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Processo n.º 265/03
2ª secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam em conferência no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Por acórdão de 14 de Novembro de 2002, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu, em conferência, não admitir o recurso pretendido interpor por A. do despacho do juiz de instrução que não admitiu a aclaração do despacho de não admissão da abertura de instrução. A rejeição do recurso por tal acórdão fundou-se, não só no facto de o recorrente não ter efectuado o pagamento das taxas de justiça, como na falta de legitimidade do recorrente (por não ser assistente, diversamente da sociedade de que é mandatário), na irrecorribilidade do despacho em causa e na falta de conclusões do recurso. Inconformado, o reclamante veio requerer ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 379º, n.ºs 1, alínea c), e 2 do Código de Processo Penal, a arguição de nulidade daquele acórdão. Por acórdão de 16 de Janeiro de 2003, foi indeferida esta arguição, com os seguintes fundamentos:
“Assim, o que o ora reclamante pretende é que se diga que não foi ele que interpôs recurso do despacho do Desembargador da Relação de Lisboa, mas sim a sociedade ‘B.’. Tal discordância funda-se ainda na inconstitucionalidade da leitura das normas legais (não diz o recorrente quais são) invocadas como fundamento do acórdão ora impugnado. Ora, a reacção adequada para manifestar a referida discordância não é obviamente, a arguição de nulidades do acórdão, mas sim o recurso, se este for admissível.
(...) Além disso, a Relação, no despacho que não declarou aberta a instrução, já tinha entendido ter sido o reclamante, em seu nome, que requereu a abertura de instrução, o que aquele contraria, pelo que o mesmo já devia ter suscitado a questão de inconstitucionalidade de tal entendimento, semelhante ao adoptado por este Supremo Tribunal, a fim de este poder apreciar aquela questão, que agora é intempestiva. Ainda se dirá que a total alteração do decidido, ora pretendida pelo reclamante, está vedada pelo disposto no art.º 666º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil, aqui aplicável ‘ex vi’ do art. 4º do C.P.P., ou seja, com a prolação do acórdão em causa ficou imediatamente esgotado o poder jurisdicional deste Supremo Tribunal quanto à matéria sobre a qual decidiu. Acresce que a questão das nulidades do acórdão posta pelo reclamante prende-se apenas com dois dos motivos ali invocados para a não admissão do recurso e que têm a ver com a identificação do recorrente – a falta de pagamento das taxas de justiça referidas no art.º 80º, n.º 2 do Cód. das Custas Judiciais e a falta de legitimidade do recorrente para recorrer. Logo, ficando de fora dois outros motivos que conduziriam também à rejeição do recurso – a irrecorribilidade da decisão da Relação e a falta de conclusões da motivação do recurso – que seriam válidos também se a recorrente fosse a sociedade. Assim, ainda que procedesse a arguição de nulidades do acórdão, a verdade é que ficariam de pé aquelas duas decisões autónomas que levariam à rejeição do recurso, as quais, nesta data, já transitaram em julgado. De onde decorre a inutilidade da referida arguição.”
2.Notificado desta decisão, o reclamante pretendeu interpor recurso, “nos termos do disposto na alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei 28/82, de 15.11”, pois
“conforme consta do teor do douto acórdão de 02-11-14, o recurso foi rejeitado com fundamento no disposto no n.º1 do artigo 412º do Código de Processo Penal, e n.º 1 do artigo 420º do mesmo C.P.P., nos exactos termos constantes do mencionado acórdão cujo teor invoca e dá por reproduzido para todos os efeitos legais. O sentido em que foram publicadas as referidas normas legais é aquele que foi julgado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional através do douto acórdão com o n.º 320/02, publicado no DR n.º 231 I-A, de 07.10, que fixou a seguinte jurisprudência: ‘Pelo exposto, o Tribunal declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, da norma constante do artigo 412º, n.º
2, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas alíneas a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência.’ .” Por despacho de 7 de Fevereiro de 2003, o relator no tribunal a quo decidiu não admitir o recurso de constitucionalidade, baseado nos seguintes fundamentos:
“Ora, por um lado, é óbvio que o acórdão de 14-11-2002 não aplicou a norma do n.º 2 do art. 412º do C.P.P., mas sim a norma do n.º 1 do art. 412º do mesmo Código, levando a uma entre quatro razões de não admissão do recurso do recorrente para este Supremo Tribunal. A razão da rejeição do recurso foi a falta de conclusões da respectiva motivação e não a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 2 do citado art. 412º. Logo, como o acórdão em causa não aplicou a norma, fundamental no caso, já anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, o recurso não pode ser admitido, porque a decisão não admite, nos termos dos art.ºs 70º, n.º1, al.ª g) e 76º, n.º 2 da Lei n.º 28/82. Por outro lado, o recurso do recorrente também não foi admitido por três razões diferentes, que deram lugar a outras tantas decisões a saber: falta de pagamento das taxas de justiça referidas no art. 80º, n.º 2 do Cód. das Custas Judiciais, falta de legitimidade do recorrente para recorrer e irrecorribilidade da decisão da Relação. Ora, como o recorrente, face ao que já se disse, só veio impugnar a decisão respeitante à rejeição do recurso por falta de conclusões da motivação, que, aliás, já havia transitado em julgado, por não ter sido objecto da pretensa arguição de nulidades (como se frisou no acórdão de 16-1-2003), as restantes 3 decisões de não admissão do mesmo recurso já transitaram em julgado (aliás, a referente à irrecorribilidade da decisão da Relação, já transitara antes pela mesma razão que foi apontada atrás quanto à falta de conclusões da motivação). Por conseguinte, o eventual provimento do recurso ora interposto para o Tribunal Constitucional da decisão de rejeição do recurso por falta de conclusões da motivação não pode provocar qualquer alteração do decidido por este Supremo Tribunal a respeito dos restantes três motivos de não admissão do mesmo recurso. De resto, constitui jurisprudência constante do Tribunal Constitucional a de que o recurso para ele interposto tem natureza instrumental, ou seja, tem de ter utilidade prática. E é isso que não sucede aqui, pelo que o recurso ora interposto para o Tribunal Constitucional constitui um acto inútil, cuja prática não é permitida pelo disposto no art. 137º do Cód. Proc. Civil, não podendo, pois, o recurso ser admitido.”
3.Deste despacho vem o recorrente reclamar para o Tribunal Constitucional, afirmando que:
“1) Conforme consta dos presentes autos, foi apresentada queixa pelo advogado signatário na qualidade de mandatário da sociedade comercial de responsabilidade limitada denominada B..
2) A referida B. requereu a sua constituição como assistente no processo.
3) O advogado da B. não requereu a sua constituição como assistente neste processo.
4) O advogado signatário reclamou para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, usando exactamente a mesma expressão: ‘A. – Advogado, já devidamente identificado em epígrafe’ que usara no recurso cuja admissão fora recusada por motivo do recurso ter sido interposto pelo advogado da B., a qual foi aceite e deferida sob o n.º 2551/02 da 5ª Secção.
5) A mesma 5ª Secção do mesmo Supremo Tribunal de Justiça decide no recurso
3727/02, cuja reclamação fora deferida, que o recurso interposto através da expressão: ‘A. – Advogado, já devidamente identificado em epígrafe’ é interposto pelo advogado da B. e não pela B..
6) Do referido recurso ‘A. – Advogado, já devidamente identificado em epígrafe’ arguiu nulidades, ‘nos termos do disposto no artigo 379º, nºs 2 e 1, alínea c), do Código de Processo Penal’.
7) A decisão acerca da referida arguição de nulidades foi-lhe comunicada por registo expedido em 03-01-20.
8) Interpôs recurso para o Tribunal Constitucional em 03-02-03, conforme consta do processo, o que, tendo em conta que os dois dias anteriores são um sábado e um domingo, se encontra dentro do prazo previsto para o efeito.
9) ‘Se a decisão admitir recurso ordinário, mesmo que para uniformização de jurisprudência, a não interposição de recurso para o Tribunal Constitucional não faz precludir o direito de interpô-lo de ulterior decisão que confirme a primeira’. Salvo o devido respeito, o recurso interposto para o Tribunal Constitucional é tempestivo e cumpre todos os requisitos legais para que possa ser admitido.” Em vista do processo, o Ministério Público junto do Tribunal Constitucional pronunciou-se pela improcedência da reclamação, nos seguintes termos:
“Na verdade – e desde logo – não se verificam os pressupostos do recurso interposto, com base na alínea g) do n.º 1 do art. 70º da Lei n.º 28/82, já que a dimensão normativa questionada pelo recorrente não coincide com o precedente juízo de inconstitucionalidade formulado por este Tribunal no acórdão-fundamento invocado (o recorrente não tem obviamente a qualidade de arguido e o vício formal verificado traduz-se na falta de conclusões da motivação do seu recurso). Para além disto, sempre ocorreria manifesta inutilidade na apreciação do recurso, já que a decisão impugnada assenta em vários fundamentos alternativos – e autónomos relativamente à questão de constitucionalidade suscitada.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
4.Como resulta do relatado, a reclamação dirigida ao Tribunal Constitucional, contra o despacho de não admissão do recurso de constitucionalidade interposto em 4 de Fevereiro de 2003 no Supremo Tribunal de Justiça, trata apenas de dois pontos: o da tempestividade desse recurso, de resto não incluída entre os obstáculos ao seu conhecimento no despacho recorrido, e o da contradição entre a decisão da reclamação dirigida ao Supremo Tribunal de Justiça pela não admissão do requerimento de aclaração do despacho, proferido no Tribunal da Relação de Lisboa, a indeferir anterior pedido de abertura de instrução, e a decisão do recurso (admitido por força da decisão proferida nessa anterior reclamação). Ora, sobre esta suposta contradição não tem este Tribunal de se pronunciar, uma vez que lhe não cabe apreciar o modo como os restantes tribunais aplicam o direito, mas apenas apreciar questões de constitucionalidade normativa. E, uma vez que a falta de tempestividade do recurso também não foi apresentada como uma das causas da não admissão do recurso – excepto de uma forma translata que depois se considerará – também dele lhe não cabe cuidar. Como também não compete ao Tribunal Constitucional nesta reclamação, propriamente, reapreciar a fundamentação da decisão de não admissão do recurso – mas antes, como se escreveu no Acórdão n.º 490/98 (disponível em www. tribunalconstitucional.pt) apurar de uma “indevida preterição do direito de reapreciação (...) de uma questão de constitucionalidade”. Antes basta verificar a falta de um só dos necessários requisitos do tipo de recurso de constitucionalidade interposto, para a reclamação dever ser indeferida, por o recurso não poder ser admitido.
5.O recurso de constitucionalidade não admitido foi interposto com base na alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional , o que pressupõe que na decisão então recorrida tivesse havido aplicação de uma norma antes julgada inconstitucional. Porém, enquanto na decisão invocada (o Acórdão n.º 320/02, publicado no Diário da República, Iª Série A, de 7 de Outubro de
2002) estava em causa o n.º 2 do artigo 412º do Código de Processo Penal, na decisão recorrida estava em causa o seu n.º 1. Acresce que, ao contrário do que ocorria no acórdão-fundamento, o recorrente não tinha a qualidade de arguido nos autos. Dada a não coincidência entre o sentido normativo da norma anteriormente julgada inconstitucional e o sentido normativo da que foi aplicada nos autos, fica inviabilizada a pretensão levada ao recurso, como decidido, e, portanto, condenada ao insucesso a presente reclamação. Mas pode acrescentar-se, ainda, que, conforme refere o Ministério Público, assentando a decisão recorrida “em vários fundamentos alternativos – e autónomos relativamente à questão de constitucionalidade suscitada”, “sempre ocorreria manifesta inutilidade na apreciação do recurso”, por poderem tais fundamentos subsistir, independentemente da decisão a proferir em tal recurso de constitucionalidade: é o caso da falta de legitimidade para a interposição do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça – legitimidade que se entendeu caber apenas à sociedade representada, e não ao mandatário, ele próprio (e daí que o ora reclamante tenha esgrimido uma pretensa contradição que é indiferente aos poderes cognitivos deste Tribunal); é o caso da falta de pagamento da taxa de justiça devida pela interposição do recurso para aquele Supremo Tribunal, levando a considerar este sem efeito, nos termos do n.º 3 do artigo 80º do Código das Custas Judiciais; e é o caso da irrecorribilidade da decisão contestada (artigo 380º, n.ºs 1, alínea b) e 3 do Código de Processo Penal, e artigo 666º, n.º 3, do Código de Processo Civil), uma vez que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça ia dirigido ao despacho que indeferiu o requerimento de aclaração da decisão que não declarou aberta a instrução. E será o caso, ainda, do invocado trânsito em julgado da decisão – e a argumentação apresentada no sentido de demonstrar a tempestividade do recurso só se entende visando contrariar esse trânsito em julgado –, no que àqueles fundamentos diz respeito, questão que também não cabe a este Tribunal apreciar, tanto mais que, ainda que se não entendesse não ser de decompor a decisão recorrida em tantas quantos os seus fundamentos, uma nova decisão do tribunal recorrido, posterior a uma eventual decisão de inconstitucionalidade e em cumprimento desta, não alteraria o anteriormente decidido, se não mais, apenas por subsistirem incólumes os restantes fundamentos da decisão recorrida. Em consequência, a decisão da questão de constitucionalidade seria desprovida de efeito útil, não se conformando com o necessário carácter instrumental do recurso de constitucionalidade.
III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e confirmar o despacho reclamado de não admissão do recurso.
Custas pelo reclamante, com 15 quinze unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 15 de Julho de 2003. Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos