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Processo nº 254/2003
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência,
na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por sentença do 2º Juízo Cível do Tribunal da Comarca do Porto foi julgada improcedente a acção de indemnização proposta por A. contra B., acção na qual, invocando diversos prejuízos provocados pela ré em três imóveis de que era proprietário, o autor pretendia a sua condenação no pagamento das quantias que indicava e, ainda, nas que viessem a ser apuradas em execução de sentença. Inconformado, o autor recorreu, sem êxito, para o Tribunal da Relação do Porto. O Supremo Tribunal de Justiça, todavia, por acórdão de 24 de Outubro de 2003, de fls. 664, concedeu provimento à revista interposta por A., nos seguintes termos
(não se transcrevem as notas):
«Sendo, em princípio, pelo teor das conclusões apresentadas nas alegações de recurso que se delimitam as questões a apreciar no respectivo âmbito (arts.
690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil), importa conhecer de uma única questão, relativamente à qual o recorrente diverge do entendimento do acórdão recorrido, que podemos equacionar do seguinte modo: Invocando danos, em prédios seus, advindos de obras de escavação a que a ré procedeu em prédio vizinho (art. 1348° do C.Civil), peticionou o autor, para reparar os prédios ajuizados, relativamente aos danos já detectados, a indemnização de 25.000.000$00 (em causa está apenas, neste momento, o montante de 19.600.000$00) e para reparar os mesmos prédios pelos danos ainda não detectados indemnização de montante a liquidar em execução de sentença
(afastados estão já – uma vez que, nessa parte, não foi contrariado o acórdão em crise, dada a sua não inclusão nas conclusões –quer o ressarcimento da desvalorização sofrida por tais prédios, quer a indemnização por danos não patrimoniais). O acórdão impugnado, partindo embora do pressuposto factual da ocorrência e causalidade dos danos alegados, seguiu o entendimento de que, vigorando como regra em matéria de indemnização o princípio da reconstituição natural (art.
562° do C.Civil), e não ocorrendo nenhuma das situações que justificam a atribuição de uma indemnização pecuniária (art. 566°, nº 1), não pode proceder o pedido de pagamento das quantias pretendidas. Diverge o recorrente desta orientação, afirmando essencialmente que o lesado tem o direito de optar pela forma de indemnização mais adequada, designadamente quando o lesante se não ofereça para proceder à reparação in natura, e não se oponha a que a indemnização seja fixada em dinheiro. Começaremos por referir que, ao contrário do sustentado pelo recorrente, a eventual responsabilidade civil da ré não assenta no nº 1 do art. 483° (norma que tão só alude à responsabilidade extracontratual por factos ilícitos), mas directamente no art. 1348°, nº 2, constituindo, assim, 'mais uma das numerosas hipóteses típicas de acto lícito que obriga o agente a reparar os danos causados'. Na verdade, dispõe aquele art. 1348° que 'o proprietário tem a faculdade de abrir no seu prédio minas ou poços e fazer escavações, desde que não prive os prédios vizinhos do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou deslocações de terra' (nº1) assim como que 'logo que venham a padecer danos com as obras
(escavações) feitas, os proprietários vizinhos serão indemnizados pelo autor delas, mesmo que tenham sido tomadas todas as precauções julgadas necessárias'
(nº 2). Notar-se-á, porém, esta construção jurídica não acarreta qualquer atipicidade no que respeita ao regime da obrigação de indemnização inserto nos arts. 562° a
572º, comum a todas os tipos de responsabilidade civil, e de que, de imediato, ressalta a consagração do princípio da restauração ou reposição natural, traduzido no facto de que 'quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação' (art. 562°). Realmente 'o n. 2 do art. 1348 limita-se a determinar que se, e na medida em que, vierem a padecer danos com obras feitas, os proprietários vizinhos serão indemnizados pelos autores destas. Não subverte este normativo nem o princípio geral da prioridade da reconstituição natural instituído pelo art. 562 do C. Civil, nem o princípio geral da subsidiariedade da indemnização em dinheiro contemplado no n. 1 do art. 566 do mesmo Código. O que este preceito legal pretende postular é a salvaguarda da indemnização total dos danos, ao estatuir que, na parte em que a restituição natural os não repare, deve a indemnização ser fixada em dinheiro'.
É certo, no entanto, que a própria lei prevê o afastamento da regra geral, por inviabilização prática, da reparação do dano, através da restauração natural da coisa danificada, por razões de equidade. E, deste modo, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor, a indemnização é fixada em dinheiro
– segundo determina o artigo 566°-1°. É esta a lição que se recolhe dos doutrinadores e comentaristas do artigo 566º-1, lição que se reforça – e eles também recolhem – por lógica e sentido jurídico semelhantes, quando aproximamos o aludido preceito do disposto no artigo 829°, em situações paralelas de desproporção de valores dos danos produzidos em comparação com os correspondentes valores indemnizáveis'. Acresce, todavia, da conjugação das normas dos citados arts. 562° e 566°, nº 1, que nada impede, não obstante a redacção da primeiro, que o lesado – afinal a indemnização através da reposição natural visa, em última análise, favorecê-lo
– venha, à partida, a optar pela indemnização pecuniária substitutiva ou equivalente, cumprindo, neste caso, 'se for possível a reconstituição natural, não devendo a indemnização ser fixada em dinheiro, ao réu alegá-lo na contestação, pois é nesse articulado que se deduz a defesa'. Posto isto, subsumidos os preceitos indicados, de acordo com os considerandos expostos, à matéria de facto apurada, parece-nos inevitável a conclusão de que, não só porque o art. 5661º, nº 1, o permite, mas sobretudo pelo apelo à boa fé que deve presidir em todas as situações de interesses conflituantes e do recurso
à equidade, o autor goza do direito a receber a indemnização peticionada
(reduzida, é certo, aos limites resultantes da matéria fáctica provada) . Desde logo se não suscitam quaisquer dúvidas acerca da responsabilidade civil
(por acto lícito embora) da ré, e da consequente obrigação de indemnizar o autor. É ela a proprietária do prédio vizinho onde foram realizadas as escavações. Está claramente comprovada a existência de nexo de causalidade entre as obras efectuadas e os danos sofridos pelo autor. A indemnização é devida independentemente de culpa (art. 1348º, nº 2). Doutro passo, a ré não deduziu qualquer oposição à natureza pecuniária, pelo equivalente, da indemnização peticionada pelo autor (não pugnou pela reposição natural dos prédios danificados). O que, em boa verdade, se atentarmos no quadro factual subjacente à situação em apreço, nem faria sentido. Com efeito, realizadas pela ré, no seu prédio as obras de escavação (a mesma ordenou que se abrissem profundas escavações no terreno onde erigiu o hotel) pelo menos em 1991, e apesar de intentada esta acção em 1994, permanecem os acima descritos danos (de evidente gravidade). Não se vislumbra, da banda dela, qualquer intenção de os reparar. É sabido que os danos causados tenderão a agravar-se com o decurso do tempo, tanto mais que nem todos estão detectados. É
óbvio que, na necessidade de propor outra acção para obter a condenação da ré na reparação específica dos danos causados (com os inerentes recursos e provável posterior procedimento executivo) mais uns anos largos decorrerão, pelo menos comparativamente com o que in casu acontece. Encontra-se, desde 1991, o autor coarctado de utilizar em pleno o conteúdo do seu direito de propriedade sobre os imóveis danificados. Não se sabe ainda concretamente qual a amplitude dos danos sofridos pelo autor nos seus prédios, já que parte deles, naturalmente, só serão determinados quando se iniciarem as obras de reparação. Não é possível, por
último, alhearmo-nos da situação económica em presença – enquanto a ré destinava as obras à construção de grande edifício (para instalação de um hotel de categoria), o autor é dono de prédios muito menos aparatosos. Toda esta situação justifica, pela exigência de um processo equitativo, como pela boa fé por que se há-de pautar o comportamento das pessoas, que se opte pela condenação no pagamento de uma quantia em dinheiro, já que são tão grandes os inconvenientes advindos para o autor de outra solução (reparação in natura) que, verdadeiramente, se nos afigura estarmos perante um dos casos previstos pelo art. 566º, nº 1, em que a reconstituição natural não repara integralmente os danos sofridos pelo lesado. Cremos, assim, demonstrada a razoabilidade do recurso interposto.
Termos em que se decide:
a) – julgar procedente o recurso de revista interposto pelo autor A.;
b) – revogar o acórdão recorrido;
c) – condenar a ré B. a pagar àquele autor a quantia de
19.600.000$00 como indemnização pelos danos já concretamente causados, bem como a indemnização, de montante a liquidar em execução de sentença pelos danos ainda não apurados neste momento;
d) – condenar as recorridas nas custas da revista, determinando que as custas devidas nas instâncias sejam suportadas pelas partes, na proporção do vencido.»
2. Pelo requerimento de fls. 677, B. veio requerer a aclaração deste acórdão. Nesse requerimento, afirmando que resulta do artigo 3º do Código de Processo Civil “que o Tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes”, que dos artigos “342º, 499º e 503º” que cabe ao autor “a alegação e prova dos elementos constitutivos da responsabilidade civil e do correspondente dever de indemnizar”, que “o facto de que resulta o dever de indemnização em metálico não foi alegado pelo Autor” e que o artigo 208º da Constituição “dispõe (...) que as decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei”, disse que não “descortinava” que “facto alegado pelo Autor” determinava “a conclusão do dever de indemnizar em metálico”. E concluiu no sentido de que “a não se entender que é ao Autor que incumbe o ónus e alegação desse facto, as normas acima citadas são inconstitucionais, porque violadoras dos artºs 207 e
208 da C.R.P.”. Pelo acórdão de fls. 685 foi indeferido este requerimento.
3. B. veio, então, recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nas alíneas b), c) e f) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Começando por afirmar que só com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça é que, pela primeira vez, “foram violados preceitos de que resulta a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade”, a recorrente afirmou que, a não se entenderem os artigos “342, 562 e 566” no sentido de que “quem reclama a indemnização em metálido terá de alegar os factos em que a substantiva dentro do princípio genérico de que é ao autor que incumbe a alegação e prova dos factos de que emerge o seu direito”, “tal interpretação viola não só esta lei substantiva como também a lei constitucional nomeadamente os invocados art. 207 e 208 da C.R.P. (...)”, bem como o artigo 20º, não assegurando “`ré recorrente
(...) o acesso ao direito”. Pelo despacho de fls. 694, o recurso não foi admitido, por ser manifestamente infundado, no que respeita aos fundamentos constantes das alíneas b) e f) do n.º
1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, já que a referência à alínea c) do mesmo n.º 1 foi entendida como “puramente retórica”.
4. Pelo requerimento de fls. 698, B. reclamou deste despacho de não admissão do recurso, acrescentando à lista de preceitos cuja interpretação acusou de ser inconstitucional no requerimento de interposição de recurso os artigos 3º, 264º e 664º do Código de Processo Civil e indicando como preceitos constitucionais violados os artigos 20º, 202º, n.º 2, 204º e 205º, n.º 1 da Constituição. Sustentou, para o efeito, não ser infundado o recurso que interpôs. A. respondeu à reclamação dizendo, em síntese, não ser possível converter uma discordância relativamente a uma decisão judicial numa violação do artigo 20º da Constituição.
5. Notificado para o efeito, o Ministério Público veio pronunciar-se no sentido de que a reclamação é manifestamente improcedente. Observando que só faria sentido, no caso, recorrer para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, o Ministério Público afirmou, em primeiro lugar, que o reclamante não tinha definido qualquer questão de constitucionalidade normativa susceptível de constituir o objecto do recurso que interpôs e, em segundo lugar, que não a tinha suscitado, durante o processo, nos termos legalmente exigíveis.
6. Com efeito, a reclamação é manifestamente improcedente. Em primeiro lugar, cumpre observar não ter efectivamente cabimento basear o recurso interposto nas alíneas c) e f) do n.º 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82; por um lado, porque o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de que a reclamante recorreu para o Tribunal Constitucional não recusou a aplicação de qualquer norma com o fundamento referido naquela alínea c); por outro, porque não foi suscitada durante o processo nenhuma das ilegalidades previstas na alínea f).
7. Em segundo lugar, há que lembrar que o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade se destina a que o Tribunal Constitucional aprecie questões de constitucionalidade de normas, não lhe cabendo julgar inconstitucionalidades que sejam atribuídas às decisões judiciais em si mesmas consideradas. Assim resulta do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da Lei nº 28/82, e assim tem sido afirmado pelo Tribunal Constitucional em inúmeras ocasiões (cfr. a título de exemplo, os acórdãos nºs
612/94, 634/94 e 20/96, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 11 de Janeiro de 1995, 31 de Janeiro de 1995 e 16 de Maio de
1996).
Ora a reclamante não define, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, nenhuma norma que, a seu ver, seja inconstitucional e que, apesar disso, tenha sido aplicada no acórdão recorrido. Cabendo-lhe definir o objecto do recurso que interpôs, não é suficiente para o efeito indicar os preceitos legais que considera terem sido aplicados afirmando foram que interpretados de forma inconstitucional.
8. Sempre se acrescenta, todavia, que, ainda que a reclamante tivesse definido a norma ou as normas que, contidas nos preceitos indicados no requerimento de interposição de recurso, são a seu ver inconstitucionais, ainda assim a reclamação teria de ser julgada improcedente, pois sempre faltaria um pressuposto indispensável ao conhecimento do objecto do recurso: ter sido suscitada durante o processo, nos termos exigidos pela al. b) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82, a inconstitucionalidade que pretende seja apreciada pelo Tribunal Constitucional. Como este Tribunal tem reiteradamente afirmado, este requisito da invocação da inconstitucionalidade de uma norma ou de uma sua interpretação durante o processo traduz-se na necessidade de que tal questão seja colocada perante o tribunal recorrido de forma a proporcionar-lhe a oportunidade de a apreciar. Só nos casos excepcionais e anómalos, que aqui manifestamente não ocorrem, em que o recorrente não dispôs processualmente dessa possibilidade, é que será admissível a arguição em momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os acórdãos deste Tribunal com os nºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1994). Ora, não integrando os poderes do Tribunal que julga um pedido de aclaração a apreciação da inconstitucionalidade de normas que eventualmente foram aplicadas pela decisão a aclarar (cfr. n.ºs 1 e 2 do artigo 666º do Código de Processo Civil e artigo 69º da Lei nº 28/82), não se poderia considerar oportuna a arguição de inconstitucionalidade feita, pela primeira vez, no requerimento de aclaração; e muito menos, naturalmente, no requerimento de reclamação pela não admissão do recurso interposto para o Tribunal Constitucional. Sustenta o reclamante que a questão de constitucionalidade só surgiu com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça. É certo que foi este Tribunal que entendeu, diferentemente das instâncias, que, no confronto entre os requisitos definidos para a condenação na reconstituição natural e no pagamento de uma indemnização pecuniária, a ré podia ser condenada no pagamento de uma indemnização em dinheiro. A verdade, todavia, é que foi esse o pedido formulado pelo autor desde o início; e, em especial e para o que agora releva, foi essa a questão colocada pelo autor perante o Supremo Tribunal de Justiça no recurso de revista; como salienta o Ministério Público, a reclamante tinha o ónus de, nas contra-alegações então apresentadas, suscitar a inconstitucionalidade das normas cuja aplicação estava em discussão, sendo naturalmente exigível que se colocasse a hipótese de o Supremo Tribunal de Justiça as aplicar com o sentido que veio a prevalecer. Não pode, pois, considerar-se que a reclamante foi surpreendida com uma interpretação dos preceitos que indica de forma a poder ser dispensada do ónus de suscitar a inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal de Justiça, em termos de este Tribunal ter de conhecer de tal questão.
Nestes termos, indefere-se a reclamação. Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs.
Lisboa, 19 de Maio de 2003 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida