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Proc. n.º 246/02
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. Por sentença do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto, de 31 de Janeiro de 2002, foi decidido julgar procedente a impugnação judicial que a ora recorrida A., havia deduzido contra a liquidação da taxa, efectuada pela Câmara Municipal de Matosinhos, no valor de esc. 72.871.820$00, respeitante a ocupação do subsolo daquele município com condutas de combustíveis - Pipeline ----------
– referente ao ano de 2000. Para concluir desta forma aquela decisão recusou aplicar, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica, as normas 4 e 7 do artigo 36º do Anexo I ao Regulamento e Tabela de Taxas e Licenças da Câmara Municipal de Matosinhos, na redacção dada pela sua deliberação de 28 de Dezembro de 1998, publicada no aviso n.º 1610/99, do Diário da República n.º 61, II série, Apêndice 31, de 13 de Março de 1999, por entender que as referidas normas, ao abrigo das quais foi praticado o acto de liquidação em causa, envolvem a criação de um verdadeiro imposto.
2. Desta decisão foi interposto pelo representante do Ministério Público naquele Tribunal, ao abrigo dos artigos 70º, n.º 1, al. a) e 72º, n.º 1, al. a) e n.º 3 da LTC, o presente recurso obrigatório de constitucionalidade, tendo por objecto a apreciação da constitucionalidade das normas dos n.ºs 4 e 7 do artigo 36º do Anexo I ao Regulamento e Tabela de Taxas e Licenças da Câmara Municipal de Matosinhos, na redacção dada pela sua deliberação de 28 de Dezembro de 1998, publicada no aviso n.º 1610/99, do Diário da República n.º 61, II série, Apêndice 31, de 13 de Março de 1999, a que a decisão recorrida recusou aplicação com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica.
3. Já neste Tribunal foi o representante do Ministério Público notificado para alegar, o que fez, tendo concluído nos seguintes termos:
“1 – A concepção constitucional de «taxa» pressupõe – face ao entendimento da jurisprudência constitucional – a necessidade de existência de uma relação sinalagmática, a desnecessidade de uma exacta equivalência económica, a aferição do respectivo montante em função não só do custo, mas também do grau de utilidade prestada, e a exigência de uma não manifesta desproporcionalidade na sua fixação.
2º - A taxa devida pela utilização do subsolo viário municipal, através da instalação de condutas subterrâneas para o transporte de produtos petrolíferos, tem natureza sinalagmática, já que é devida em função de uma utilização individualizável de um bem de domínio público municipal.
3º - A circunstância de na fixação do montante de tal taxa se ponderar a utilidade económica que, para o utente, decorre do consentimento na utilização do subsolo municipal – não atendendo apenas a outras prestações ou custos devidos ou suportados pelo município e as áreas físicas ocupadas – não implica
«manifesta desproporção» da taxa fixada pela norma regulamentar objecto do presente recurso.
4º - Não podem invocar-se como parâmetros de uma legada desproporcionalidade os montantes originariamente fixados, há várias décadas, como contrapartida de para tal utilização do subsolo, nem as decorrentes das restantes utilizações alternativas do subsolo municipal, já que o montante das taxas não pode considerar-se «cristalizado» em função das circunstâncias existentes no momento da sua criação, nem é vedado à Administração ponderar os riscos e utilidades que decorrem das várias utilizações possíveis do subsolo municipal, reflectindo-os no respectivo montante.
5º - Termos em que deverá proceder o presente recurso.
4. Contra-alegou a recorrida , tendo concluído da seguinte forma:
“1. O recente acórdão n.º 115/02 não rompeu com a jurisprudência anterior, pois que de acordo com aquele aresto estamos perante um imposto quando relativamente a um tributo, ainda, que indevidamente designado de taxa, haja quebra do nexo sinalagmático decorrente de uma excessiva ou manifesta desproporção entre o que se paga e o que se recebe da entidade pública. O que sucedeu nesse caso, salvo melhor opinião é que, nessa análise, se entendeu - melhor ou pior, não é esta a sede para o discutir - que tal desproporção não era manifesta.
2. Ora, no caso em apreço essa desproporção é gritante. Os tributos impugnados sofreram um aumento de 57.000%, relativamente aos que ora Recorrida pagava anteriormente pela ocupação do subsolo sob domínio público no concelho de Matosinhos com condutas transportadoras de produtos petrolíferos.
3. Tal aumento é verdadeiramente desmesurado e intolerável pois que a contraprestação da CMM se manteve, o que viola os princípios da proporcionalidade e boa fé constitucionalmente tutelados e retira mesmo ao tributo impugnado a natureza de taxa transfigurando-o num verdadeiro imposto.
4. Ora, o elevadíssimo valor das taxas ora impugnadas revela uma clara desadequação aliás deliberada - entre aquilo que é pago pelos particulares e a contraprestação a cargo da CMM.
5. Mesmo que assim não se entenda, e que se devesse qualificar os tributos em questão como taxas, por se entender existir sinalágma, sempre se terá que concluir que as mesmas, e bem assim a deliberação que as instituiu, infringem a Constituição e o Código de Procedimento Administrativo, designadamente por violarem os princípios da justiça, da proporcionalidade, da boa fé e da protecção da confiança.
6. Da Justiça, porquanto fixam um preço pelo atravessamento do subsolo em desconformidade com as regras da fixação de um 'justo preço' que decorre do próprio Código das Expropriações, da Proporcionalidade, na medida em que o seu valor excede desproporcionadamente o valor do uso privativo do subsolo que devem remunerar, e da Boa Fé, porque ao serem aplicadas tais regras a instalações que já existiam antes, frustraram de modo inaceitável a confiança da ora Recorrida na estabilidade do regime jurídico da remuneração do uso privativo, a qual aliás estava consagrada no próprio regulamento anterior, sendo certo que na base dessa confiança a Recorrida fez investimentos avultadíssimos que ficam agora comprometidos.
7. A posição da recorrida assenta em extensa medida em parecer jurídico da autoria do Dr. Robin de Andrade, cuja cópia se encontra junta aos autos em 8 de Abril de 2002, o qual aqui se dá por inteiramente reproduzido.
8. Na douta sentença recorrida o M.o Juiz a quo decidiu e bem que o tributo em causa nos autos se trata de verdadeiro imposto e declarou por isso declarou inconstitucionais as normas 4 e 7 do artigo 36º do Anexo I ao regulamento e tabela de taxas e licenças da CMM, na redacção dada na sua deliberação de
28/12/98, publicada no aviso n.o 1610/99, do DR n.o 61, II Série, Apêndice n.o
31, de 13/03/99.
9. Da análise dos factos provados e da sucessão e conteúdo regulamentos em causa nos autos entendeu o M.º Juiz a quo o seguinte:
10. As taxas em causa sofreram um agravamento muitas vezes superior a mil %, sem que da parte do município houvesse qualquer alteração de contrapartida.
11. A manutenção, inspecção e reparação das condutas atrás referidas sempre esteve a cargo da impugnante e das outras empresas referidas em 3), de acordo com um plano previamente estabelecido entre elas.
12. São estas empresas que recorrem a empresas externas para certificações.
13. Tal aumento não se confunde com qualquer actualização da inflação.
14. O que está e esteve sempre em causa foi a remuneração pela ocupação do subsolo que subjaz às estradas e ruas municipais do domínio público viário do município de Matosinhos.
15. Para além da atribuição da licença para utilização do subsolo, o município não presta, em contrapartida, qualquer serviço individualizável, nem tem que incorrer em quaisquer despesas com a fiscalização ou vistoria das condutas.
16. A taxa sub judice, repete-se, tem como única contrapartida a utilização do domínio público municipal e não qualquer outro serviço público ou qualquer bem municipal.
17. O município aumentou (nos termos apontados mais de 55.000%) as taxas em crise, sem qualquer alteração das condições de ocupação do subsolo.
18. O aumento desmesurado e totalmente desproporcionado daquelas taxas (pese embora o apelo a exigências ambientais, ao aumento da poluição ou da perigosidade inerente ao produto transportado nas condutas).
19. A tal taxa (alteração) não corresponde uma alteração dos serviços prestados pelo respectivo ente público;
20. A alteração do valor das taxas deveria resultar da área ocupada (...) ou de qualquer outro critério que revelasse a capacidade de a ocupação afectar o interesse público e o uso comum da coisa, o que não sucedeu (pese embora o reconhecimento de que hoje o subsolo municipal constitui um 'substracto autónomo de realização de finalidades públicas'.
21. No caso posto, as taxas não foram fixadas em função da área, já que para as mesmas áreas ocupadas elas variam de forma substancial e, em vários casos, são devidas taxas mais pesadas para ocupações menores de área - veja-se a redacção do artigo 36° nos seus vários n.ºs.
22. Elas foram fixadas em função da natureza da actividade económica dos titulares- cfr. preâmbulo do regulamento em análise...
