenção pelo STJ da sua posição, revogando a decisão recorrida e não podendo Tribunal Constitucional conhecer da própria inconstitucionalidade suscitada em relação à interpretação firmada no assento. Este movimento circular, em que o STJ é o último juiz da inconstitucionalidade da interpretação fixada nos assentos que profere, conduziria em linha recta a uma interpretação das disposições do n. 5 do artigo 70 da Lei n. 28/82, na versão do artigo 1, da Lei n. 13-A/98, de 26.2, em violação do disposto no artigo 280, n. 1, al. a) da Constituição da República e representaria uma fraude ao sistema constitucional de garantia da Constituição. Pelo exposto:
1. não aplico, por os julgar inconstitucionais, os artigos 335 e 337 do CPP/1987, conjugados com o artigo 120, n. 1, al. d) do CP/1982, na interpretação segundo a qual a declaração de contumácia pode ser equiparada à causa aí prevista, e
2. não aplico, por os julgar inconstitucionais, os artigos 335 e 337 do CPP/1987, com o artigo 119, n. 1, do CP/1982, na interpretação dada pelo STJ no assento n. 10/2000,
3. e, em consequência, declaro prescrito o procedimento criminal e cessada a contumácia e determino o oportuno arquivamento dos autos.
[...]”.
2. Desta decisão foi interposto pelo representante do Ministério Público junto daquele Tribunal, ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea a), da Constituição e
70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso obrigatório de constitucionalidade, para apreciação da conformidade com a Constituição das normas desaplicadas. Conforme requerimento apresentado na sequência de convite formulado nos termos do n.º 6 do art.º 75º-A da mesma Lei, visava-se a apreciação da constitucionalidade das “normas constantes artigos
335º e 337º, do Código de Processo Penal de 1987, em conjugação, respectivamente, com as dos artigos 120º, n.º 1, alínea d) do Código Penal de
1982, na interpretação segundo a qual a declaração de contumácia pode ser equiparada à causa de interrupção da prescrição aí prevista; e 119º, n.º 1, do Código Penal de 1982, na interpretação que veio a ser fixada pelo «Assento» n.º
10/2000 (enquanto causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal)”.
3. Em 11 de Fevereiro de 2003, o relator exarou despacho em que limitou o objecto do recurso à apreciação da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 335º e 337º do Código de Processo Penal (versão de 1987), conjugadas com a da alínea d), do n.º 1, do artigo 120º do Código Penal (versão de 1982), na interpretação segundo a qual a declaração de contumácia pode ser equiparada à marcação do dia para o julgamento no processo de ausentes. Fundamentou assim essa limitação:
“[...] Acontece, porém, que, no que se refere à questão relativa à interpretação fixada pelo citado “Assento”, a decisão recorrida, na medida em que emite um juízo contrário a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, está, nos termos do artigo 446º do Código de Processo Penal, sujeita a recurso obrigatório do Ministério Público, pelo que se coloca a questão de saber se nos encontramos perante uma das situações abrangidas pelo n.º 5 do artigo 70º da citada Lei 28/82. Ora, este Tribunal já tomou posição sobre idêntico problema nos seus Acórdãos 281/01 e 282/01, tendo concluído que não há razões para distinguir, para efeitos de aplicação do disposto no referido preceito da Lei
28/82, entre recursos ordinários e o recurso previsto no artigo 446º do Código de Processo Penal, pelo que decidiu, precisamente por não ter sido previamente interposto este recurso obrigatório, não conhecer do objecto do recurso. Assim sendo, não se conhecerá do presente recurso no que se refere à norma constante do n.º 1 do artigo 119º do Código Penal de 1982, na interpretação fixada pelo “Assento” n.º 10/2000 [...]”.
4. Posteriormente, foi o Ministério Público, recorrente, com a limitação acima referida, notificado para alegar, o que fez, tendo concluído nos seguintes termos:
“1 - É inconstitucional, por violação do artigo 29º, nºs 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa, a interpretação normativa do artigo 120º, nº 1, alínea d) do Código Penal de 1982 - conjugado com as normas que regulam a declaração de contumácia e respectivos efeitos - enquanto faz equiparar, em termos substancialmente inovatórios, para efeitos da prescrição do procedimento criminal, o acto de marcação do dia para julgamento em processo de ausentes (nos termos do Código de Processo Penal de 1929) à declaração de contumácia que - nos termos do Código de Processo Penal de 1987 - obsta ao prosseguimento do processo, à revelia do arguido, para a fase de julgamento.
2 - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida”.
5. Por parte do recorrido não foi apresentada qualquer alegação.
6. Por determinação do relator, foram as partes notificadas do seguinte parecer:
“Dado que, não obstante ter sido determinada a elaboração de alegações, se configura como eventual solução do presente recurso o seu não conhecimento, elabora-se o presente despacho, nos termos dos artigos 69º da Lei n.º 28/82, de
15 de Novembro e 704º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
1. Em face do teor do despacho impugnado, poder-se-ia começar por questionar se o fundamento da decisão tomada foi, efectivamente, a recusa, por inconstitucionalidade, da aplicação das normas constantes dos artigos 335º e
337º do Código de Processo Penal (versão de 1987), conjugadas com a da alínea d), do n.º 1, do artigo 120º do Código Penal (versão de 1982), na interpretação segundo a qual a declaração de contumácia pode ser equiparada à marcação do dia para o julgamento no processo de ausentes. Na verdade, daquela peça processual não decorre, expressamente, que uma tal dimensão interpretativa daqueles preceitos seria a que se imporia ao autor do despacho, por força das regras de interpretação das leis e na ausência da alegada inconstitucionalidade, tanto mais que aí se refere tal interpretação como já tentada nos tribunais, sem que, todavia, seja assumida a sua aplicabilidade. Ora, a ser assim, esta interpretação seria meramente “virtual” ou “académica”, insusceptível de constituir, em qualquer caso, ratio decidendi do despacho em causa, e, como tal, igualmente insusceptível de fundamentar a intervenção do Tribunal Constitucional. Admitindo-se, contudo, numa outra leitura da peça processual apresentada, que a referida interpretação, dita já tentada nos tribunais, seria utilizada para decidir o caso então sub judice, não fora a sua alegada inconstitucionalidade, conforme se poderá depreender, embora apenas implicitamente, da parte decisória do despacho recorrido, uma outra questão se suscita, a qual conduz a que se entenda ser plausível que não possa conhecer-se do objecto do recurso.
2. Na verdade, entende-se que não é questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de ser apreciada pelo Tribunal Constitucional, a que se refere à forma ou ao modo como o direito ordinário é interpretado, isto é, a um processo interpretativo que, por não ter respeitado os limites da interpretação da lei criminal ou fiscal, decorrentes do princípio da legalidade, constante dos n.ºs 1 e 3 do artigo 29º da Constituição, conduz a uma aplicação analógica ou extensiva de determinados preceitos, ultrapassando o campo semântico dos conceitos jurídicos empregues pelo legislador. Esse entendimento teve expressão no Acórdão n.º 674/99 (publicado na 2ª Série do Diário da República de 25 de Fevereiro de
2000) e em jurisprudência maioritária posteriormente reafirmada, que aqui se acolhe integralmente, por manter inteira validade. Escreveu-se, a este propósito, no referido acórdão:
“ [...] Com efeito, o recorrente não questiona que o conteúdo da norma, com a interpretação adoptada, seja compatível com o texto constitucional – nomeadamente, não questiona que a norma em causa pudesse proceder, por opção expressa do legislador, à referida incriminação quando ocorresse apenas reserva mental de incumprimento. O que vem questionado pelo recorrente nos presentes autos é tão-só que o julgador possa alcançar esse mesmo conteúdo normativo através de um processo interpretativo, já que, ao fazê-lo através de uma forma desrespeitadora dos limites fixados à interpretação da lei criminal, viola necessariamente o princípio da legalidade penal. Ou seja, não se questiona que o comportamento do recorrente possa ser objecto de uma incriminação, apenas se questiona se ele preenche efectivamente o tipo legal do crime de burla. Conclui-se, assim, inequivocamente, que o que vem impugnado pelo recorrente não
é a norma, em si mesma considerada, mas antes, a decisão judicial que a aplicou, por via de um processo interpretativo constitucionalmente proibido. Ora, tal questão – por não respeitar a uma inconstitucionalidade normativa, mas antes a uma inconstitucionalidade da própria decisão judicial - excede os poderes de cognição do Tribunal Constitucional, uma vez que, entre nós, não se encontra consagrado o denominado recurso de amparo, designadamente na modalidade do amparo contra decisões jurisdicionais directamente violadoras da Constituição. De todo o modo, mesmo que se entendesse que este Tribunal ainda era competente para conhecer das questões de inconstitucionalidade resultantes do facto de se ter procedido a uma constitucionalmente vedada integração analógica ou a uma
«operação equivalente», designadamente a uma interpretação «baseada em raciocínios analógicos» (cfr. declaração de voto do Consº Sousa e Brito ao citado Acórdão nº 634/94, bem como o já mencionado Acórdão nº 205/99), o que sempre se terá por excluído é que o Tribunal Constitucional possa sindicar eventuais interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade. Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a controlar, em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), já que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal). E, em boa verdade, por identidade lógica de raciocínio, o Tribunal Constitucional, por um ínvio caminho, teria que se confrontar com a necessidade de sindicar toda a actividade interpretativa das leis a que necessariamente se dedicam os tribunais – designadamente os tribunais supremos de cada uma das respectivas ordens –, uma vez que seria sempre possível atacar uma norma legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu «sentido natural» (e qual é ele, em cada caso concreto?), com base em violação do princípio da separação de poderes, porque mero produto de criação judicial, em contradição com a vontade real do legislador; e, outrossim, sempre que uma tal interpretação atingisse norma sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República, ainda se poderia detectar cumulativamente, nessa mesma ordem de ideias, a existência de uma inconstitucionalidade orgânica. Ora, um tal entendimento – alargando de tal forma o âmbito de competência do Tribunal Constitucional – deve ser repudiado, porque conflituaria com o sistema de fiscalização da constitucionalidade, tal como se encontra desenhado na Lei Fundamental, dado que esvaziaria praticamente de conteúdo a restrição dos recursos de constitucionalidade ao conhecimento das questões de inconstitucionalidade normativa.
[...]”.
3. Esta jurisprudência foi produzida no âmbito de um recurso de fiscalização concreta de inconstitucionalidade fundamentado na alínea b), do n.º 1, do art.º
70º da Lei n.º 28/82, em que a decisão recorrida aplicou uma 'norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo'. Ela é, todavia, inteiramente transponível para o caso dos autos, em que, ao invés, nos encontrarmos face a uma situação de 'recus[a] de aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade' e, consequentemente, no âmbito de um recurso de fiscalização concreta de inconstitucionalidade fundamentado na alínea a), do nº 1, do art.º 70º da mesma Lei. Na verdade, não deixaria de constituir uma situação anómala se o Tribunal considerasse que uma determinada questão não
é de inconstitucionalidade normativa, susceptível de ser apreciada pelo Tribunal Constitucional, se suscitada no âmbito de um recurso de fiscalização concreta de inconstitucionalidade fundado na referida alínea b), do n.º 1, do art.º 70º da Lei n.º 28/82, mas já assim não entendesse se da alínea a) se tratasse. Ora, na verdade e em rigor, o que a decisão recorrida considerou violador da Constituição foi o facto de uma determinada interpretação das normas constantes dos artigos 335º e 337º do Código de Processo Penal (versão de 1987), conjugadas com a da alínea d), do n.º 1, do artigo 120º do Código Penal (versão de 1982), já tentada nos tribunais, ter sido obtida através de um processo interpretativo
'extensivo' ou 'analógico', do qual resultou, a final, um entendimento que extravasa o campo semântico dos conceitos utilizados pelo legislador, o que, conflituaria com o princípio da legalidade consagrado nos n.ºs 1 e 3 do artigo
29º da Constituição. A ser assim, verifica-se que, na decisão recorrida, o que é confrontado com a Constituição não é o resultado normativo obtido, mas sim o referido processo interpretativo, que terá conduzido alguns tribunais àquela interpretação. Mas então haverá que concluir que, também neste caso, não estaremos perante uma questão de inconstitucionalidade normativa.
4. Por tudo o exposto, entendemos ser plausível que não possa conhecer-se do objecto do recurso. Nestes termos, em cumprimento do disposto no artigo 704º, n.º 1, do Código de Processo Civil, (aplicável por força do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional), notifiquem-se as partes para, querendo, se pronunciarem sobre a questão prévia suscitada, no prazo de 10 (dez) dias.”
7. Notificadas as partes, veio o recorrente responder, propugnando pelo conhecimento do mérito do recurso, na perspectiva de valorar face à Constituição
“o critério interpretativo geral adoptado explicitamente pela decisão recorrida”, já que, no vertente caso, nos situamos perante a “adopção, pela interpretação judicial dos preceitos a que se vem reportando o recurso, de um critério interpretativo de índole generalizante, expressamente formulado pela decisão recorrida como ‘actualístico’ e inovatório, cuja valoração por este Tribunal prescinde inteiramente da operação consistente em fixar qual o sentido exacto e adequado das normas constitucionais que o suportam”, pelo que a questão
é a de saber “se é compatível com os princípios da legalidade e da tipicidade penais a adopção explícita pelos tribunais judiciais de um critério interpretativo geral ‘actualista’ e ‘extensivo’ das causas de interrupção e suspensão da prescrição de procedimento criminal, através do qual se ultrapasse a manifesta inadequação das normas substantivas sobre tal instituto e da estrutura da tramitação do processo penal”.
E, para fundamentar uma tal posição, o Representante do Ministério Público transcreveu a posição assumida no processo deste Tribunal n.º 140/2003, que aqui se transcreve nos seus relevantes passos:
“O recurso de constitucionalidade tem, no nosso ordenamento jurídico, carácter necessariamente normativo, devendo incidir sobre normas ou interpretações normativas, efectivamente aplicadas à dirimição d caso pela decisão recorrida. Não oferece qualquer dúvida a inidoneidade do objecto do recurso que verse, não sobre uma norma ‘objectivamente’ considerada, mas sobre uma específica interpretação jurisdicional de determinado preceito legal - claramente especificada e enunciada pelo recorrente - desde que a questão de constitucionalidade suscitada se prenda como critério normativo acolhido naquela decisão (e não com estrita operação de subsunção jurídica por esta realizada a propósito de um específico e particular caso concreto). Como dão nota os recorrentes, tem sido debatida na jurisprudência constitucional a questão que se traduz em determinar se deterá ainda natureza ‘normativa’ a impugnação - feita pelo recorrente - do ‘processo interpretativo’ que, em áreas constitucionalmente cobertas pelo princípio da legalidade (penal, fiscal), teria, em alegada violação de tal princípio, procedido a uma interpretação extensiva ou de cariz analógico dos conceitos legais, ampliando consequentemente o âmbito ‘normal’ ou ‘natural’ da aplicabilidade do tipo ou ‘fattispecie’ legal. No acórdão n.º 674/99, (in Diário da República, II Série, de 25 de Fevereiro de
2000, pág. 3856) procedeu-se a uma global apreciação da evolução da jurisprudência do Tribunal Constitucional, incidente sobre tal tema.
[...] E o acórdão n.º 674/99 acaba por aderir - embora de modo não unânime - à tese sustentada por Rui Medeiros (A Decisão da Inconstitucionalidade, pág. 340/342) acerca da eventual extensão do sistema de controlo da constitucionalidade às normas que se extraem da integração de lacunas, em que se conclui que ‘nos casos em que o próprio legislador pode (sem ofender a Constituição) estabelecer por via legislativa solução idêntica àquela que resultava da interpretação ou integração inconstitucional da lei realizada pelo tribunal ‘a quo’, o Tribunal Constitucional não pode conhecer do recurso’.
É que - a não ser assim - afirma-se - acabaria por estar cometido ao Tribunal Constitucional o controlo da interpretação judicial de todas as normas situadas em áreas abrangidas pelo princípio da tipicidade, já que seria sempre possível atacar uma norma legislativa quando interpretada e aplicada de forma a exceder o seu ‘sentido natural’, confundindo e sobrepondo os planos de constitucionalidade normativa e da errónea interpretação do direito infraconstitucional. No mesmo sentido, pode ver-se - em termos também não unânimes - o acórdão n.º
383/2000.
É possível identificar três posições, na jurisprudência actual deste Tribunal, sobre a questão enunciada. a) A posição, afirmada pelos Exmos. Conselheiros Presidente e Vice-Presidente nas declarações de voto formuladas nos acórdãos nºs 205/99, 285/99 e 122/00, que se traduz em considerar que não cabe, em nenhuma circunstância, no âmbito do controlo normativo cometido ao Tribunal Constitucional a verificação da ocorrência de uma alegada interpretação ‘criativa’ ou ‘extensiva’ de uma norma penal, em invocada colisão com os princípios da legalidade e da tipicidade; b) A posição - de sentido exactamente oposto - sustentada pelos Exmos. Conselheiros Sousa Brito e Maria dos Prazeres Beleza, nas declarações de voto apendiculadas, respectivamente, aos acórdãos nºs. 674/99 e 383/00 - considerando que detém o referido carácter ‘normativo' a averiguação da existência de uma violação dos princípios da tipicidade e da legalidade, já que tal equivaleria a apreciar da conformidade da norma penal concretamente interpretada e aplicada, com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua específica função de orientação de comportamentos, não revestindo, nesta óptica, tal situação diferença relevante relativamente ao normal e incontroverso controlo da constitucionalidade da interpretação de normas penais. c) Finalmente, a orientação que parece ser maioritária no Tribunal Constitucional - expressa na solução que fez vencimento, nomeadamente, nos acórdãos nºs. 674/99, 383/00, 205/99, 285/99 e 122/00 - e que se traduz em proceder a uma distinção essencial: se a parte se limitar a pôr em crise o
‘processo interpretativo’ concreta ou pontualmente seguido pelo tribunal ‘a quo’ na fixação do sentido dos conceitos usados pelo legislador penal ‘maxime’ na definição dos elementos do tipo - sustentando que tal processo interpretativo implicou um alargamento ou extensão do âmbito ‘natural’ dos conceitos legais, traduzindo interpretação ‘criativa’ ou extensiva de normas penais materiais - não estará delineada, em termos bastantes, uma verdadeira questão de inconstitucionalidade ‘normativa’. Se, porém, a parte questionar um critério interpretativo de índole generalizante e explicitamente invocado pelo juiz ‘a quo’, em função do qual se alcançou a norma relevante para a dirimição do caso concreto - sendo tal conteúdo ou critério interpretativo autonomizado e claramente destacado das circunstâncias específicas e particulares do caso concreto, fazendo nomeadamente o juiz ‘a quo’ explícito apelo à utilização do critério normativo ‘inovador’ ou ‘criativo’, alegadamente violador do princípio da legalidade - e tratando o recorrente de o enunciar através de proposição formulada com ‘elevada abstração’ e vocação para uma aplicação de cariz generalizante - já se estará (na óptica de tal orientação da maioria do Tribunal Constitucional) perante uma questão susceptível de preencher o objecto de um recurso de constitucionalidade. Deste modo - ponderadas as soluções acolhidas, nomeadamente, nos citados acórdãos nºs. 674/99, 205/99 in Boletim do Ministério da Justiça 486, pág. 51,
285/9) in Boletim do Ministério da Justiça 487) pág. 72, 122/00, in Boletim do Ministério da Justiça 494, pág. 57, 383/00, 190/01 in Diário da República, II Série, de 6 de Julho de 2001, pág. 11247, 363/01, in Diário da República, II Série, de 13 de Outubro de 2001, pág. 17097 e 483/02 - e na óptica da tese que vem sendo maioritariamente seguida na jurisprudência do Tribunal Constitucional
(vejam-se as declarações de voto constantes dos acórdãos citados) - importa proceder a uma distinção de que dependerá o carácter ‘normativo’ do objecto do recurso: assim, se a parte se limitar a pôr em crise o ‘processo interpretativo’ seguido pelo tribunal ‘a quo’ na fixação do sentido dos conceitos usados pelo legislador na definição dos elementos do tipo (em áreas submetidas ao referido princípio da legalidade) - sustentando que tal processo interpretativo implicou, na concreta subsunção realizada, de um alargamento ou extensão de tais conceitos legais, traduzindo a realização de interpretação extensiva ou de cariz analógico
- não estará delineada uma verdadeira questão de inconstitucionalidade
‘normativa’. Já será, pelo contrário, admissível o recurso para o Tribunal Constitucional em duas outras situações: I) quando o recorrente questione directamente a constitucionalidade do
‘resultado interpretativo’ alcançado pelo tribunal ‘a quo’ - tomado em si mesmo, com total abstracção do ‘processo interpretativo’ da lei que ao mesmo conduziu - tratando-se, afinal de determinar se a eventual e hipotética consagração legislativa do regime jurídico em que se consubstancia tal ‘resultado interpretativo’ colide ou não com a Constituição por razões estranhas à invocada violação dos princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade, ‘maxime’ do artigo 29°, n° 1, da Constituição da República Portuguesa (cfr. a situação debatida no acórdão n° 483/02, em que o Tribunal Constitucional não conheceu da questão atinente a uma pretendida ‘violação do princípio da legalidade' na interpretação judicial da norma constante do n° 4 do artigo 118° da versão originária do Código Penal – apreciando, porém, a constitucionalidade do
‘resultado interpretativo’ alcançado, para efeitos de contagem do prazo prescricional, em sede de consumação do crime de propagação de doença contagiosa agravado pelo resultado, num caso em que se verificava uma pluralidade de
‘resultados agravativos’) ; II) quando o recorrente questione a constitucionalidade de um critério interpretativo de índole generalizante, explicitamente adoptado pelo tribunal recorrido através de enunciação de um conteúdo interpretativo autonomizado e destacado das circunstâncias específicas e particulares do caso concreto - ou seja, quando o juiz ‘a quo’ haja feito explícito apelo à utilização do critério normativo alegadamente violador do princípio da legalidade e o recorrente tenha curado de o enunciar através de proposição formulada com ‘elevada abstracção’ e vocação para uma aplicação de cariz generalizante – traduzindo, na fixação dos
‘pressupostos da interpretação final’ opção por critérios gerais normativos que se apresentem por tal sorte que deles decorra a ampliação do sentido da lei, por forma a criar uma norma que nela não tenha fundamento: assim nas hipóteses subjacentes aos acórdãos 205/99, 285/99 e 122/00 - o tribunal ‘a quo’ tinha feito apelo expresso à realização de uma interpretação necessariamente actualista das normas do Código Penal de 1982 que regulavam o instituto da interrupção da prescrição do procedimento criminal, adequando-as à nova estrutura de tramitação do processo penal, ocorrida com a vigência do Código de Processo Penal de 1987, explicitando, deste modo, o critério normativo
‘genérico’ que subjazia à interpretação que realizou das normas questionadas - o que, desde logo, transcendia o puro plano de um ‘erróneo’ preenchimento, concretização ou subsunção de um tipo ou norma penal. Será, deste modo, admissível sindicar - na óptica de uma alegada violação do princípio da legalidade, proclamado pelo n° 1 do artigo 29° da Constituição - o critério interpretativo ‘extensivo’ ou ‘actualista', explicitamente formulado e invocado pela decisão recorrida; já não será possível sindicar o uso meramente implícito pelo juiz ‘a quo’ de um tal critério de interpretação do tipo - nomeadamente nos casos em que o tribunal ‘a quo’, sem assumir explicitamente a utilização de um tal critério interpretativo ‘extensivo’ ou de cariz analógico, haja, na concreta subsunção que realiza, extravazado - na óptica do recorrente - os limites consentidos pelo elemento literal do preceito interpretado. Qual a razão de ser desta distinção, assente, em última análise, na enunciação ou formulação expressa pela decisão recorrida de um critério interpretativo
‘extensivo’ ou inovatório do tipo em causa? Supomos que a razão de ser de tal dualidade de soluções assentará - não em quaisquer pressupostos situados no campo da metodologia jurídica - mas em considerações que - no plano da organização ou da arquitectura constitucional das competências dos tribunais - se fundam na repartição de competências entre o Tribunal Constitucional e as demais ordens jurisdicionais.
É que - a admitir-se que uma ‘norma’, extraída pelo julgador mediante um processo interpretativo, meramente implícito, de um preceito normativo deve, enquanto se prove o seu conteúdo inovador, de ‘norma nova’ - que extravaza o sentido possível dos elementos do tipo - ser objecto idóneo do controlo de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional - acabaria este Tribunal por
‘expropriar’ os tribunais que integram as restantes ordens jurisdicionais do seu poder - e competência - para interpretar as normas de direito infraconstitucional, passando sempre a competir ao Tribunal Constitucional a
‘última palavra’ acerca da interpretação correcta e adequada de todas as normas de direito ordinário vigentes em áreas sujeitas ao princípio da legalidade. Na verdade - e como é evidente - só é possível saber se estamos perante uma norma jurisprudencial ‘nova’ depois de o Tribunal Constitucional ter fixado qual o sentido ‘correcto’ dos conceitos usados pelo legislador infraconstitucional para descrever a ‘fattispecie’ normativa: ou seja, a ‘prova’ de que estaríamos perante um conteúdo normativo inovatório implicaria que - previamente a tal demonstração - o Tribunal Constitucional fixasse o preciso sentido ou significado do preceito que lhe serve de base ou suporte, determinando qual o bem ou interesse jurídico tutelado e qual o significado literal ‘máximo’ consentido por um tal preceito. Para saber se o sentido jurisprudencialmente alcançado pelo tribunal judicial tem, no preceito legal, um ‘mínimo de correspondência verbal’ teria o Tribunal Constitucional de fixar - como verdadeira ‘questão prejudicial’ à dirimição da questão de constitucionalidade consistente na violação do n° 1 do artigo 29°- qual o sentido exacto e preciso de tal norma, acabando por esvaziar, na totalidade, a competência da ordem dos tribunais judiciais, no que concerne à interpretação do direito infraconstitucional vigente em qualquer área sujeita ao princípio da legalidade. Não se trata, neste caso, de - em situações pontuais ou excepcionais - o Tribunal Constitucional poder interpretar o direito infraconstitucional quando tal se revele indispensável à dirimição da questão de constitucionalidade suscitada: na verdade, a orientação atrás referida implicaria a afectação do
‘núcleo essencial’ de competência das restantes ordens jurisdicionais, a cujos Supremos Tribunais seria retirado o poder de fixar qual o sentido exacto de todos os preceitos legais vigentes em áreas cobertas pelo princípio da legalidade, passando tal tarefa a competir ao Tribunal Constitucional, como operação prévia indispensável para concluir pela existência ( ou não) de uma interpretação ‘criativa’ ou ampliativa, relativamente ao teor ‘exacto e correcto' dos preceitos infraconstitucionais aplicados. Como é evidente, este risco já não se verifica nos casos em que o Tribunal ‘a quo’ enunciou explicitamente - e aplicou a certo caso concreto - um critério interpretativo ‘criativo’ ou extensivo, de modo a transcender claramente o plano de uma errónea interpretação e subsunção dos factos à norma: para sindicar, na
óptica do princípio da legalidade, tal critério, já não carece obviamente o Tribunal Constitucional de proceder à prévia fixação do sentido ‘correcto’ da norma de direito infraconstitucional em causa, podendo dirigir o julgamento de inconstitucionalidade directamente ao critério interpretativo que o Tribunal ‘a quo’ tratou de autonomizar (relativamente à pura actividade subsuntiva que realizou aquando da aplicação da norma) e expressamente invocou e enunciou. Neste entendimento - que supomos estar subjacente à actual orientação maioritária da jurisprudência do Tribunal Constitucional - será possível a este Tribunal sindicar, na óptica do referido princípio da legalidade, o critério ou processo interpretativo seguido pela decisão impugnada, desde que - ela própria
- o formule e autonomize em termos de critério normativo ‘generalizante’, de modo a dispensar o Tribunal Constitucional da tarefa de previamente avaliar e
‘reconstruir' tal processo interpretativo através de uma preliminar interpretação - e definitiva fixação do sentido ‘exacto’ - de todos os preceitos de direito ordinário vigentes em domínios sujeitos ao princípio da tipicidade. Nos acórdãos atrás referenciados, em que o Tribunal Constitucional apreciou efectivamente a constitucionalidade de uma interpretação actualística e inovatória do artigo 120° do Código Penal de 1982 destinada a adequar tal norma
à nova estrutura procedimental do Código de Processo Penal de 1987- o próprio tribunal ‘a quo’ tinha explicitado e enunciado expressamente tal critério interpretativo, assumindo claramente a necessidade de proceder a uma interpretação ‘criativa’ e actualística da norma – podendo, consequentemente, sindicar-se tal critério normativo no plano da eventual violação do artigo 29°, n° 1, da Constituição, sem necessidade de previamente fixar o sentido ‘exacto’ do referido artigo 120° do Código Penal, de modo a sindicar a subsunção efectuada pelos tribunais judiciais. No caso dos autos, não se vislumbra minimamente, na decisão recorrida, qualquer apelo a um critério interpretativo geral do tipo penal em causa, configurável como ‘inovatório’ ou ‘criativo’ em relação ao sentido possível, consentido pelo elemento literal - concluindo singelamente a decisão instrutória pela existência de ‘indícios’ suficientes dos factos constantes da acusação e pela subsunção de tais factos ao tipo penal do artigo 379°, por se considerar que os factos indiciados preenchem de pleno a literalidade de tal norma ( cfr. fls. 386/387). Implica isto que - na hipótese dos autos - para apurar da alegada violação do princípio da legalidade teria este Tribunal - como operação preliminar - de começar por fixar o sentido exacto e preciso de todos os elementos integradores da ‘fattispecie’) normativa, só após tal operação lhe sendo naturalmente possível concluir pela existência ou inexistência de interpretação ‘criativa’ ou ‘extensiva’. Teria, pois, este Tribunal - para dirimir a questão de constitucionalidade colocada, na óptica do n° 1 do artigo 29° da Constituição da República Portuguesa que ‘expropriar’ a competência dos tribunais judiciais para fixarem o sentido do referido artigo 379°- passando a sindicar, não um critério interpretativo genericamente proclamado pela decisão recorrida, mas a estrita e casuística subsunção dos factos indiciados àquele tipo. E, pelas razões apontadas, consideramos que tal tarefa excede manifestamente o âmbito do controlo normativo da constitucionalidade”.
Por seu turno, por parte do recorrido não foi apresentada qualquer resposta.
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II – Fundamentação
8. A presente questão não é inédita, já que, no processo 9/2003, desta mesma 3ª secção, em tudo paralelo ao actual, o Tribunal teve de decidir sobre a matéria, não tendo tomado conhecimento do objecto do recurso. Tal como aconteceu nesse caso, pelo que se contém no parecer exarado pelo ora relator e pelas razões então aduzidas, entende o Tribunal que não deve conhecer-se do objecto do presente recurso, mantendo-se a jurisprudência aí fixada.
Essencialmente, e como resulta do parecer do relator, a decisão em crise considerou ofensiva da Lei Fundamental determinada interpretação das normas
ínsitas nos artigos 335º e 337º do Código de Processo Penal (versão citada naquele mesmo despacho), em conjugação com o art.º 120º, n.º 1, alínea d) do Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82 (interpretação essa que teria sido tentada por alguns tribunais), já que a mesma teria sido alcançada por meio de um processo que conduziria a uma aplicação «extensiva», «analógica» ou
«actualista» que, por força do princípio da legalidade penal, ultrapassava o campo semântico dos conceitos que o legislador utilizou ao redigir aqueles preceitos.
Mas, se isto é assim, então há que concluir que é o próprio processo interpretativo que porventura teria sido levado a efeito pelas decisões dos tribunais que «tentaram» a dita interpretação que é o questionado pelo despacho ora recorrido. E, neste contexto, nenhuma diferença se depara relativamente aos casos em que este Tribunal (embora não unanimemente) tem considerado como não podendo constituir uma questão de inconstitucionalidade normativa sobre a qual possam recair os seus poderes cognitivos e que têm tradução no já citado Acórdão n.º 674/99. É que, como se reafirma, não cabe no âmbito do controlo normativo cometido ao Tribunal Constitucional a verificação da ocorrência de uma alegada interpretação, seja ela ‘criativa’ ou ‘extensiva’, de uma norma penal, em invocada colisão com os princípios da legalidade e da tipicidade.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Sem custas, por não serem elas devidas.
Lisboa, 7 de Julho de 2003- Gil Galvão Alberto Tavares da Costa Bravo Serra
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, nos termos da declaração de voto junta ao acórdão proferido no processo nº 9/03). Luís Nunes de Almeida