Imprimir acórdão
Procº nº 9/2003.
3ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
Em 15 de Maio de 2003 o relator exarou nos presentes autos despacho com o seguinte teor:
“1. Em autos de processo comum com intervenção de juiz singular e em que figura como arguido A., o Juiz do 2º Juízo Criminal de Lisboa exarou, em 25 de Outubro de 2002, o seguinte despacho:
‘Os factos tiveram lugar em 12.1.1991.
O arguido foi declarado contumaz a 20.4.1999.
O arguido está acusado da prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelos artigos 23.º e 24.º, n.º 2, al. c) do Decreto n.º
13.004, de 12.1.1927, na redacção do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 400/82, de
23.9, e pelo artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28.12 e artigo 28.º, n.º
2, al. a) do CP. O prazo de prescrição do procedimento criminal é de dez anos e não se verificam quaisquer factos que interrompessem ou suspendessem aquele prazo de prescrição, nos termos dos arts. 119.º e 120.º do CP/1982.
Com efeito, atenta a data dos factos, são aplicáveis os artigos 119.º e 120.º do CP/1982. As causas de interrupção e de suspensão da prescrição do procedimento criminal previstas naqueles artigos reportavam-se ao CPP/1929 e não podem ser aplicadas nem integradas analogicamente pelo CPP/1987, como tem decidido o Tribunal Constitucional (vd. Acórdãos do Tribunal Constitucional, n.º
205/99, de 7.4.99 e n.º 122/00, de 23.2.00, in respectivamente DR, II Série, de
5.11.1999 e de 6.6.2000).
Decorre, pois, desta jurisprudência constitucional a manifesta inconstitucionalidade, por violação do artigo 29.º, n.º 1 e 3 da CRP, da equiparação, já tentada nos tribunais, da causa de interrupção prevista no artigo 120.º, n.º 1, al. d) do CP/1982 com a declaração de contumácia (vd. CJ, volume I, p. 149), por a omissão da contumácia entre as causas de interrupção da prescrição constituir uma ‘lacuna insusceptível de ser preenchida’
(Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Editorial Notícias, 1993, p. 710). Também não pode proceder a consideração da declaração de contumácia como uma causa de suspensão da prescrição, nos termos do assento n.º 10/2000, de
19.10.2000, que consubstancia uma aplicação analógica e retroactiva a factos anteriores a 1.10.1995 de uma causa de suspensão inexistente no CP/1982 (a declaração de contumácia).
O argumento usado na fundamentação do assento de que ‘a expressão usada «nos casos especialmente previstos na lei» não se quer referir a denominações, mas a situações, a certos conteúdos. É isto que interessa, e não o nome que se lhes aplica. Para efeitos iguais tem de haver situações idênticas»’ consubstancia uma clara interpretação analógica, especialmente visível na última frase citada!
Ora, as causas de interrupção e de suspensão do procedimento criminal devem ser interpretadas restritivamente e constituem um catálogo apertado que se refere apenas aos institutos processuais vigentes à data da criação da lei que regulamenta a lei da prescrição, como manda a boa doutrina ( cfr . Adolf Schönke e Horst Shröder, Strafgesetzbuch Kommentar, Munchen, editora Beck, 1991, p. 945, e Eduard Dreher e Herbert Tröndle, Strafgesetzbuch Kommentar, München, editora Beck, 1995, p. 606), seguida uniformemente pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça alemão, o Bundesgerichtshof (BGH-Entscheidungen, vol. 4, p.
135, vol. 18, p. 278, vol. 26, p. 83, e vol. 28, p. 281). Esta doutrina e esta jurisprudência são particularmente significativas, porque o Código Penal português de 1982 reproduz praticamente o sistema alemão previsto nos §§ 78, 78 a, 78 b, 78 c, 79, 79 a, e 79 b do Código Penal alemão, sendo ainda mais restrito do que este direito, por prever menos causas de suspensão e de interrupção. O intérprete português não pode, portanto, ignorar o elemento interpretativo sistemático e teleológico que inspirou o legislador português em
1982, sob pena de se estar a substituir ao legislador .
Coloca-se ainda o problema de saber qual das suas questões de inconstitucionalidade deve este Tribunal conhecer primeiro, o que não é irrelevante para efeitos da interposição do recurso desta decisão.
