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Processo nº 144/03
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - O A., nos autos de expropriação por utilidade pública em que é requerente, sendo requeridos B. e mulher, C., recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11 de Dezembro de 2002, que, ao confirmar a decisão da 1ª Instância, do 3º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Felgueiras, recusou implicitamente a aplicação das normas do nº 5 do artigo 24º e do nº 1 do artigo 26º, ambos do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 438/91, de 29 de Novembro, na medida da interpretação dada ao conceito de “solos aptos para a construção”, de modo a nele incluir os solos integrados na Reserva Agrícola Nacional – RAN – expropriados para a construção de vias de comunicação.
De acordo com a entidade recorrente, o aresto recusou a aplicação da norma contida nos citados preceitos por considerar que “a RAN ou a REN não implica de per si a extinção das potencialidades edificativas dos solos, prevendo a lei as várias excepções ao regime proibitivo” por forma a excluir da classificação de “solo apto para construção” os solos integrados na RAN, expropriados para o indicado fim.
Com efeito, tendo em conta que a parcela se encontra integrada em zona de RAN e foi expropriada para nela se construir uma via de comunicação, ponderou-se não se poder retirar-lhe, desde logo, a qualificação de
“solo apto para a construção” face à “função social” da propriedade, que incide sobre esses terrenos.
Na verdade, escreveu-se, “a protecção que se quis dar a esta vicissitude circunstancial é incondicional e não poderá dar lugar a dúvidas que tolham a aplicação daquele princípio aceite na definição e caracterização do solo expropriado, tendo como certo que o direito de edificar se inscreve no ius fruendi integrado no direito de propriedade”.
Assim, assegura-se ao expropriado a garantia de que não será prejudicado por uma “mal intencionada classificação de um terreno como zona verde, caracterizando-o de inaptidão construtiva, para posteriormente, após a expropriação, se lhe pagar um indemnização tendo em conta uma realidade
“fingidamente criada”.
2. - Recebido o recurso, notificaram-se as partes para alegações, só o expropriante e recorrente o tendo feito.
Formulou este as seguintes conclusões:
“1ª. Nos terrenos incluídos em RAN ou REN a ineptidão para a edificação é anterior ao plano e resulta da ‘função social’, da ‘vinculação social’ ou da
‘vinculação situacional’ da propriedade que incide sobre aqueles terrenos.
2ª. Estando o valor venal do prédio expropriado limitado em consequência da existência de uma legítima restrição legal ao ‘jus aedificandi’ – resultante da inserção de terrenos especialmente adequados à actividade agrícola na RAN – e não tendo o proprietário qualquer expectativa razoável de os ver desafectados e destinados à construção por particulares, não pode invocar-se o princípio da
‘justa indemnização’ de modo a ver reflectido no montante indemnizatório arbitrado ao expropriado uma potencialidade edificativa dos terrenos, que se configura como legalmente inexistente.
3ª. Destinando-se a desanexação da Reserva Agrícola exclusivamente à construção de uma via de comunicação – e não à transformação de prédio até então legalmente
‘rústico’ em ‘urbano’ – a parcela de terreno expropriado não passou a deter, supervenientemente ao acto expropriativo, qualquer aptidão edificativa, sendo a especial afectação de parcela à construção de tal via pública de comunicação absolutamente incompatível com qualquer vocação edificativa do terreno expropriado.
4ª. A avaliação do solo da parcela de acordo com o art. 26º/1 do CE/91 é uma exigência do princípio da ‘justa indemnização’, constante do artº 62º/2 da CRP.
5ª. O acórdão em crise recusou a aplicação das normas contidas no nº 5 do artigo
24º e no nº 1 do artigo 26º, ambos do CE/91.
6ª. Não enfermam de inconstitucionalidade as normas contidas nesses artigos quando interpretadas no sentido de excluírem a avaliação segundo a sua potencialidade edificativa (nos termos do nº 2 do artigo 26º do mesmo Código) dos solos, integrados na RAN – e na REN, expropriados para implantação de vias e comunicação.
7ª. Não se vislumbra, no caso dos autos, qualquer actuação pré-ordenada da Administração, traduzida em ‘manipulação das regras urbanísticas’, com vista a desvalorizar artificiosamente o terreno, reservado ao uso agrícola, para mais tarde o adquirir por um valor degradado, destinando-o então à construção de edificações urbanas de interesse público o que afasta decisivamente a aplicação da jurisprudência firmada no Acórdão nº 267/97.