23. Deste modo não são contrapartida do custo ou do valor do uso privativo.
24. Foram antes norteadas pela capacidade contributiva e pela natureza da actividade desenvolvida como se de impostos se tratasse.
25. Perante tais factos o IMMP, não os rebate, nem faz qualquer apreciação em concreto sobre os aumentos verificados, nem tão pouco refere um só facto provado de onde resulte possível que os quantitativos em concreto fixados pela CMM ao tributo em crise são justos e adequados ao serviço efectivamente prestado e à utilidade retirada do mesmo por parte da impugnante.
26. É absolutamente demagógico - raiando a má fé- dizer-se que o custo/ benefício se deve aferir por relação ao custo em que se incorreria com recurso ao transporte rodoviário, custo esse que seria incomportável e de resto não está provado nos autos.
27. Ora, a verdade é que se assim tivesse que acontecer as instalações não poderiam continuar a laborar onde estão presentemente além de que o fluxo de camiões seria incomportável para o município.
28. Como se referiu na p.i. uma solução rodoviária é inviável pois que implicaria um fluxo mensal de milhares de camiões cisterna entre o Porto e a refinaria e entre esta e as demais instalações além de que a refinaria pura e simplesmente não teria capacidade para tais abastecimentos.
29. A irrazoabilidade dessa hipótese - e portanto a sua desadequação para alcançar o valor da utilidade do serviço - é de resto afastada pelo próprio legislador nacional e comunitário que no próprio preâmbulo do Decreto- lei n.º
152/94, de 26 de Maio, veio dizer que 'o transporte de produtos combustíveis sob a forma líquida ou gasosa, deve realizar-se, sempre que possível, através de condutas de transporte (...) já que essa é a forma menos agressiva e que menos risco oferece para a preservação do ambiente...
30. Em suma, esse critério da equiparação aos custos com o transporte rodoviário
é pois absolutamente inaceitável pois que apela a uma comparação de dados insusceptíveis de comparação e, mais que isso, totalmente destituída de sentido.
31. Acresce ainda referir que a equiparação entre o custo do transporte por camiões cisterna e o montante da taxa não é de admitir não só por se encontrar vedada a uma verdadeira taxa a consideração individualizada, ainda que indirecta, da capacidade contributiva, mas também porque não pode uma autarquia simplesmente determinar o montante da taxa por relação com preços de mercado, pois que é uma entidade que tem por escopo e finalidade o interesse público e não obter lucro.
32. O IMMP refere - aliás incompreensivelmente - que os tributos impugnados se reportam a montantes originariamente fixados há varias décadas e que nessa medida não podem ser invocados enquanto parâmetros de uma alegada desproporcionalidade, o que é falso.
33. Até à entrada em vigor do actual Regulamento e Tabela de Taxas e Licenças do Município de Matosinhos, o regime de taxas por ocupação do domínio público aplicável às condutas subterrâneas da Recorrida estava consagrado no nº 3 do artigo 37º do anterior regulamento.
34. Os “tubos” e “condutas” eram então tributados por metro linear ou fracção, e anualmente, a Esc. 85$00, se os mesmos possuíssem 'até 20 cm de diâmetro', ou Esc. 160$00 se o diâmetro fosse superior a tal medida.
35. Porém tais valores eram já os resultantes de uma actualização ocorrida em
1997 na sequência de sessão ordinária da CMM de 12.11.96 pelo que não faz qualquer sentido a alegação de que as taxas foram fixadas nos anos sessenta ou que é propósito da ora recorrida 'cristalizar' valores então definidos.
36. Acresce referir que sobre o quantum efectivo das taxas - mais de cinquenta contos por metro linear! - e sua justificação o Recorrente, tal como fizera já a CMM, pouco ou nada adianta ou rebate o que se disse, o mesmo valendo para o douto parecer jurídico que juntou aos autos, no qual habilidosamente os seus autores nunca se referem ao quantum efectivo em concreto a atribuir à taxa.
37. Cumpre ainda referir que, apesar do critério misto que invoca na determinação do valor da “taxa” (tendo em conta os custos suportados pela autarquia e as vantagens obtidas pela Recorrida), a CMM sempre reconheceu - cfr. as suas doutas alegações - que a mesma visa “apenas e tão só' cobrir os custos de disponibilização do subsolo, pelo que deixa de fazer sentido a tributação das vantagens obtidas pela Recorrida, que nada têm a ver com os custos alegadamente suportados pela autarquia.
38.Por outro lado, ainda que se pudesse eventualmente aceitar que as vantagens económicas obtidas através da utilização do subsolo público possam ser levadas em conta na fixação da 'taxa', essas vantagens nunca poderiam (como é manifestamente o caso) ser abusivamente absorvidas pelo tributo, sob pena de, também por esse motivo, esta se traduzir na sua transformação de “taxa” em imposto.
39. Decorre de quanto se vem dizendo que as taxas ora Recorrentes não podem ser aplicadas porquanto não foram fixadas em função de área ocupada, pois para as mesmas áreas ocupadas, as taxas variam de forma substancial, e em muitos casos são devidas taxas mais pesadas para ocupações menores da área, revelando que o que fundamenta a taxa é afinal outra coisa diferente.
40. As taxas são fixadas em função da natureza dos produtos que circulam nas condutas ou da actividade económica dos titulares, o que revela que não são contrapartida do custo ou do valor do uso privativo, mas única e exclusivamente da capacidade contributiva ou da natureza da actividade desenvolvida como se de verdadeiros impostos ou de sanções se tratasse.
41. Os custos envolvidos para o município com a ocupação privativa de parte do subsolo de ruas e caminhos municipais com tubos e condutas são virtualmente inexistentes e nunca foram identificados.
42. Os critérios utilizados para a fixação dos quantitativos destas taxas revelam afinal que estas não são verdadeiras taxas, pois não são o pagamento do preço da ocupação do subsolo dominial.
43. A ocupação do subsolo com tubos e condutas de combustíveis não é mais do que um índice - e para mais errado - da capacidade contributiva dos administrados, sendo a taxa um verdadeiro imposto lançado sobre os administrados que em dado momento ocuparem o subsolo do domínio público municipal com equipamentos que revelem uma actividade económica e resultados económicos merecedores de tributação, no entender do município.
44. Trata-se, pois de verdadeiros impostos locais criados ilegitimamente pelo município, destinados a financiar a generalidade das despesas do município e a prosseguir fins de política geral que não competem ao município mas sim ao Estado.
45. As taxas em causa são pois ilegais e inconstitucionais e por isso, juridicamente inválidas por ofenderem os artigos 103º n.º 2 e 165º n.º 1 al. i) da CRP .
46. Acresce que a taxa, não devendo ser fixada em valores baseados no simples jogo da oferta e da procura, ou seja nas pressões conjugadas de um município necessitado de aumentar as suas receitas e dos utilizadores carecidos do espaço por onde fazer passar as condutas com matérias primas vitais á sua laboração - e neste caso ao país, viola o artigo 266º da Constituição.
47. De acordo com aquela disposição, os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade e boa fé conforme se referiu acima.”
Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação.
5. O Tribunal Constitucional - e, concretamente, esta Secção - pronunciou-se, no Acórdão n.º 365/2003 (de que se junta cópia), proferido no processo 241/2002, sobre a exacta questão de constitucionalidade que agora, mais uma vez, vem colocada, tendo concluído pela não inconstitucionalidade das normas 4 e 7 do artigo 36º do Anexo I ao Regulamento e Tabela de Taxas e Licenças da Câmara Municipal de Matosinhos, na redacção dada pela sua deliberação de 28 de Dezembro de 1998, publicada no aviso n.º 1610/99, do Diário da República n.º 61, II série, Apêndice 31, de 13 de Março de 1999.
Esta conclusão, e a fundamentação que a sustenta, além de integralmente transponíveis para o caso que ora nos ocupa, merecem concordância, pelo que, reiterando-a, importa concluir, uma vez mais, pela não inconstitucionalidade das normas constantes dos n.ºs 4 e 7 do artigo 36° do Anexo I ao Regulamento e Tabela de Taxas e Licenças da Câmara Municipal de Matosinhos, na redacção resultante da deliberação aprovada em de 28 de Dezembro de 1998, publicada no aviso n.º 1610/99, do Apêndice n.º 31 ao DR n.º 61, II Série, de 13/03/99.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se: a) não julgar inconstitucionais as normas constantes dos n.ºs 4 e 7 do artigo
36° do Anexo I ao Regulamento e Tabela de Taxas e Licenças da Câmara Municipal de Matosinhos, na redacção resultante da deliberação aprovada em de 28 de Dezembro de 1998, publicada no aviso n.º 1610/99, do Diário da República n.º 61, II série, Apêndice 31, de 13 de Março de 1999; b) consequentemente, conceder provimento ao recurso, determinando que a sentença recorrida seja reformulada de acordo com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 14 de Julho de 2003 Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Luís Nunes de Almeida