O conhecimento da inconstitucionalidade do artigo 120.º do CP/1982 é prévio ao conhecimento da inconstitucionalidade do artigo 119.º do CP/1982, uma vez que a interrupção é mais gravosa para o arguido do que a suspensão da prescrição. Deve, pois, este Tribunal conhecer primeiro da questão da inconstitucionalidade do regime das causas de interrupção da prescrição e depois da inconstitucionalidade do regime das causas de suspensão da prescrição, ficando deste modo salvaguardada a prioridade lógica do recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional da decisão de inconstitucionalidade da interpretação do artigo 120.º do CP/1982, que não se encontra decidida por qualquer acórdão de fixação de jurisprudência.
Aliás, mesmo em relação à questão da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 119.º do CP/1982, nos termos em que foi decidida pelo assento n.º 10/2000, a prioridade do recurso para o STJ da decisão que negue a aplicação da interpretação fixada no assento com base na sua inconstitucionalidade poderia ter como consequência a manutenção pelo STJ da sua posição, revogando a decisão recorrida e não podendo Tribunal Constitucional conhecer da própria inconstitucionalidade suscitada em relação à interpretação firmada no assento. Este movimento circular, em que o STJ é o último juiz da inconstitucionalidade da interpretação fixada nos assentos que profere, conduziria em linha recta a uma interpretação das disposições do n.º 5 do artigo
70.º da Lei n. 28/82, na versão do artigo 1, da Lei n. 13-A/98, de 26.2, em violação do disposto no artigo 280.º, n.º 1, al. a) da Constituição da República e representaria uma fraude ao sistema constitucional de garantia da Constituição.
Pelo exposto:
1. não aplico, por os julgar inconstitucionais, os artigos 335.º e
337.º do CPP/1987, conjugados com o artigo 120.º, n.º 1, al. d) do CP/1982, na interpretação segundo a qual a declaração de contumácia pode ser equiparada à causa aí prevista, e
2. não aplico, por os julgar inconstitucionais, os artigos 335.º e
337.º do CPP/1987, com o artigo 119.º, n.º 1, do CP/1982, na interpretação dada pelo STJ no assento n.º 10/2000,
3. e, em consequência, declaro prescrito o procedimento criminal e cessada a contumácia e determino o oportuno arquivamento dos autos.
Notifique e, após trânsito, dê publicidade legal (artigo 337.º, n.º 6 do CPP)”.
Do transcrito despacho recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o Representante do Ministério Público junto daquele Juízo, por seu intermédio pretendendo, conforme requerimento apresentado na sequência de convite que foi formulado ex vi do nº 6 do artº 75º-A da mesma Lei, a apreciação, por um lado, da questão de constitucionalidade referente ao complexo normativo constituído pelos artigos 335º e 337º, estes do Código de Processo Penal de 1987, e 120º, nº
1, alínea d), este do Código Penal de 1982, na interpretação de harmonia com a qual a declaração de contumácia pode ser equiparada à causa de interrupção da prescrição aí prevista; e, por outro lado, a apreciação da questão de constitucionalidade respeitante ao nº 1 do artº 119º do Código Penal de 1982, na interpretação que veio a ser fixada pelo «Assento» nº 10/2000, de 19 de Outubro de 2000, do Supremo Tribunal de Justiça (que veio a ser publicado na 1ª Série-A do Diário da República, de 10 de Novembro de 2000, interpretação essa segundo a qual no ‘domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal’).
2. Em 5 de Fevereiro de 2003 o relator exarou despacho em que limitou o objecto do recurso ao complexo normativo constituído pelos artigos 335º e 337º, estes da versão originária do Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, e 120º, nº 1, alínea d), este da versão originária do Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei nº 400/82, na interpretação de harmonia com a qual a declaração de contumácia pode ser equiparada à marcação do dia para o julgamento no processo de ausentes.
Para uma tal limitação, exarou-se naquele despacho:
‘.............................................................................................................................................................................................................Acontece, porém, que, no que tange à interpretação fixada pelo aludido «Assento» concernentemente ao nº 1 do artº 119º da versão originária do Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei nº 400/82 de 29 de Setembro, tendo em conta que a decisão recorrida veio a perfilhar um juízo que se posta como contrário a tal interpretação, está tal decisão sujeita a recurso obrigatório do Ministério Público, como se estabelece no artº 446º, nº 1, do vigente Código de Processo Penal.
Sendo assim, coloca-se a questão de saber se a presente situação, no que se reporta àquela norma (o nº 1 do artº 119º), pode enquadrar-se na estatuição constante do nº 5 do artº 70º da Lei nº 28/82.