8ª. A douta sentença em crise, salvo melhor opinião, violou – entre outros – os artºs. 13º e 62º da CRP, bem como os artºs. 1º, 22º/2, 24º/1 e 5 e 26º/1 do CE/91.”
Cumpre apreciar e decidir.
II
1.1. - A questão a decidir consiste em saber se as normas constantes dos nºs. 5 do artigo 24º e 1 do artigo 26º do Código das Expropriações (de 1991), interpretadas por forma a excluir da classificação como solo apto para a construção terrenos integrados na RAN, expropriados para neles se construírem vias de comunicação, violam, ou não, os princípios da justa indemnização, da igualdade e da proporcionalidade que o texto constitucional consagra nos seus artigos 62º, nº 2, 13º, nº 1, e 18º, nº 2, respectivamente.
1.2. - As normas em sindicância prescrevem:
“Artigo 24.º Classificação de solos
1 – Para efeito do cálculo da indemnização por expropriação, o solo classifica-se em: a) Solo apto para construção; b) Solo para outros fins.
2 – Considera-se solo apto para a construção: a) O que dispõe de acesso rodoviário e de rede de abastecimento de água, de energia eléctrica e de saneamento, com as características adequadas para servir as edificações nele existentes ou a construir; b) O que pertença a núcleo urbano não equiparado com todas as infra-estruturas referidas na alínea anterior, mas que se encontre consolidado por as edificações ocuparem dois terços da área apta para o efeito; c) O que esteja destinado, de acordo com o plano municipal de ordenamento do território plenamente eficaz, a adquirir as características descritas na alínea a); d) O que, não estando abrangido pelo disposto nas alíneas anteriores, possua, todavia, alvará de loteamento ou licença de construção em vigor no momento da declaração de utilidade pública.
3 – Para efeitos da aplicação do presente Código é equiparada a solo apto para a construção a área de implantação e o logradouro das construções isoladas até ao limite do lote padrão, entendendo-se este como a soma da área de implantação da construção e da área de logradouro até ao dobro da primeira.
4 – Considera-se solo para outros fins o que não é abrangido pelo estatuído nos dois números anteriores.
5 – Para efeitos da aplicação do presente Código é equiparado a solo para outros fins o solo que, por lei ou regulamento, não possa ser utilizado na construção.”
“Artigo 26.º Cálculo do valor do solo para outros fins
1- O valor dos solos para outros fins será calculado tendo em atenção os seus rendimentos efectivo ou possível no estado existente à data da declaração de utilidade pública, a natureza do solo ou do subsolo, a configuração do terreno e as condições de acesso, as culturas predominantes e o clima da região, os frutos pendentes e outras circunstâncias objectivas susceptíveis de influírem no respectivo cálculo.
2 – Sendo necessário expropriar solos classificados como zona verde ou de lazer por plano municipal de ordenamento do território plenamente eficaz, o valor de tais solos será calculado em função do valor médio das construções existentes ou que seja possível edificar nas parcelas situadas numa área envolvente cujo perímetro exterior se situe a 300 metros do limite da parcela expropriada.”
1.3. - Como se escreveu no recente Acórdão nº 347/2003
(consultável em www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm), não há que resolver autonomamente a questão da conformidade constitucional do nº 1 do artigo 26º, uma vez que não foi desaplicado “com base em qualquer juízo autónomo sobre a sua não conformidade com quaisquer parâmetros constitucionais, mas apenas uma simples consequência lógica do decidido quanto à não conformidade constitucional da norma constante do nº 5 do artigo 24º do CE/91”.
2. - Depurado o objecto do recurso, há que reconhecer que o aresto recorrido não observou o disposto no nº 5 do artigo 24º citado,
“desaplicando-o” de modo implícito, por considerações reconduzíveis à perspectiva constitucional.
Na verdade, e por um lado, reconhece-se que, tratando-se de solo classificado como zona verde ou de lazer, a justa indemnização há-de encontrar-se tendo em conta o valor médio das construções existentes ou que seja possível edificar nas parcelas situadas numa área envolvente cujo perímetro exterior se situe a 300 metros do limite da parcela expropriada (nos termos do nº 2 do artigo 26º do Código). Mas, por outro lado, se a parcela tiver sido expropriada para a construção de uma via de comunicação (de interesse público), situando-se em zona integrada na RAN (ou na REN), recusa-se a sua exclusão da categoria de solo apto para construção, “face à função social da propriedade que incide sobre aqueles terrenos”: deste modo, assegura-se ao expropriado a garantia de que não será prejudicado pela eventual “mal intencionada classificação de um terreno como zona verde, caracterizando-o de inaptidão construtiva e posteriormente, após a expropriação, lhe pagar uma indemnização tendo em conta esta realidade fingidamente criada” (o acórdão invoca, a este propósito, a situação analisada no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 267/97
– publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Maio de 1997 - relativo a um terreno classificado como parcela da RAN e dela libertado para construção de quartel de bombeiros).
Recorta-se, por conseguinte, uma clara, se bem que implícita, desaplicação da norma do Código de 91 que, para os seus concretos efeitos, equipara a solo para outros fins o que, por lei ou regulamento, não possa ser utilizado na construção.
3. - No citado Acórdão nº 267/97, este Tribunal julgou inconstitucional a norma do nº 5 do artigo 24º por violar os princípios da justiça e da proporcionalidade, “interpretada por forma a excluir de classificação de solo apto para a construção os solos integrados na RAN, justamente expropriados com o objectivo de neles se edificar para fins diferentes dos de utilidade pública agrícola”.
Então, uma dada parcela de terreno, integrada na RAN – e, como tal, com valor correspondente ao de solo não apto para construção – fora adquirido por uma edilidade, sendo que, posteriormente, em condicionalismo de particular especificidade (descrito no aresto), nele se construiu um quartel de bombeiros. Entendeu-se, na circunstância, que foram ofendidos aqueles princípios constitucionais de justiça e de proporcionalidade, “pois que a repartição de benefícios entre a comunidade e os expropriados não é proporcional aos encargos também repartidos pelas duas partes”, conduzindo a indemnizações “irrisórias ou manifestamente desproporcionadas à perda do bem”.
No entanto, abstraindo da peculiariedade do caso, onde terá sido encontrado um meio de desvalorizar um terreno como parte integrante de zona verde, ssim o embaratecendo para fins expropriativos e, mais tarde, tentar
“manipular” as regras urbanísticas, o certo é que, por diversas vezes, o Tribunal tem julgado constitucionalmente compatível a norma em referência, considerando as concretas situações jurídicas subjacentes.
Assim, no Acórdão nº 20/2000 (publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Abril de 2000), face a uma situação próxima, emitiu-se um juízo de não inconstitucionalidade. Estava em causa a expropriação de uma parcela de terreno integrada na RAN, dela não concomitantemente desafectado, que a expropriante destinara à implantação de um troço de auto-estrada e não à edificação ou construção de qualquer prédio urbano.
Mas, como então se desenvolveu, no ponto II-16 do aresto, “não tendo o proprietário dos terrenos integrados na RAN expectativa razoável de os ver desafectados e destinados à construção ou edificação, e não tendo a finalidade de expropriação (construção de uma auto-estrada) confirmado a existência de uma potencialidade edificativa excluída pela qualificação como
“solo para outros fins”, que não a construção, não são invocáveis os princípios constitucionais da igualdade e da justa indemnização para obrigar à avaliação do montante indemnizatório com base nessa potencialidade edificativa. E, por conseguinte, a normas do nº 5 do artigo 24º do Código das Expropriações vigente, interpretada com o sentido de excluir da classificação de “solo apto para a construção” solos integrados na RAN expropriados para fins diversos, quer de utilidade pública agrícola, quer de edificação de construções urbanas – como é o caso da construção de vias de comunicação – não é inconstitucional”.
Juízo idêntico foi alcançado pelo Acórdão nº 219/2001
(publicado no referido jornal oficial, II Série, de 6 de Julho de 2001) e vários outros se poderiam citar, como os Acórdãos nºs 247/00 (consultável em
www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm), 243/2001, 121/2002, 417/2002 e 155/2002 (publicados no mesmo Diário, II Série, de 4 de Julho de 2001 e 12, 17 e 30 de Dezembro de 2002, respectivamente).
E nem por isso se surpreendeu, no diferenciado modo de analisar e ajuizar as situações subjacentes, uma alegada contradição jurisprudencial, como se concluiu no Acórdão, tirado em plenário, nº 457/2002
(consultável em www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm).
