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Proc. nº 819/2002
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. O A., interpôs recurso da decisão do Subdelegado do Instituto do Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho de Vila Nova de Famalicão, de 8 de Agosto de 2002, que o condenou no pagamento de uma coima no valor de Euros 9310,89, pela prática de uma contra-ordenação prevista no nº 1 do artigo
10º do Decreto-Lei nº 421/83, de 2 de Dezembro. O Tribunal do Trabalho de Vila Nova de Famalicão, por sentença de 29 de Outubro de 2002, considerou o seguinte:
(...) Por outro lado, e como mais um argumento, diga-se ainda que se adere à fundamentação do arguido para concluir pela inconstitucionalidade do despacho de
27/10/1992, que vem alterar – aditando novos elementos a constar do registo – a previsão do art. 10° do D.L. n° 421/83. Realmente, como já supra se assinalou, é matéria de reserva relativa da Assembleia da República legislar sobre a consagração de novos delitos contraordenacionais. Mais, estabelece o artº 112° da Constituição da República que são actos legislativos as leis e os decretos leis (para além dos decretos legislativos regionais) não podendo nenhuma outra lei criar actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza poder de com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos. Admitir que o mencionado despacho pudesse aditar novos requisitos a constar dos registos de trabalho suplementar, seria, salvo melhor entendimento, permitir que através daquele despacho, fosse modificado o artº 10° do D.L. n° 421/83, o que estaria em violação, portanto, dos citados preceitos constitucionais.
(...) Em consequência, o recurso foi julgado procedente, tendo o arguido sido absolvido da prática da contra-ordenação.
2. O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade obrigatório da sentença absolutória, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma do artigo 10º do Decreto-Lei nº 421/83, de 2 de Dezembro. Junto do Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
1° - A reserva de competência legislativa da Assembleia da República, em sede de ilícito de mera ordenação social, apenas abarca a definição do respectivo
“regime geral”, nada obstando a que diplomas não credenciados pelo Parlamento possam tipificar novas contra-ordenações
2° - Não viola qualquer preceito ou princípio constitucional a circunstância de uma norma legal “delegar” num regulamento administrativo a regulamentação de aspectos secundários ou adjectivos da disciplina de certa matéria (no caso, os elementos que, de um ponto de vista formal, devem constar do registo do trabalho suplementar).
3° - Termos em que deverá proceder o presente recurso.
Por seu turno, o recorrido contra-alegou, concluindo o seguinte:
Desta forma, Ao remeter o preenchimento dos pressupostos da aplicação da sanção em causa para um Despacho Ministerial, o artigo 10°, n.º 2, do Decreto Lei n.º 421/83, de 2 de Dezembro, tenta, preocupantemente, desfazer um obstáculo ao arbítrio da aplicação do Direito, que corre o risco de arrastar, juntamente com a crise do Princípio da Legalidade, a crise do Estado de Direito.
Cumpre apreciar e decidir.
II Fundamentação
3. Os nºs 1, 2 e 3 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 421/83, de 2 de Dezembro, tem a seguinte redacção:
Artigo 10º
(Registo)
1 - As entidades empregadoras devem possuir um livro onde, com o visto de cada trabalhador, serão registadas as horas de trabalho suplementar, imediatamente após a sua prestação.
2 - Do registo previsto no número anterior constará sempre indicação expressa do fundamento da prestação de trabalho suplementar, além de outros elementos fixados em despacho do Ministro do Trabalho e Segurança Social.
3 - No mesmo registo deverão ser anotados os períodos de descanso compensatório gozados pelo trabalhador.
O despacho a que se refere o nº 2, publicado no D.R., II Série, de 17 de Novembro de 1992, tem o seguinte teor:
O despacho sobre o registo de horas de trabalho suplementar, previsto no nº 2 do art. 10.º do Dec.-Lei 421/83, de 2-12, encontra-se actualmente publicado no BTE,
1.ª, 6, de 15-2-84, e no DR, 2.ª, 91, de 17-4-84. As alterações introduzidas pelo Dec.-Lei 398/91, de 16-10, nomeadamente em matéria de registo de trabalho suplementar, por via da nova redacção dada ao referido art. 10.º tornaram o despacho referido desconforme às actuais normas legais. Entre aquelas alterações importa salientar a que suprime a obrigatoriedade de o registo de trabalho suplementar ser efectuado em livro, a que possibilita o registo por meios computorizados, a que obriga ao registo das horas de início e termo da prestação de trabalho, bem como ao visto do trabalhador imediatamente após esta prestação, e ainda a que permite, em certos casos, a substituição do descanso compensatório por trabalho remunerado com um acréscimo não inferior a
100%. Nestes termos, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 10º do Dec.-Lei 421/83, de
2-12, determino o seguinte:
1 - O registo de trabalho suplementar, previsto no art. 10.º do Dec.-Lei 421/83, de 2-12, na redacção dada pelo art. 2.º do Dec.-Lei 398/91, de 16-10, deve conter os elementos e ser efectuado em obediência ao modelo fixado no mapa anexo, que faz parte integrante do presente despacho.
2 - O registo referido no número anterior pode ser efectuado em livro ou outro suporte documental adequado, designadamente em impressos adaptados a sistemas de relógio de ponto, mecanográficos ou computorizados.
3 - Os suportes documentais de registo de trabalho suplementar devem encontrar-se permanentemente actualizados, sem emendas ou rasuras não ressalvadas, e ser conservados em arquivo pelo prazo mínimo de cinco anos.
4 - É revogado o despacho publicado no BTE, 1.ª, 6, de 15-2-84, e no DR, 2.ª,
91, de 17-4-84.
A violação do disposto no nº 2 do artigo 10º, constitui contra-ordenação nos termos do artigo 11º do Decreto-Lei nº 421/83, de 2 de Dezembro. O tribunal a quo considerou, na decisão recorrida, que o nº 2 do referido artigo
10º, ao remeter para o despacho ministerial a enunciação dos elementos que devem constar do registo de trabalho suplementar a elaborar pela entidade patronal, é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 165º, alínea c), da Constituição (entendimento secundado pelo recorrido). De acordo com o preceito constitucional invocado, constitui matéria de reserva relativa da Assembleia da República legislar sobre o regime geral do ilícito de mera ordenação social. O regime geral do ilícito de mera ordenação social consta do Decreto-Lei nº
433/82, de 27 de Outubro, e abrange questões gerais relativas ao regime da infracção contra-ordenacional, tendencialmente aplicável a todas as contra-ordenações especialmente previstas (comparticipação, relevância da negligência, da omissão, da desistência, do erro, prescrição, entre outras matérias) e ao respectivo processo. Tais matérias, claramente integrantes do regime geral do ilícito em causa, não se confundem com a criação das infracções concretas, isto é, o regime geral da infracção não abrange, para efeito da definição da reserva parlamentar em matéria de ilícito de mera ordenação social, a tipificação das infracções contra-ordenacionais individualmente consideradas
(como já decidiu o Tribunal Constitucional, entre outros, nos Acórdãos nºs 56/84
– ATC, 3º vol., p. 153 e ss.; 158/92 – ATC, 21º vol., p. 713 e ss.; 594/97 – D.R., II Série, de 10 de Dezembro de 1997; e 249/03, de 20 de Maio – inédito).
Improcede, portanto, o presente recurso quanto a esta questão.
4. O tribunal a quo e o recorrido consideram, por outro lado, que a norma em apreciação é ainda materialmente inconstitucional, por violação do artigo 112º, nº 6, da Constituição. Nos termos do artigo 112º, nº 6, da Constituição, nenhuma lei pode conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos. A norma impugnada consagra o dever de elaborar e conservar o registo do trabalho suplementar, remetendo para despacho ministerial alguns elementos que devem constar desse registo (os demais elementos constam do preceito em questão). O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a conformidade à Constituição de normas remissivas no âmbito do ilícito de mera ordenação social. No Acórdão nº 192/98 (D.R., II Série, de 24 de Setembro de 1998), o Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 8º, nº 1, conjugado com o artigo 4º, nº 2, do Decreto-Lei nº 108/91, de 8 de Março, na medida em que remete para portaria a fixação do prazo de entrega do produto de taxas cobradas por uma empresa transportadora. O Tribunal Constitucional entendeu que a regulamentação que nesse caso se refere ao prazo para a entrega dos montantes relativos às taxas cobradas consubstancia normação secundária, encontrando-se os elementos essenciais da infracção na norma legal, não existindo, nessa medida, qualquer inconstitucionalidade material (sendo, nesse aresto, referida jurisprudência constitucional sobre a questão). Também no âmbito criminal, o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a conformidade à Constituição da norma do artigo 4º, nº 1, do Decreto-Lei nº
192/89, de 8 de Junho que remete para regulamento a enunciação dos aditivos alimentares admissíveis (cf. Acórdão nº 427/95, D.R., II Série, de 10 de Novembro de 1995). Nesse aresto, o Tribunal Constitucional concluiu pela não inconstitucionalidade da norma apreciada, uma vez que a disposição para a qual o preceito proibitivo remete apenas regula aspectos técnicos que não são constitutivos do ilícito típico. O Tribunal Constitucional pronunciou-se ainda sobre casos com algum paralelismo com o agora em julgamento (cf. Acórdãos nºs 545/2000 e 171/2002 – ATC, 48º vol., pp. 541-550 e D.R., II Série, de 1 de Junho de 2002, respectivamente). No presente caso, o despacho para a qual o preceito principal remete apenas procede à enumeração de elementos de índole puramente técnica e secundária que não são constitutivos de definição dos elementos essenciais do ilícito de mera ordenação social. Com efeito, a lei exige a elaboração de um registo de trabalho suplementar, do qual constam alguns elementos essenciais (que são referidos na norma principal). A referência a outros elementos que devem constar desse registo, materialmente conexos com a informação que a lei exige para a elaboração do registo, assume neste contexto uma natureza ostensivamente secundária ou regulamentar que não traduz qualquer violação do princípio contido no nº 6 do artigo 112º da Constituição, pois a norma regulamentar apenas concretizará tecnicamente a exigência legal de elaborar um registo relativo ao trabalho suplementar.
5. O recorrido considera, ainda, que a norma em apreciação viola o princípio da legalidade, na dimensão da exigência de lei certa e na de exigência de conexão entre os pressupostos da infracção e as respectivas sanções. Ora, como se referiu, a presente norma contém os elementos essenciais do comportamento proibido assim como as consequências jurídicas da infracção. A norma regulamentar refere apenas elementos de carácter secundário e técnico. Nessa medida, e pelas razões constantes dos arestos citados, não se verifica a invocada violação do artigo 29º da Constituição.
6. Refira-se, por último, que o Tribunal Constitucional, por Acórdão da 3ª Secção (Acórdão nº 236/03, de 14 de Maio), se pronunciou sobre questão em tudo idêntica à dos presentes autos, tendo concluído, do mesmo modo, pela não inconstitucionalidade da norma agora desaplicada.
7. Improcede, portanto, o presente recurso.
III Decisão
8. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma do artigo 10º do Decreto-Lei nº 421/83, de 2 de Dezembro, revogando, consequentemente, a decisão recorrida, que deverá ser reformulada de acordo com o presente juízo de constitucionalidade.
Lisboa, 2 de Julho de 2003 Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos