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Processo n.º 803/02
2.ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto (Cons. Benjamim Rodrigues)
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Por despacho proferido na 4ª Vara Criminal de Lisboa em 6 de Novembro de
2000, A. foi pronunciado como autor de três crimes de corrupção passiva (artigo
420º do Código Penal de 1982). O arguido recorreu deste despacho, impugnando os seus fundamentos para o tribunal superior e invocando subsidiariamente também a prescrição do procedimento criminal. Anteriormente, alegara já igualmente essa prescrição perante o juiz de instrução, o qual desatendera essa alegação.
Em 12 de Março de 2001, quatro dias depois de apresentadas as alegações de recurso, o recorrente apresentou novo requerimento dirigido ao juiz do Tribunal de 1.ª Instância, pedindo que o procedimento criminal fosse julgado prescrito com base noutros fundamentos: enquanto antes o arguido defendera que a prescrição do procedimento criminal se consumara em 18 de Outubro de 2000, nos termos do artigo 117º, n.º 1, alínea b) do Código Penal de 1982, considerando que o prazo se havia interrompido com as suas primeiras declarações perante a Polícia Judiciária (em 17 de Outubro de 1990), mas que se não verificara qualquer outra suspensão ou interrupção, sustentou agora que a prescrição ocorrera em 28 de Janeiro de 2001, com base no disposto no artigo 120º, n.º 3 do Código Penal de 1982, porquanto haviam decorrido, desde o último dos actos integrantes dos crimes imputados, 15 anos (prazo normal acrescido de metade) e não se verificou qualquer facto susceptível de suspender a prescrição.
Por despacho de 23 de Março de 2001, o juiz de 1ª Instância considerou que, fazendo “a arguida prescrição do procedimento criminal por parte do arguido A.
(...) parte do objecto do recurso por ele interposto do despacho de pronúncia”,
“a apreciação de tal questão deferiu-se, assim, ao Vº Tribunal da Relação de Lisboa – pelo que não compete ao juiz do processo, saneado este como foi no despacho impugnado, substituir-se agora ao Tribunal de recurso”. Assim, absteve-se de conhecer da invocação da prescrição do procedimento criminal.
O arguido recorreu desse despacho, tendo por virtude disso os autos baixado do Tribunal da Relação ao Tribunal de 1ª Instância, onde o recurso foi recebido por despacho de 13 de Julho de 2001, voltando a subir, de novo, ao Tribunal da Relação.
Este Tribunal apreciou e decidiu os dois recursos por acórdão de 13 de Dezembro de 2001, negando provimento tanto ao recurso do despacho da 1ª instância que havia relegado para o tribunal superior a apreciação da prescrição, como ao recurso do despacho de pronúncia. Por outro lado, conheceu também da questão da extinção do procedimento criminal (fls. 4891 e seg. dos autos) e concluiu que
“não ocorreu ainda a prescrição do procedimento criminal dos factos pelos quais o arguido vem pronunciado”.
2. Recorreu, então, o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, “na parte em que este nega provimento ao recurso do despacho proferido a fls. 4808 verso” (o referido despacho que relegou para o Tribunal da Relação o conhecimento da questão da prescrição). Nas alegações de recurso apresentadas para o Supremo Tribunal de Justiça, o recorrente sustentou, na parte que interessa ao recurso de fiscalização concreta de inconstitucionalidade, o seguinte:
“(...)
20º Até ao presente, quer o Tribunal de 1ª Instância, quer o Tribunal de 2ª Instância ao confirmar o despacho proferido por aquele, denegaram o direito de defesa do Arguido consagrado no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, uma vez que até ao momento nenhuma instância conheceu do mérito do referido requerimento, podendo o procedimento criminal encontrar-se prescrito há muito tempo, a ser procedente a fundamentação alegada pelo Arguido.
21º Com tal postura, e com todo o devido respeito, os Tribunais Portugueses não querem conhecer do mérito do referido requerimento, por motivo que não conseguimos compreender.
22º O Tribunal de 1ª Instância e o Tribunal da Relação de Lisboa ao interpretarem, ainda que tacitamente, que os artigos 139º e 140º do CPP de 1929 não admitem o conhecimento oficioso da prescrição do procedimento criminal em qualquer altura do processo, no caso daquela ter sido deduzida em dois momentos processuais distintos, com pressupostos fácticos diferentes, violam as garantias de defesa do Arguido consagradas no artigo 32º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.” E concluiu:
“(...)
7. O Tribunal de 1.ª Instância e o Tribunal da Relação de Lisboa ao interpretarem, ainda que tacitamente, que os art.os139º e 140º do CPP de 1929 não admitem o conhecimento oficioso da prescrição do procedimento criminal em qualquer altura do processo, no caso daquela ter sido deduzida em dois momentos processuais distintos, com fundamentos fácticos diferentes, sendo a primeira prescrição invocada objecto do despacho de pronúncia a decidir pelo Tribunal Superior, violam as garantias de defesa do Arguido consagradas no artigo 32º, n.º 1 da Constituição (por evidente lapso escreveu-se Código) da República Portuguesa.
8. Assim, são inconstitucionais, por violação do artigo 32º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, as normas dos artigos 139º e 140º do Código de Processo Penal de 1929, quando interpretada [sic] (com foi implicitamente pelo Tribunal de 1.ª instância e pelo Tribunal da Relação de Lisboa) da forma referida no número anterior”.
Por acórdão de 6 de Novembro de 2002, o Supremo Tribunal de Justiça considerou que as questões a decidir por si eram as seguintes:
“ a) O acórdão da Relação devia ter revogado o despacho judicial de 1ª instância que, relegando para a decisão do recurso interposto para o Tribunal da Relação o conhecimento de toda a questão relativa à prescrição do procedimento criminal, não conheceu da invocação dessa prescrição deduzida pelo arguido recorrente A. em requerimento autónomo do recurso, com fundamentos fácticos diferentes dos invocados nas alegações destes? b) Ao considerar improcedente o recurso daquele despacho, em vez de determinar a sua substituição por outro que conhecesse do mérito do pedido que o arguido deduzira no requerimento autónomo do recurso do despacho de pronúncia, o Tribunal da Relação, como já o fizera o despacho de 1ª instância, interpretou e aplicou tacitamente os arts. 139º e 140º, ambos do C.P.P. de 1929, em sentido violador da norma do art. 32º, n.º 1, da C.R.P.? Como questão de conhecimento oficioso, coloca-se a seguinte: c) Encontra-se prescrito o procedimento criminal?”.
Apreciando estas questões, o Supremo Tribunal de Justiça julgou improcedente o recurso relativo às questões enunciadas sob as alíneas a) e b), nos seguintes termos:
“Sendo de conhecimento oficioso a questão da excepção da prescrição do procedimento criminal, como resulta manifesto das invocadas disposições dos arts. 138º a 140º do C.P.P. de 1929, essa questão apresenta-se como una, devendo a decisão a tal respeito ponderar, numa perspectiva actualista que considere a situação existente na altura em que a questão é apreciada e decidida, não só os elementos fácticos e argumentos de direito porventura invocados pelo arguido ou pelo Ministério Público, mas todas as demais circunstâncias de facto e razões jurídicas pertinentes. Ora, tendo o Juiz que proferiu o despacho de pronúncia conhecido previamente das excepções, exarando que nenhuma se verificava, e estando pendente recurso do despacho de pronúncia, em cujas alegações o recorrente invocara a da prescrição do procedimento criminal, a questão dessa prescrição colocada em 1ª instância já durante a pendência do recurso – ainda que com argumento jurídico algo diferente do anteriormente invocado na motivação deste, porém não baseado em facto ocorrido ou só conhecido posteriormente ao da prolação do despacho de pronúncia, ou no mero decurso do tempo entretanto verificado – constituía uma questão relativamente à qual já se esgotara o poder jurisdicional do juiz. Só poderia por isso ser considerada no âmbito da decisão do recurso, como se entendeu nos doutos despacho e acórdãos referidos. Resulta igualmente que esse entendimento e posterior decisão do Tribunal da Relação não implicaram interpretação, mesmo que implícita, dos citados arts.
138º a 140º ofensiva da norma do art. 32º, n.º 1, da C.R.P., pois que o acórdão não deixou de apreciar actualisticamente todos os possíveis factos e fundamentos jurídicos da prescrição do procedimento criminal (incluindo os invocados pelo recorrente), não prejudicando pois as garantias de defesa do arguido, incluindo a do recurso. Improcedem assim os fundamentos do recurso invocados pelo arguido.”
Nesse acórdão de 6 de Novembro de 2002, o Supremo Tribunal de Justiça apreciou ainda, oficiosamente, a questão da prescrição do procedimento criminal, concluindo que se não verificara ainda a prescrição do procedimento criminal, por não ter ainda decorrido o prazo máximo de prescrição invocado pelo arguido, o qual “só atingiria o seu termo em 16/4/04”, pois começara a correr novo prazo prescricional em 4 de Maio de 1991 e este fora interrompido e suspenso pela notificação do despacho de pronúncia, devendo o tempo de três anos desta suspensão ser ressalvado no cômputo do prazo máximo de prescrição.
3. Inconformado com esta decisão, o arguido veio dela recorrer para este Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo a apreciação da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 139º e 140º do Código de Processo Penal de 1929.
No Tribunal Constitucional, foi proferido despacho, nos termos do artigo 75º-A, n.º 5, a convidar o recorrente a indicar a norma ou princípio constitucional que considera violado, bem como a peça processual em que suscitou a questão de constitucionalidade, vindo o recorrente dizer que considera violado o artigo
32º, n.º 1, da Constituição, e que suscitara a questão de constitucionalidade nas alegações dos recursos interpostos para o Tribunal da Relação de Lisboa e para o Supremo Tribunal de Justiça.
Notificado para alegar, o arguido concluiu do seguinte modo:
“1º A prescrição é um pressuposto negativo do procedimento criminal, sendo de conhecimento oficioso e podendo ser deduzida em qualquer altura do processo até ao trânsito em julgado, conforme consta do artigo 138º e 140º do Código de Processo Penal de 1929;
2º A decisão proferida pela 1ª instância quanto à prescrição do procedimento criminal e que fez parte do objecto do recurso do despacho de pronúncia, versou questão colocada no requerimento de abertura da instrução contraditória assente nos pressupostos fácticos que então se verificaram;
3º A prescrição suscitada pelo arguido posteriormente no requerimento de fls.
4801 a 4806, assentando em pressupostos fácticos diferentes da apreciada como questão prévia no despacho de pronúncia, não se traduz na repetição dessa mesma questão já decidida pelo Tribunal.
4º Assim, porque não se tratava da mesma questão, nenhum risco haveria do juiz da 1ª instância, ao julgá-la, contradizer o que havia decidido no despacho de pronúncia quanto à prescrição, nem estava aquela, ao contrário daquilo que é dito no despacho em que se entendeu não a apreciar, abarcada no objecto do recurso do despacho de pronúncia, e por isso, com a respectiva apreciação vedada
à 1ª instância e deferida ao Tribunal da Relação.
5º Assim, até à presente data o Arguido viu os seus direitos de defesa manifestamente violados, uma vez que o Tribunal de 1ª Instância, Tribunal da Relação de Lisboa e o Supremo Tribunal de Justiça (ainda que parcialmente) não conheceram do mérito do referido requerimento, pelo que há muito o presente procedimento criminal relativamente aos dois crimes de corrupção passiva de que o Arguido vem acusado, e em que são corruptores activos os Arguidos B. e C., poder-se-á encontrar prescrito a ser procedente a argumentação deduzida no requerimento de fls. 4801 a 4806.
6º O Tribunal de 1ª Instância e o Tribunal da Relação de Lisboa ao interpretarem, ainda que tacitamente, que os artigos 139º e 140º do CPP de 1929 não admitem o conhecimento oficioso da prescrição do procedimento criminal em qualquer altura do processo, no caso daquela ter sido deduzida em dois momentos processuais distintos, com fundamentos fácticos e argumentação jurídica diferentes, sendo a primeira prescrição invocada objecto do despacho de pronúncia a decidir pelo tribunal superior, violam as garantias de defesa do Arguido consagradas no artigo 32º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
7º Assim, são inconstitucionais, por violação do artigo 32º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, as normas dos artigos 139º e 140º do Código de Processo Penal de 1929, quando interpretadas (como foi implicitamente pelo Tribunal de 1ª Instância, Tribunal da Relação de Lisboa e pelo Supremo Tribunal de Justiça) da forma referida no número anterior.
8º Além do mais, apesar de relativamente ao crime de corrupção passiva de que o Arguido vem acusado e que tem como corruptor activo o Arguido D., o Supremo Tribunal de Justiça se tenha pronunciado sobre parte do mérito do requerimento de fls. 4801-4806, a verdade é que mesmo neste caso foi violada a mais elementar garantia de defesa do Arguido: o direito ao recurso.
9º O Supremo Tribunal de Justiça ao pronunciar-se parcialmente sobre o mérito do requerimento de fls. 4801-4806, procurando desta forma colmatar negação do conhecimento de mérito do requerimento pelas Varas Criminais e pelo Tribunal da Relação de Lisboa, decidiu como se tratasse de um tribunal de primeira instância, precludindo-se assim ao Arguido o direito de recurso constitucionalmente consagrado no artigo 32º, n.º 1 da CRP, pois o Supremo Tribunal de Justiça é a última instância comum para efeitos de recurso.
10º Deve, desta forma, a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que se conforme com o disposto no artigo 32º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, nomeadamente, que ordene o Tribunal de 1ª Instância a conhecer do mérito do requerimento interposto pelo Arguido a fls. 4801 a 4806.”.
O Ministério Público encerrou as suas contra-alegações com as seguintes proposições conclusivas:
“1 – Não tendo as normas dos artigos 139º e 140º do Código de Processo Penal de
1929 sido aplicadas na dimensão interpretativa questionada pelo recorrente, não está preenchido um dos pressupostos processuais do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o que obsta ao conhecimento do objecto do recurso.
2 – Não tendo o recorrente indicado a norma cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada por hipotética violação do n.º 1 do artigo 32º da Constituição, por o Supremo Tribunal de Justiça alegadamente ter decidido como se tratasse de um Tribunal de 1.ª instância, igualmente falta um pressuposto processual que impede o conhecimento do recurso.”
Notificado sobre as questões prévias suscitadas nas contra-alegações do Ministério Público, o recorrente veio responder-lhes, dizendo entre o mais:
“(...)
4.º Com todo o devido respeito, o Ministério Público, ao referir que o tribunal a quo não interpretou inconstitucionalmente, quer de forma explícita, quer de forma implícita, as referidas normas, está a entrar no conhecimento do objecto do recurso, não sendo uma questão prévia, mas sim a sua posição quanto ao mérito do mesmo, com a qual discordamos pelas razões aduzidas no recurso.
5.º Relativamente à segunda conclusão apresentada pelo Ministério Público, a verdade é que por lapso o arguido não referiu as normas violadas pelo Supremo Tribunal de Justiça, pelo que desde já se requer o aperfeiçoamento da 9ª conclusão das alegações por si apresentadas, nos termos do artigo 78.º-B, n.º 1 da Lei do Tribunal Constitucional, devendo ter a seguinte redacção:
‘9.ª O Supremo Tribunal de Justiça ao pronunciar-se parcialmente sobre o mérito do requerimento de fls. 4801-4806, procurando dessa forma colmatar negação do conhecimento de mérito do requerimento pelas Varas Criminais e pelo Tribunal da Relação de Lisboa, decidiu como se tratasse de um tribunal de primeira instância, precludindo-se assim ao arguido o direito de recurso constitucionalmente consagrado no artigo 32.º, n.º 1 da CRP, pois o Supremo Tribunal de Justiça é a última instância comum para os efeitos de recurso, tendo interpretado inconstitucionalmente os artigos 645.º e 647º, n.º 7 do CPP de
1929’”.
Notificado sobre este requerimento do recorrente, o Ministério Público veio responder-lhe nos seguintes termos:
“1 – A Lei do Tribunal Constitucional estabelece regras procedimentais e prazos para o estabelecimento de peças processuais.
2 – O recorrente reconhece não ter indicado um dos requisitos estabelecidos para a interposição do recurso, conforme é estipulado no art.º 75º-A, n.º 2 da Lei do Tribunal Constitucional.
3 – Porém, pretende agora vir fazê-lo, o que ocorre manifestamente fora do prazo.
4 – Termos em que deverá ser indeferido o requerido”.
Corridos os vistos, e após mudança de relator, por vencimento quanto ao conhecimento do recurso, cabe apreciar e decidir.
II. Fundamentos A) Questões prévias
4. No ponto 5 da resposta às questões prévias suscitadas pelo Ministério Público, o recorrente veio requerer um “aperfeiçoamento” das alegações de recurso, em que na verdade indica pela primeira vez a apreciação da constitucionalidade dos “artigos 645.º e 647º, n.º 7 do CPP de 1929” como objecto do recurso.
Ora, é claro que, como salienta o Ministério Público, se não pode tomar conhecimento da constitucionalidade destas normas, incluídas num alargamento do objecto de recurso a coberto de um pretenso aperfeiçoamento da 9.ª conclusão das alegações. Na verdade, essas normas não constavam nem do requerimento de interposição de recurso, nem das alegações, não tendo sido neles incluídas pelo recorrente. E é sabido que o objecto do recurso fica, desde logo, delimitado por aquele requerimento, conforme resulta do disposto nos n.ºs 1 e 2 do art.º 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional (cf., entre muitos, os Acórdãos deste Tribunal n.os 641/99, 205/02 e 215/02, inéditos).
De resto, pode notar-se, ainda, que a conclusão 9.ª (“aperfeiçoada”) não corresponde a qualquer síntese do que haja sido, anteriormente, exposto no discurso alegatório sobre a matéria a que a mesma se refere. O recorrente nada discreteou sobre tais preceitos na parte expositiva das alegações. Sendo assim, também nem sequer é caso de aperfeiçoamento das conclusões, mesmo que se admitisse, sem discussão, a possibilidade legal de o fazer espontaneamente.
Estamos, pois, perante uma ampliação, não permitida por lei, do objecto do recurso de fiscalização concreta de inconstitucionalidade, pelo que não se conhece da questão a que se refere.
5. Como decorre das alegações feitas para este Tribunal Constitucional e das respectivas conclusões 6.ª e 7.ª que sintetizam a respectiva matéria, acima transcritas, o recorrente questiona a inconstitucionalidade das normas dos artigos 139.º e 140.º do Código de Processo Penal de 1929 na interpretação que, ainda que implicitamente, diz ter sido feita pelo tribunal recorrido, segundo a qual tais normas não admitem o conhecimento oficioso da prescrição do procedimento criminal em qualquer altura do processo, no caso de aquela ter sido deduzida em dois momentos processuais distintos, com fundamentos fácticos e argumentação jurídica diferentes, sendo a primeira prescrição invocada objecto de pronúncia a decidir pelo tribunal superior, por violação das garantias de defesa do arguido consagradas no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa. Como se vê pelas conclusões das alegações feitas pelo recorrente para o Supremo Tribunal de Justiça (n.os 7 e 8), e que acima se deixaram transcritas na parte final do n.º 3, já foi essa a dimensão interpretativa de tais normas que foi colocada pelo recorrente perante aquele Supremo Tribunal.
Discreteando sobre esta questão, a decisão recorrida concluiu, como se viu, que
“a questão dessa prescrição colocada em 1ª instância já durante a pendência do recurso – ainda que com argumento jurídico algo diferente do anteriormente invocado na motivação deste, porém não baseado em facto ocorrido ou só conhecido posteriormente ao da prolação do despacho de pronúncia, ou no mero decurso do tempo entretanto verificado – constituía uma questão relativamente à qual já se esgotara o poder jurisdicional do Juiz”.
Dos termos acabados de transcrever resulta ter o Supremo Tribunal de Justiça considerado que, tendo o juiz exarado, no despacho de pronúncia, que nenhuma excepção se verificava e que, tendo sido invocada nas alegações desse despacho no recurso interposto para o tribunal superior a questão da prescrição do procedimento criminal, se havia esgotado o poder jurisdicional do juiz relativamente à mesma questão da prescrição, entretanto suscitada na pendência do recurso com base em outros fundamentos, pelo que só poderia ser considerada no âmbito da decisão do recurso interposto. Em coerência com tal doutrina passou, depois, a decisão recorrida a conhecer da questão da prescrição segundo os diversos fundamentos. Ora, cumpre reconhecer que a dimensão normativa impugnada pelo recorrente não faz expressa referência ao esgotamento do poder jurisdicional do tribunal recorrido, como obstáculo ao conhecimento em qualquer momento da questão da prescrição do procedimento criminal. Pode, porém, admitir-se que a interpretação, impugnada pelo recorrente, dos artigos 139º e 140º do Código de Processo Penal de 1929, no sentido de que tais normas não admitem o conhecimento oficioso da prescrição do procedimento criminal em qualquer altura do processo, no caso em que – isto é, quando – aquela foi deduzida em dois momentos processuais distintos, com fundamentos fácticos e argumentação jurídica diferentes, sendo a primeira prescrição invocada objecto de pronúncia a decidir pelo tribunal superior (itálicos aditados), inclui ainda o esgotamento do poder jurisdicional como causa que impede o conhecimento da prescrição. Pode admitir-se ser esse o sentido da referência à suscitação da questão em dois momentos distintos sendo a “primeira prescrição invocada objecto da pronúncia a decidir pelo tribunal superior”.
E, admitindo-se que a norma impugnada, por também incluir o esgotamento do poder jurisdicional como causa que impede o conhecimento da prescrição, corresponde ainda à aplicada, como ratio decidendi, pelo tribunal recorrido, conclui-se que não procede a questão prévia suscitada pelo Ministério Público na primeira conclusão das suas alegações. Pelo que se passa a tomar conhecimento do recurso quanto à referida dimensão interpretativa dos artigos 139º e 140º do Código de Processo Penal de 1929.
B) Questão de constitucionalidade
6. O objecto do presente recurso é, como resulta do que se disse, a apreciação da constitucionalidade dos artigos 139º e 140º do Código de Processo Penal de
1929, interpretados no sentido aplicado pelo Supremo Tribunal de Justiça – isto
é (e numa formulação que torna mais clara a referida coincidência entre a norma aplicada e a impugnada, no sentido de não admitir, por esgotamento do poder jurisdicional, o conhecimento oficioso da prescrição do procedimento criminal em qualquer altura do processo, pelo tribunal recorrido, quando a prescrição foi invocada, com fundamento diferente, num momento processual em que já está pendente recurso para o tribunal superior, no qual é igualmente invocada a prescrição.
Segundo o recorrente, tal interpretação viola o artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República, por lhe cercear garantias de defesa. Mesmo admitindo que tal alcance deste parâmetro é correcto, e a admissão do conhecimento oficioso, a todo o tempo, da questão da prescrição, tem ainda que ver com as garantias de defesa do arguido, logo se vê, porém, que tal possibilidade de conhecimento oficioso, a todo o tempo, não tem de implicar, para assegurar tais garantias de defesa, a subversão de regras processuais e de competência como as que se prendem com o esgotamento do poder jurisdicional quando já foi proferida decisão que se encontra pendente de recurso, incidindo ambos sobre a questão da prescrição.
Como se salienta na decisão recorrida, apesar dos diversos fundamentos invocados para a prescrição, tal questão é unitária, e a decisão sobre ela deve sempre adoptar uma perspectiva actualista, tendo em conta todos os elementos existentes e fundamentos invocados na altura em que a questão é decidida. Se surge nova invocação da prescrição, num momento em que está já pendente recurso (do despacho de pronúncia) no qual se invoca igualmente a prescrição do procedimento criminal, a circunstância de relativamente a tal questão já se ter esgotado o poder jurisdicional do juiz, e de essa questão só poder “por isso ser considerada no âmbito da decisão do recurso”, não viola as garantias de defesa do arguido justamente porque tal questão pode, e deve, ser considerada e decidida – como veio a ser – pelo tribunal ad quem (no presente caso, aliás, foi-o também pelo Supremo Tribunal de Justiça, que sobre ela se pronunciou oficiosamente).
Com efeito, nada no reconhecimento das garantias de defesa do arguido impõe que tenha de ser logo o juiz de 1ª instância a pronunciar-se sobre a questão da prescrição, se está já pendente recurso e este tem também por objecto a prescrição. Tendo o despacho de pronúncia conhecido previamente das excepções
(incluindo a prescrição), exarando que nenhuma se verificava, a circunstância de, em aplicação das regras processuais gerais, o poder jurisdicional do tribunal de 1ª instância se considerar esgotado não impede – antes de certa forma pressupõe, quanto ao objecto do recurso – que o tribunal ad quem se venha a pronunciar, como veio a fazer no presente caso, sobre a questão da prescrição, invocada no recurso. E, como se pode ler na decisão recorrida, “o acórdão não deixou de apreciar actualisticamente todos os possíveis factos e fundamentos jurídicos da prescrição do procedimento criminal (incluindo os invocados pelo recorrente), não prejudicando pois as garantias de defesa do arguido, incluindo a do recurso”.
O entendimento normativo em questão, adoptado no despacho de 1ª instância e nos acórdãos do Tribunal da Relação e do Supremo Tribunal de Justiça, não implicou, assim, ofensa à norma do artigo 32º, n.º 1, da Constituição.
III. Decisão Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso. Custas pelo recorrente, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 30 de Setembro de 2003 Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues (vencido de acordo com a declaração anexa) Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de Voto Votei vencido quanto à questão prévia do conhecimento do recurso, no essencial, pelas razões constantes do projecto de acórdão que apresentei como primitivo relator e que aqui se reproduzem.
« Como decorre das alegações feitas para este Tribunal Constitucional e das respectivas conclusões 6.ª e 7.ª que sintetizam a respectiva matéria, acima transcritas, o recorrente questiona a inconstitucionalidade das normas dos art.os 139.º e 140.º do Código de Processo Penal de 1929 na interpretação, ainda que tácita e implícita, que diz ter sido feita pelo STJ, segundo a qual tais normas não admitem o conhecimento oficioso da prescrição do procedimento criminal em qualquer altura do processo, no caso daquela ter sido deduzida em dois momentos processuais distintos, com fundamentos fácticos e argumentação jurídica diferentes, sendo a primeira prescrição invocada objecto de pronúncia a decidir pelo tribunal superior, por violação das garantias de defesa do arguido consagradas no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
Como se vê pelas conclusões das alegações feitas pelo recorrente para o STJ (n.os 7 e 8), e que acima se deixaram transcritas na parte final do n.º 3, já foi essa a dimensão interpretativa de tais normas que foi colocada pelo recorrente àquele Alto Tribunal.
Pois bem, discreteando sobre ela, o Acórdão recorrido disse o seguinte:
«Abordemos as questões colocadas pelo recorrente, sintetizadas sob as alíneas a) e b). Sendo de conhecimento oficioso a questão da excepção da prescrição do procedimento criminal, como resulta manifesto das invocadas disposições dos arts. 138º a 140º do C.P.P. de 1929 ( Código este aplicável por força do disposto no art. 7º do DL n.º 87/77, de 17/12, e da Lei n.º 17/87, de 01/06, uma vez que o processo foi instaurado antes da entrada em vigor do C.P.P. de 1987), essa questão apresenta-se como una, devendo a decisão a tal respeito ponderar, numa perspectiva actualista que considere a situação existente na altura em que a questão é apreciada e decidida, não só os elementos fácticos e argumentos de direito porventura invocados pelos arguidos ou pelo Ministério Público, mas todas as demais circunstâncias de facto e razões jurídicas pertinentes. Ora, tendo o Juiz que proferiu o despacho de pronúncia conhecido previamente das excepções, exarando que nenhuma se verificava, e estando pendente recurso do despacho de pronúncia, em cujas alegações o recorrente invocara a da prescrição do procedimento criminal (como já fizera na instrução, tendo o respectivo Juiz decidido que a prescrição não se verificava), a questão dessa prescrição colocada em 1ª instância já durante a pendência do recurso – ainda que com argumento jurídico algo diferente do anteriormente invocado na motivação deste, porém não baseado em facto ocorrido ou só conhecido posteriormente ao da prolação do despacho de pronúncia, ou no mero decurso do tempo entretanto verificado – constituía uma questão relativamente à qual já se esgotara o poder jurisdicional do Juiz. Só poderia por isso ser considerada no âmbito da decisão do recurso, como se entendeu nos doutos despacho e acórdão referidos. Resulta igualmente que esse entendimento e posterior decisão do Tribunal da Relação não implicaram interpretação mesmo que implícita, dos citados arts. 138º a 140º ofensiva da norma do art. 32º, nº 1, da C.R.P., pois que o acórdão não deixou de apreciar actualisticamente todos os possíveis factos e fundamentos jurídicos da prescrição do procedimento criminal (incluindo os invocados pelo recorrente), não prejudicando pois as garantias de defesa do arguido, incluindo a do recurso. Improcedem assim os fundamentos do recurso invocados pelo arguido.».
Dos termos acabados de transcrever resulta claro que as normas cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada não foram aplicadas com o sentido invocado pelo recorrente, quer de forma explícita, quer de forma implícita. Na verdade, e brevitatis causa, o Acórdão recorrido interpretou e aplicou essas normas no sentido da questão de prescrição do procedimento criminal ser de conhecimento oficioso e de, no momento em que é conhecida, o juiz dever tomar em conta todos os elementos de facto e de direito então existentes, porventura invocados pelo Ministério Público ou pelos arguidos e ainda os demais considerados pertinentes.
Por outro lado, o STJ considerou ainda, dentro dessa perspectiva, que, tendo o juiz exarado, no despacho de pronúncia, que nenhuma excepção se verificava e que, tendo sido invocada nas alegações desse despacho interposto para o tribunal superior a questão da prescrição do procedimento criminal, se havia esgotado o poder jurisdicional do juiz relativamente à mesma questão da prescrição, entretanto suscitada na pendência do recurso com base em outros fundamentos, pelo que só poderia ser considerada no âmbito da decisão do recurso interposto. Em coerência com tal doutrina passou, depois, o Acórdão do STJ a conhecer da questão da prescrição segundo os diversos fundamentos.
Temos, pois, de concluir que não se verifica, com bem defendeu o Ministério Público, o pressuposto do recurso traduzido na efectiva aplicação da norma ou seja, na aplicação da dimensão interpretativa da norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver sindicada enquanto ratio decidendi da decisão, como se exige nos recursos de fiscalização concreta de inconstitucionalidade interpostos ao abrigo da al. b) do n.º 1 do art.º 70.º da LTC (cf., entre muitos, os Acórdãos deste Tribunal n.os 674/99, 155/00, 157/00 e 232/00, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de
25/02/2000, 9/10/2000, 9/10/2000 e 15/7/2002).
Não se diga, como argumenta o recorrente no requerimento a que se aludiu no n.º 7, que a determinação do sentido com que a norma foi aplicada na decisão recorrida diz respeito ao conhecimento do mérito do recurso, pelo que se imporia conhecer dele. A aferição do sentido da decisão recorrida é, antes de mais, uma tarefa instrumental que tem em vista apurar se ela satisfaz o requisito do recurso traduzido na efectiva aplicação das normas arguidas de inconstitucionais, pressuposto esse que é demandado pela natureza da própria função jurisdicional constitucional, dado que não lhe cabe conhecer de questões de inconstitucionalidade meramente hipotéticas ou académicas (cf., entre muitos, os Acórdãos deste Tribunal n.os 653/99, 834/99 e 126/00, todos inéditos)».
Como se vê do texto do acórdão, este, para ultrapassar a pertinência do mérito da questão prévia, teve de interpretar o acórdão do STJ precisamente num sentido que este afastou como ratio decidendi, invocando pressupostos de decisão que nem sequer “estariam” implícitos naquele acórdão numa sua leitura objectivista mas apenas segundo a óptica externada pelo recorrente (“[...] na interpretação, que, ainda que implicitamente, diz ter sido feita pelo tribunal recorrido”). Continua a não ver-se que elementos do discurso e do juízo do Supremo é que postulam a interpretação aferida como sendo a que deva ter-se por correspondente ao único e necessário sentido possível do decidido e que haja de ver-se racionalmente pressuposto na decisão expressa. A este respeito, o discurso do acórdão encontra-se construído sobre uma suposição de interpretação como tendo sido impugnada pelo recorrente, como decorre do seu texto ao afirmar-se “pode, porém, admitir-se que a interpretação....”. Aliás, a incongruência da posição que fez vencimento, colhida nos terrenos movediços da determinação dos juízos implícitos, é por demais evidenciada pela inexistência de qualquer sobreposição problemática entre o que, no domínio da constitucionalidade, o acórdão conheceu e o que foi apreciado e decidido pelo Supremo, própria dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade fundados nos n.º 1, al. b) e 2 do art.º 70º da LTC.
Benjamim Rodrigues