Decisivamente, sobre o alcance da decisão proferida no Acórdão nº 267/97, foi explicitado pela jurisprudência constitucional posterior que o sentido que interessa para efeitos de justa indemnização não é o facto de o terreno deixar de ser agrícola, pois isso não afecta a necessidade da sua qualificação como solo apto para construção, mas sim a circunstância de o terreno ter ou não uma muito próxima ou efectiva aptidão edificativa, que resulta do facto de o expropriante lhe dar uma utilização para construção urbana, como se condensou no Acórdão nº 419/2002, tirado em plenário, publicado no Diário citado, II Série, de 30 de Dezembro de 2002.
É a jurisprudência que o Acórdão nº 20/2000 acolheu e que mereceu ser seguida nos demais arestos posteriores, acima citados, que ora se reitera e para cuja fundamentação se remete.
Não obstante, cumpre atentar na singularidade do caso sub judice.
4. - Crê-se, na verdade, que o fundamento determinante da recusa implícita registada nos autos apenas caberá razoavelmente convocar quando se revele um circunstancialismo semelhante ou próximo do subjacente ao considerado no Acórdão nº 267/97 e, conforme foi o caso, se surpreende um expediente indemnizatório – assente em “realidade fingidamente criada”.
Já assim não será para além de um espectro reduzido de situações como a então verificada.
Na verdade, uma leitura jurídico-constitucional passa, necessariamente, pela observância dos parâmetros acolhidos nos nºs. 1 e 2 do artigo 266º da Constituição, moldados no respeito pelos princípios da igualdade, da imparcialidade, da justiça e da proporcionalidade, auto-vinculantes da actuação da Administração Pública, directamente considerada quando reportada à actividade desta ou extensiva à prática, pelos órgãos e agentes administrativos, de actos administrativos, estabelecendo os critérios orientadores da actividade administrativa (cfr., inter alia, o Acórdão nº 639/99, publicado no Diário da República, II Série, de 23 de Março de 2000).
Não se recortando uma situação habilidosa – senão dolosa
– de desanexação de uma parcela de terreno integrado na RAN, não pode, em nome daqueles parâmetros, esquecer-se a vinculação situacional da propriedade do solo, a permitir limitações, restrições e até proibições na utilização desse solo que podem, inclusivamente, na opinião de um autor, “chegar a não configurar uma expropriação carecida de indemnização, se essas proibições forem um resultado de situação concreta do terreno e das suas características intrínsecas” (cfr. Fernando Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, maxime págs. 455 e segs. e 517).
Não é assim cabível, em princípio, uma interpretação generalizada da norma do nº 5 do artigo 24º do Código das Expropriações de 1991 como a feita no acórdão recorrido, apoiada em certo sector doutrinário. Não o
é, decisivamente, no caso sub judice pois, seguramente, este não é decalcável na situação prevista no Acórdão nº 267/97, mas sim na jurisprudência citada e recentemente reiterada pelo Acórdão nº 347/2003.
Como se escreveu neste último lugar:
“[...] numa situação em que a parcela expropriada se destina à construção de uma estrada não é possível ver, aí, acoplada qualquer alteração quanto à existência de uma muito próxima ou efectiva aptidão edificativa que a sua inclusão na RAN anteriormente afastava, nem sequer uma mudança quanto à sua qualificação legal do terreno com destinação agrícola. Numa situação em que cesse a via de comunicação construída, o terreno volta a estar sujeito a uma efectiva destinação agrícola”.
Ora, em resumo, a decisão recorrida recusou ilegitimamente a aplicação da norma do nº 5 do artigo 24º e, consequentemente, não podia igualmente recusar a aplicação da norma do nº 1 do artigo 26º.
III
Em face do exposto, decide-se:
a) não julgar inconstitucional a norma constante do nº 5 do artigo 24º, nem, em termos de simples subsequência lógica, a norma constante do nº 1 do artigo 26º, ambos do Código das Expropriações aprovado pelo Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro, interpretadas por forma a excluir de classificações como solo apto para construção os terrenos integrados na RAN, expropriados para a construção de vias de comunicação;
b) consequentemente, conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada, tendo em conta o precedente juízo de constitucionalidade.
Sem custas. Lisboa, 24 de Setembro de 2003
Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida