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Processo nº 657/02
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - A., identificado nos autos, foi condenado, por acórdão de
21 de Fevereiro de 2000 do Tribunal Colectivo da comarca de
---------------------, como co-autor material, em concurso efectivo de dois crimes de burla qualificada, previstos e punidos pelos artigos 313, nº 1, e
314º, alínea c), do texto de 1982 do Código Penal (artigos 217º, nº 1 e 218º, nº
1, do revisto em 1995), na pena de 18 meses de prisão por cada um, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 2 anos de prisão, ficando suspensa a execução da pena pelo espaço de 3 anos.
O acórdão de 5 de Fevereiro de 2002 do Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso.
Inconformado, recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, equacionando, além do mais, uma questão de constitucionalidade que, na respectiva motivação, condensou assim na conclusão 5ª:
“O artigo 313º do Código Penal de 1982, e aquele que lhe sucedeu no Código em vigor, quando interpretados e aplicados em termos de se considerar que o requisito típico da astúcia com factos como os narrados em 2 da matéria de facto provada e o tirar-se partido da qualidade de Presidente da Câmara (página 41 do aresto em curso), meramente atinentes a factos objectivos e não à caracterização da realização mental e da violação do agente, é materialmente inconstitucional, por violação do artigo 29º, nº 1 da CRP, pois que implica ampliar a incriminação para além do permitido pelos limites inerentes ao princípio da legalidade.”
2. - O Supremo Tribunal de Justiça rejeitou na totalidade o recurso, pronunciando-se do seguinte modo quanto à matéria de constitucionalidade (cfr. fls. 2772 e segs.).
“[...] a inconstitucionalidade que vem invocada acaba por se remeter à factualidade, ao considerar-se que os factos provados não são bastantes para caracterizar o crime de burla, no que concerne aos elementos típicos
“enriquecidamente ilegítimo”, “astúcia” e “prejuízo da vítima”, na medida em que não demonstram a «realização mental»e a «volição do agente», tendo por isso conduzido à ampliação da incriminação para além dos limites consentidos pelo princípio da legalidade. Ora, assim sendo – pelo menos é lícito interpretar desse modo a conclusão extraída pelo recorrente – então cairíamos de novo na área da matéria de facto que, como se viu, não cabe no âmbito dos poderes de cognição deste Supremo Tribunal de Justiça. De resto, e salvo o devido respeito, não se afigura que o recorrente tenha indicado concretamente onde reside a inconstitucionalidade do artº 313º do CP/82 ou do seu sucessor, (artº 217º, nº 1 do CP/95), para se avaliar do respectivo merecimento, sem esquecer que o Tribunal da Relação já abordou antes a questão e concluiu, ao que cremos bem, pela não inconstitucionalidade de qualquer daqueles preceitos. Donde que, relativamente a tal questão, seja de rejeitar igualmente o recurso interposto.”
3. - De novo inconformado, recorreu o arguido do assim decidido para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Pretende ver apreciada a constitucionalidade da norma
“do artigo 313º do Código Penal de 1982 e aquele preceito que lhe sucedeu no Código Penal em vigor, quando interpretados e aplicados em termos de se considerar que o requisito típico do enriquecimento ilegítimo se considera integrado com factos [...] meramente atinentes e factos objectivos que não concorram para a caracterização de realização mental e de volição do agente e, desta forma, para o dolo específico que a norma incriminadora exija para a sua perfeição típica”.
Este sentido interpretativo viola, segundo o recorrente, o artigo 29º, nº 1, da Constituição, “pois que se trata de norma que, assim interpretada e aplicada, estende os limites materiais da sua incidência para além daquilo que é consentido pelo princípio constitucional da tipicidade”.
4. - Foi o recorrente notificado, nos termos e para os efeitos dos nºs. 1, 2, 6 e 7 da Lei nº 28/82, para:
“a) identificar explicitamente os preceitos requisitos legais das versões do Código Penal – texto de 1982 e actual – que acolhem a norma cuja constitucionalidade pretende ver apreciada; b) enunciar univocamente a questão de constitucionalidade, tendo presente, nomeadamente, a fórmula constante do requerimento de interposição do recurso e a utilizada na conclusão 5ª da motivação apresentada no Supremo Tribunal de Justiça.”
Ao que respondeu:
“1. Normas cuja constitucionalidade o recorrente pretende ver apreciadas: o artigo 313º, nº 1 do Código Penal de 1982 e ainda o artigo 217º, nº 1 do Código Penal de 1995, que lhe sucedeu.
2. Questão de constitucionalidade (questão 5ª da motivação de recurso para o STJ): os referidos preceitos são inconstitucionais quando interpretados e aplicados em termos de se considerar que os requisitos típicos da «astúcia» e do
«enriquecimento ilegítimo» se preenche com a mera prática de actos objectivos – como os narrados em 2. da matéria dada como provada nisso incluindo o tirar partido da qualidade de Presidente da Câmara (página 41 do aresto de primeira instância) – e sem a necessária verificação da realização mental pelo agente e a sua volição dos factos típicos.
3. Norma constitucional violada: o artigo 29º, nº 1 da CRP, pois que, assim interpretados e aplicados, os referidos preceitos legais ampliam os limites objectivos da incriminação por burla para além dos limites consentidos pelo princípio da tipicidade.”
5. - Notificado para alegações, reagiu oportunamente o recorrente, afirmando, a concluir:
“1ª Os preceitos legais incriminadores da burla – artigo 313º , nº 1 do Código Penal de 1982 e artigo 217º, nº 1 do Código Penal que lhe sucedeu – são materialmente inconstitucionais quando a sua dimensão normativa concreta – resultante da sua interpretação e aplicação concretas – implicar a dispensa (i) do dolo específico de enriquecimento ilegítimo, a acrescer ao dolo genérico exigível (ii) e do requisito das astúcia, como sucedeu no caso, pois que a matéria de facto dada como provada (ponto 2 e página 41 do aresto da primeira instância) não permite a integração daqueles requisitos típicos essenciais.
2ª A dimensão normativa de tais preceitos significa a sua aplicação para além dos limites consentidos pelo artigo 29º, nº 1 da CRP que assim foi violado.”
O magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal contra-alegou em termos que assim sintetizou:
“1º. Não constitui questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para suportar um recurso de fiscalização concreta, a pretensa interpretação
“extensiva” de um conceito usado na definição de um certo tipo penal, cometendo ao Tribunal Constitucional a verificação do concreto e casuístico “processo interpretativo” seguido pela ordem dos tribunais judiciais, de modo a confrontá-lo com a norma constante do nº 1 do artigo 29º da Constituição da república Portuguesa.
2º. Termos em que não deverá conhecer-se do recurso interposto.”
Respondeu ainda o recorrente, no sentido da improcedência da questão de prejudicialidade.
Cumpre apreciar e decidir.
II
1. - Na sua redacção primitiva, aprovada pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro, o nº 1 do artigo 313º do Código Penal dispunha que “[q]uem, com a intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo através de erro ou engano sobre factos, que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízos patrimoniais, será punido com prisão até 3 anos”.
Este texto, com as alterações ao Código introduzidas pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, que o reviu, passou a constar do nº 1 do artigo 217º, com alterações menores e uma outra medida da pena: “[q]uem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial
é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
2. - O recorrente aludiu à problemática de constitucionalidade subjacente nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça nos termos já transcritos , pretendendo, manifestamente, discutir a subsunção dos factos provados aos elementos típicos da norma incriminadora, como, de resto, o próprio aresto recorrido dá a entender, ao consignar que a questão suscitada
“acaba por se remeter à factualidade”, segundo se pode ler da passagem anteriormente transcrita.
Ora, a discussão dos fundamentos da divisão no sentido de apurar se a matéria de facto provada permite ou não concluir pela
(in)verificação dos elementos típicos da norma incriminadora, situa a questão no
âmbito da apreciação dos factos provados e da respectiva subsunção jurídica, o que não cabe no poder cogniscitivo do Tribunal Constitucional.
Acresce que a análise do processo interpretativo, alegadamente seguido pela decisão recorrida na fixação do sentido dos conceitos utilizados pelo legislador no tipo penal integrador da norma incriminadora – e não o resultado interpretativo – não constitui uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, idónea para sujeitar o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.
Neste sentido pode ler-se a jurisprudência reiterada do Tribunal Constitucional: v.g., os Acórdãos nºs. 674/99, 190/01 e 483/02, publicados no Diário da República, II Série, de 15 de Fevereiro de 1999, 3 de Maio de 2001 e 20 de Novembro de 2002, respectivamente.
Não se toma, por conseguinte, conhecimento do objecto do recurso.
III
Em face do exposto, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 8 unidades de conta.
Lisboa, 24 de Setembro de 2003
Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (pelo primeiro dos fundamentos indicados no acórdão) Luís Nunes de Almeida