Ora, este Tribunal, nos seus Acórdãos números 281/2001 e 282/2001, já tomou posição sobre problema idêntico ao ora deparado, tendo concluído que haveria de não tomar conhecimento do objecto do recurso, precisamente por não ter sido previamente interposto o recurso obrigatório comandado no falado nº 1 do artº 446º do Código de Processo Penal.
Neste contexto, não se conhecerá do vertente recurso no que se refere
à norma constante do nº 1 do artº 119º da versão originária do Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei nº 400/82, na interpretação conferida pelo «Assento» nº 10/2000.
.............................................................................................................................................................................................................’
3. Determinada a feitura de alegações, concluiu a entidade recorrente a por si efectivada com a formulação das seguintes «conclusões»:
‘1 - É inconstitucional, por violação do artigo 29º, nºs 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa, a interpretação normativa do artigo 120º, nº 1, alínea d) do Código Penal de 1982 - conjugado com as normas que regulam a declaração de contumácia e respectivos efeitos - enquanto faz equiparar, em termos substancialmente inovatórios, para efeitos da prescrição do procedimento criminal, o acto de marcação do dia para julgamento em processo de ausentes (nos termos do Código de Processo Penal de 1929) à declaração de contumácia que - nos termos do Código de Processo Penal de 1987 - obsta ao prosseguimento do processo, à revelia do arguido, para a fase de julgamento.
2 - Termos em que deverá confirmar-se o juízo e inconstitucionalidade constante da decisão recorrida’.
O arguido, por seu turno, não apresentou alegação.
4. Porque, não obstante ter sido determinada a feitura de alegações, se afigura ao ora relator que não deverá tomar-se conhecimento do objecto do recurso, elabora-se o presente despacho, ex vi dos artigos 69º da Lei nº 28/82 e
704º, nº 1, do Código de Processo Civil.
4.1. Poder-se-ia, num primeiro passo, questionar se, dada a forma como se encontra redigido o despacho impugnado, o mesmo, para alcançar a decisão que tomou, teve, imperiosamente e de um ponto de vista jurídico (na perspectiva desse despacho, como é óbvio), de recusar, por motivos de inconstitucionalidade, a aplicação do complexo normativo constituído pelos artigos 335º e 337º da versão originária do Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto-Lei nº
78/87, de 17 de Fevereiro, e pelo artº 210º, nº 1, alínea d), do Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei nº 400/82, de 29 de Setembro, interpretado no sentido de, para efeitos de interrupção do procedimento criminal, a declaração de contumácia ser equiparada à marcação de julgamento no processo de ausentes, e isso, fundamentalmente, pela circunstância de na peça processual em causa em nenhum ponto se ter expressamente utilizado qualquer asserção da qual resultasse que uma tal dimensão interpretativa daqueles preceitos era aquela que se imporia em face dos cânones que regem a interpretação das leis e, dessa sorte, seria a que, prima facie, teria de ser acolhida. Para este hipotético questionar, poder-se-ia argumentar com a circunstância de no despacho em apreço se ter referido àquela interpretação como algo que já fora «tentado» nos tribunais, sem que daí decorresse que ela seria a assumida pelo Juiz autor desse despacho, sem se entrar em linha de conta com a enfermidade constitucional que tal interpretação comportava.
4.2. Todavia, é também defensável que despacho em crise possa ser entendido como traduzindo a ideia de que a aludida interpretação, «já tentada nos tribunais», seria aquela que, em princípio, seria a perfilhada para, juridicamente, decidir a situação então em espécie, só não sendo a adoptada justamente em face do vício de inconstitucionalidade que se descortinou. Este entendimento confortar-se-ia no que foi escrito na parte final do despacho, ao se decidir pela não aplicação dos citados preceitos (com o sentido interpretativo já exposto), de molde a daí se extrair que a razão da não aplicação se fundou, e só, em motivos de desconformidade com o Diploma Básico.
Neste contexto, não se desenharia a formulação de um juízo de inconstitucionalidade incidente sobre um conjunto normativo (alcançado por interpretação) meramente «virtual» ou «académico» que, afinal, não era aquele que levou Juiz a quo a decidir da forma como decidiu e, precisamente por isso
(atentas essas características de «virtualidade» ou «academismo»), não seria repercutível na solução jurídica do caso então apreciado (pois que não foi ele o que ditou essa solução), consequentemente se revestindo de inutilidade a intervenção do Tribunal Constitucional neste particular.
5. Aqui chegados (ou seja, na pressuposição de que, efectivamente, por motivo de inconstitucionalidade, foi recusada aplicação do conjunto normativo em causa, na interpretação já aludida, conjunto esse que, não fora tal vício, haveria de constituir o suporte jurídico da decisão a tomar, uma outra questão se suscita ao ora relator e que conduz a que o mesmo entenda que se não deve tomar conhecimento do objecto do recurso.
Na verdade, propende-se para considerar que não traduz uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa o problema atinente à forma ou ao modo como o direito ordinário é interpretado, para daí se concluir que a norma alcançada por interpretação, ao ultrapassar o campo semântico dos conceitos jurídicos empregues pelo legislador (e, dessa arte, procedendo a uma extensão ou analogia desses mesmos conceitos), viola o princípio da legalidade que é apanágio do direito criminal, consequentemente se postando essa interpretação como inconstitucional por violação do artigo 29º, números 1 e 3, da Lei Fundamental.
A propensão ora deixada exposta tem a sua raiz em jurisprudência
(embora não unânime, nem firme) deste Tribunal de que se dá conta no Acórdão nº
674/99 (publicado na 2ª Série do Diário da República de 25 de Fevereiro de
2000).
Disse-se, a este propósito, naquele aresto, ao se enfrentar a questão de saber se se pode considerar um real problema de inconstitucionalidade normativa quando em causa está um processo interpretativo que, por não ter respeitado os limites da interpretação da lei criminal decorrentes do princípio da legalidade, conduz a uma analógica ou extensiva aplicação de determinados preceitos:
‘.............................................................................................................................................................................................................Resta, porém, saber se essa questão se reconduz a uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, isto é, a uma questão que caiba ao Tribunal Constitucional conhecer, no âmbito do recurso de constitucionalidade.
50. O Tribunal Constitucional, pela sua 2ª Secção, começou por considerar que, em tais casos, se estaria perante «a inconstitucionalidade do acto de julgamento, e não a inconstitucionalidade de uma norma jurídica», pelo que se lhes não aplicaria o sistema de fiscalização da constitucionalidade, ao qual estão «apenas sujeitos os actos do poder normativo» (cfr. Acórdão nº
353/86, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8º vol., págs. 571 e segs.).
Contudo, mais tarde, no Acórdão nº 141/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol., págs. 599 e segs.), o Tribunal Constitucional, pela sua 1ª Secção, embora com o voto de vencido do Exmº Presidente, Consº Cardoso da Costa, deu resposta afirmativa ao problema. Afirmou-se então:
«De facto, poderia sustentar-se que o Tribunal Constitucional carecia de competência para conhecer do objecto deste recurso, porquanto não estaria em causa propriamente matéria normativa (norma inconstitucional, numa certa interpretação da mesma), mas matéria decisória (o Supremo Tribunal de Justiça, ao confirmar a decisão condenatória da primeira instância, teria aplicado analogicamente uma norma incriminatória, em contravenção imediata ao disposto no artigo 1º, nº 3, do Código Penal, só mediatamente se podendo considerar que esta decisão judicial teria violado os nºs. 1 e 3 do artigo 29º da Constituição
[...].
Não obstante o carácter sugestivo deste raciocínio, crê-se que o mesmo não procede. De facto, o recorrente suscitou no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a questão de inconstitucionalidade da norma [...]. Sustentou aí que o tribunal havia interpretado extensivamente ou aplicado analogicamente certa norma incriminatória, sendo tal interpretação ou aplicação analógica através da criação de uma norma análoga aplicável a um caso omisso, contrárias à Constituição (no caso de se estar perante uma interpretação extensiva, seria também esta inconstitucional tal como o seria, por idêntica razão, o nº 3 do artigo 1º do Código Penal).
Ora, num plano perfunctório de análise de verificação dos pressupostos do recurso de constitucionalidade, ou seja, numa avaliação prima facie de tais pressupostos, entende-se que os mesmos se verificam no caso concreto. Saber se a interpretação perfilhada foi ou não inconstitucional faz parte já do conhecimento da questão de fundo ou de mérito. [...]»
51. Esta última jurisprudência, porém, não se sedimentou. Com efeito, posteriormente, o Tribunal Constitucional veio a entender, nomeadamente no Acórdão nº 634/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29º vol., págs. 243 e segs.), no Acórdão nº 221/95, (Diário da República, II Série, de 27 de Junho de
1995), no Acórdão nº 756/95, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32º vol., págs. 775 e segs.), no Acórdão nº 682/95, (inédito) ou, mais recentemente, no Acórdão nº 154/98 (inédito), que hipóteses em que se questionem certas interpretações normativas por ofensa do princípio da legalidade penal - ou hipóteses idênticas, no âmbito do respeito pelo princípio da legalidade fiscal - não traduzem verdadeiras questões de inconstitucionalidade normativa, mas reflectem antes questões de inconstitucionalidade da própria decisão recorrida ou do acto de julgamento.
Assim, pode ler-se no citado Acórdão nº 221/95:
«Portanto, o que a recorrente questiona, no essencial, no recurso interposto no tribunal a quo, não é a norma [...] interpretada em desarmonia com a Constituição, mas, antes, a decisão judicial [...] que, inconstitucionalmente, e na sua tese, tê-la-ia prejudicado, ao aplicar certa norma ao seu caso, através de um método de interpretação colidente com as regras gerais de interpretação das leis fiscais e os princípios constitucionais na matéria [...]».
E, por outro lado, escreveu-se no já mencionado Acórdão nº 154/98:
«Pretende o recorrente que o Tribunal recorrido interpretou a norma do artigo 292º do Código Penal de forma extensiva, aplicando-o analogicamente, desde logo violando o disposto no nº 1 do artigo 29º da Constituição.
No entanto, não é o controlo normativo - legitimante do recurso de constitucionalidade - que está em causa. [...]
Ora, esse objectivo não se compagina com aquele controlo normativo, abrindo via, quando muito, a um recurso de amparo que não está entre nós previsto».
E sublinhe-se também que no anteriormente referido Acórdão nº 682/95 se entendeu sugestivamente que, em tais hipóteses, «o que está em causa não é uma específica dimensão normativa do preceito», mas antes «a determinação do seu
âmbito de aplicação, de acordo com a sua ratio», tarefa que «corresponde apenas
à subsunção jurídica do caso, não havendo nenhum sentido específico da norma confrontável com a Constituição». Por isso, aí mesmo se concluiu que não estaria em causa «qualquer específica questão de constitucionalidade, mas apenas um problema de averiguação da intenção normativa, objectivamente considerada, e de subsunção».
52. Mais recentemente, porém, esta posição do Tribunal - que já não era totalmente unânime (cfr. declarações de voto do Exmo. Conselheiro José de Sousa Brito apostas ao Acórdão nº 634/94 e ao Acórdão nº 756/95) - parece ter-se inflectido através do Acórdão nº 205/99 (Diário da República, II Série, de 5 de Novembro de 1999) e do Acórdão nº 285/99 (Diário da República, II Série, de 21 de Outubro de 1999).
Com efeito, entendeu-se no citado Acórdão nº 205/99:
« É objecto do presente recurso de constitucionalidade o confronto de uma interpretação do artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal de 1982 com os artigos 29º, nºs 1 e 2 e 32º, nºs 1 e 4, da Constituição.
Consubstancia um tal confronto uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa para cujo conhecimento o Tribunal Constitucional tem competência ou estar-se-á, apenas, perante o pedido de apreciação de uma eventual contradição da decisão recorrida, na sua substância meramente decisória, com a Constituição?
Impõe-se o entendimento segundo o qual o Tribunal Constitucional se confronta, neste caso, com uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, apesar de tal questão resultar de o tribunal recorrido ter atingido um resultado interpretativo eventualmente proibido, em face das restrições interpretativas impostas pelo princípio da legalidade em direito penal.
Com efeito, várias razões intercedem a favor de que a questão colocada não pretende suscitar o mero controlo pelo Tribunal Constitucional da decisão recorrida.
Assim, desde logo, o recorrente não submete à apreciação do Tribunal Constitucional um processo interpretativo utilizado pontualmente na decisão recorrida, isto é, a inserção do caso concreto num âmbito normativo pré-determinado pelo julgador. Não é um tal momento de sotoposição do caso no quadro lógico decorrente da interpretação da norma o que verdadeiramente se questiona, mas antes um certo conteúdo interpretativo atribuído ao artigo 120º, nº 1, alínea a), o qual é identificado. Questiona-se, sem dúvida, se a fixação de sentido da norma, segundo a qual esta abrangerá, em geral, na interrupção da prescrição, a notificação ao arguido do despacho do Ministério Público para interrogatório no inquérito e a realização deste“ é uma interpretação normativa compatível com a Constituição, em face dos artigos 29º, nºs 1 e 3 e 32º, nºs 1 e
4. É, assim, o conteúdo final da interpretação, ou dito de outro modo, o resultado interpretativo pelo qual se atinge a norma que decide o caso, norma que eventualmente não tem competência constitucional para o decidir, que é submetido ao controlo de constitucionalidade.
A isto acresce que o referido conteúdo interpretativo não é apenas determinado pelo caso concreto, mas é referido com elevada abstracção, na base de uma linha jurisprudencial anterior que utilizou a mesma perspectiva interpretativa para casos idênticos.
Emerge, assim, claramente, de um momento interpretativo a questão de constitucionalidade. Não se trata de um momento meramente aplicativo da norma ao caso concreto, isto é, de uma situação em que o recorrente suscite apenas a correcção lógico-jurídica da inclusão do caso na norma. Trata-se, antes, da indicação, com suficiente autonomia, dos critérios jurídicos genérica e abstractamente referidos pelo julgador ao texto legal para decidir casos semelhantes. Neste caso, foi enunciada pelo julgador uma dimensão normativa que, segundo o recorrente, não corresponde fielmente às palavras do legislador, violando, por isso, o princípio da legalidade, sendo essa dimensão normativa que o recorrente pretende ver apreciada.
Ora, o Tribunal Constitucional não pode deixar de controlar dimensões normativas referidas pelo julgador a uma norma legal ainda que resultantes de uma aplicação analógica, em casos em que estejam constitucionalmente vedados certos modos de interpretação ou a analogia. O resultado do processo de interpretação ou criação normativa (tanto de meras dimensões normativas como de normas autónomas), ínsito na actividade interpretativa dos tribunais, não pode deixar de ser matéria de controlo de constitucionalidade pelos tribunais comuns e pelo Tribunal Constitucional, quando a própria Constituição exigir limites muito precisos a tais processos de interpretação ou criação normativa, não reconhecendo qualquer amplitude criativa ao julgador.
Questão afim da anterior é a de saber se o objecto do recurso é efectivamente o artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal ou antes uma norma construída pelo julgador através de um processo de integração de lacuna por analogia, nos termos do artigo 10º, nºs 1 e 2, do Código Civil. Note-se, porém, que em ambos os casos estaremos confrontados com uma norma cuja conformidade à Constituição é sindicável perante o Tribunal Constitucional. Na primeira hipótese, concluir-se-á que a aplicação analógica ainda constitui uma actividade interpretativa, em sentido amplo, dando como resultado uma certa dimensão normativa que pode contrariar normas ou princípios constitucionais. Na segunda hipótese, estará em causa uma norma não escrita igualmente susceptível de afrontar a Constituição quer quanto ao seu conteúdo quer quanto à sua génese (a circunstância de ser obtida mediante uma aplicação analógica vedada pelo artigo
29º, nºs 1 e 3, da Constituição feri-la-á de inconstitucionalidade material).
Todavia, esta questão acaba por ser de cunho puramente teorético na medida em que estará sempre em causa a questão de saber se é compatível com a Constituição a norma que determina a interrupção da prescrição obtida a partir do artigo
120º, nº 1, alínea a) do Código Penal. E, independentemente de estar em causa uma interpretação extensiva ou aplicação analógica desta norma legal, o que se pergunta é se a norma, dimensão, sentido ou interpretação obtidos contrariam ou não, na sua génese, o princípio da legalidade e, em concreto, a exigência de lex certa que lhe é ínsita».
Também este aresto não obteve unanimidade.
Com efeito, o Exmo. Conselheiro-Presidente manifestou opinião contrária à doutrina que obteve vencimento - em voto de vencido que juntou a este mesmo Acórdão nº 205/99 - tendo então considerado que se não deveria conhecer do recurso, «por entender que o seu objecto extravasa o âmbito da competência e do poder de cognição do Tribunal», e que a argumentação desenvolvida em contrário no acórdão não punha em crise a conclusão «de que, ao cabo e ao resto, já não está em causa, na situação, uma questão de inconstitucionalidade ‘normativa’ – tal como o não estava nos casos versados nos Acórdãos nº 682/95 e 221/95, os quais [...] não são ‘estruturalmente’ diferentes do ora em apreço».
Posição idêntica de afastamento relativamente a esta nova corrente jurisprudencial viria também posteriormente a ser manifestada pelo ora relator, através de declaração de voto aposta, por sua vez, ao mencionado Acórdão nº
285/99.
53. Acerca da questão em apreço, designadamente da eventual extensão do sistema de controlo da constitucionalidade às normas que se extraem da integração de lacunas, afirma Rui Medeiros (A Decisão de Inconstitucionalidade - Os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei, Universidade Católica Editora, Lisboa, 1999, págs. 340 a 342):
«A conclusão adoptada não significa, porém, que o Tribunal Constitucional possa fiscalizar a constitucionalidade, não já da norma determinada através do processo de integração de lacunas, mas antes do próprio processo de obtenção da regra aplicável. A questão ganha particular relevância nos domínios em que existe uma proibição constitucional de recurso à analogia. É o que sucede, concretamente, com o princípio constitucional da legalidade em matéria penal.
Há quem entenda que cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que, aplicando analogicamente uma norma incriminadora, violam o princípio constitucional da legalidade em matéria penal.
Não duvidamos que essa é a solução mais consentânea com a lógica do recurso de amparo ou da queixa constitucional. Mas, já o sabemos, o legislador constitucional português não quis introduzir um sistema semelhante ao da acção constitucional de defesa de direitos fundamentais. Ora, independente da questão de saber se a violação do nullum crimen sine lege stricta envolve ou não uma inconstitucionalidade directa, a verdade é que, quando invoca a proibição da analogia, o que o recorrente suscita é «a inconstitucionalidade do acto de julgamento e não a inconstitucionalidade de uma norma jurídica». Sem dúvida que, nos casos em que um tribunal interpreta uma lei em desconformidade com a Constituição, a inconstitucionalidade não pode apenas ser imputada ao legislador, pois, sendo possível atribuir à lei um sentido conforme com a Constituição, a disposição legal em si é válida. Mas, na hipótese aqui em apreciação, a inconstitucionalidade, ainda que se convole numa inconstitucionalidade material, reporta-se unicamente ao processo de integração de lacunas adoptado pelo tribunal. Ora, uma coisa é dizer que a norma que um tribunal extrai, ainda que por analogia, de um acto normativo pode ser fiscalizada pelo Tribunal Constitucional, outra, bem diferente, á afirmar que a própria decisão jurisdicional constitui um acto normativo sindicável pelo Tribunal Constitucional. De resto, se assim não fosse, «todas as decisões judiciais, enquanto tais, susceptíveis de fiscalização da constitucionalidade
(...). E assim se defraudaria a Constituição, que expressamente pretendeu que o controlo da constitucionalidade fosse um controlo eminente normativo.
Tudo somado, é possível concluir que, nos casos em que o próprio legislador pode (sem ofender a Constituição) estabelecer por via legislativa solução idêntica àquela que resultava da interpretação ou integração inconstitucional da lei realizada pelo tribunal a quo, o Tribunal Constitucional não pode conhecer do recurso».
É para a transcrita fundamentação lógica - válida necessariamente, tanto para as formas não admissíveis de interpretação extensiva, como para a interpretação analógica - que ora se remete, assim se confirmando a jurisprudência deste Tribunal seguida entre 1994 e 1998 e vertida nos arestos anteriormente citados.
..............................................................................................................................................................................................................
De todo o modo, mesmo que se entendesse que este Tribunal ainda era competente para conhecer das questões de inconstitucionalidade resultantes do facto de se ter procedido a uma constitucionalmente vedada integração analógica ou a uma «operação equivalente», designadamente a uma interpretação «baseada em raciocínios analógicos» (cfr. declaração de voto do Consº Sousa e Brito ao citado Acórdão nº 634/94, bem como o já mencionado Acórdão nº 205/99), o que sempre se terá por excluído é que o Tribunal Constitucional possa sindicar eventuais interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade.
Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a controlar, em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), já que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal). E, em boa verdade, por identidade lógica de raciocínio, o Tribunal Constitucional, por um ínvio caminho, teria que se confrontar com a necessidade de sindicar toda a actividade interpretativa das leis a que necessariamente se dedicam os tribunais – designadamente os tribunais supremos de cada uma das respectivas ordens -, uma vez que seria sempre possível atacar uma norma legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu
«sentido natural» (e qual é ele, em cada caso concreto?), com base em violação do princípio da separação de poderes, porque mero produto de criação judicial, em contradição com a vontade real do legislador; e, outrossim, sempre que uma tal interpretação atingisse norma sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República, ainda se poderia detectar cumulativamente, nessa mesma ordem de ideias, a existência de uma inconstitucionalidade orgânica.
Ora, um tal entendimento - alargando de tal forma o âmbito de competência do Tribunal Constitucional - deve ser repudiado, porque conflituaria com o sistema de fiscalização da constitucionalidade, tal como se encontra desenhado na Lei Fundamental, dado que esvaziaria praticamente de conteúdo a restrição dos recursos de constitucionalidade ao conhecimento das questões de inconstitucionalidade normativa. Assim, por exemplo, e no caso dos autos, para decidir a questão de inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional seria, em primeira linha, chamado a resolver as controvérsias doutrinais respeitantes à factualidade típica do crime de burla (cfr., verbi gratia, José de Sousa e Brito, A burla do artigo 451º do Código Penal – Tentativa de sistematização, Scientia Ivridica, Tomo XXXII, 1983, págs. 131 e segs.; e Maria Fernanda Palma e Rui Pereira, O Crime de Burla no Código Penal de 1982-95, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXV, 1994, págs. 321 e segs.).
.............................................................................................................................................................................................................’
6. Os considerandos transcritos, que o ora relator acolhe na sua integralidade, não podem, na sua óptica, ser postos em causa pela circunstância de, in casu, nos postarmos perante um recurso esteado na alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, isto é, numa situação em que ocorreu uma recusa de aplicação normativa fundada na sua inconstitucionalidade.
É que, em rectas contas, aquilo que o Juiz a quo, veio a considerar desarmónico com a Lei Fundamental foi uma interpretação dada a um dado conjunto normativo (interpretação essa já seguida pelos tribunais ou, ao menos, por alguns tribunais) e da qual resultava, ao fim e ao resto, um entendimento que extravasava o campo semântico natural dos conceitos jurídicos utilizados pelo legislador, o que, por consequenciar uma interpretação «extensiva» ou
«analógica», conflituaria com o princípio da legalidade criminal.
Ora, se assim é, então haverá que concluir-se que aquilo que, verdadeiramente, foi censurado por aquele Juiz foi, não o confronto directo com a Constituição por parte do conjunto normativo constituído pelos artigos 335º e
337º da versão originária do Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto-Lei nº 78/87, e da alínea d) do nº 1 do artº 120º do Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei nº 400/82, mas sim a determinação do âmbito aplicativo que a jurisprudência dos tribunais (ou de alguns tribunais) deu àquele mesmo conjunto normativo.
Pelo que, também aqui, se não colocará uma questão de inconstitucionalidade normativa.
7. Em face do exposto, opina-se pelo não conhecimento do objecto do vertente recurso.
Notifiquem-se as «partes» para, querendo, se pronunciarem em dez dias”.
2. Sobre o transcrito despacho pronunciou-se o Representante do Ministério Público junto deste Tribunal propugnando pelo conhecimento do mérito do recurso, na perspectiva de valorar face à Constituição
“o critério interpretativo geral adoptado explicitamente pela decisão recorrida”, já que, no vertente caso, nos situamos perante a “adopção, pela interpretação judicial dos preceitos a que se vem reportando o recurso, de um critério interpretativo de índole generalizante, expressamente formulado pela decisão recorrida como ‘actualístico’ e inovatório, cuja valoração por este Tribunal prescinde inteiramente da operação consistente em fixar qual o sentido exacto e adequado das normas constitucionais que o suportam”, pelo que a questão
é a de saber “se é compatível com os princípios da legalidade e da tipicidade penais a adopção explícita pelos tribunais judiciais de um critério interpretativo geral ‘actualista’ e ‘extensivo’ das causas de interrupção e suspensão da prescrição de procedimento criminal, através do qual se ultrapasse a manifesta inadequação das normas substantivas sobre tal instituto e da estrutura da tramitação do processo penal”.
E, para fundamentar uma tal posição, aquele Representante transcreveu aqueloutra que assumiu no processo deste Tribunal nº
140/2003, que para inteligência do presente aresto, se impõe que também aqui se transcreva nos seus relevantes passos.
É ela a seguinte:
“O recurso de constitucionalidade tem, no nosso ordenamento jurídico, carácter necessariamente normativo, devendo incidir sobre normas ou interpretações normativas, efectivamente aplicadas à dirimição d caso pela decisão recorrida. Não oferece qualquer dúvida a inidoneidade do objecto do recurso que verse, não sobre uma norma ‘objectivamente’ considerada, mas sobre uma específica interpretação jurisdicional de determinado preceito legal - claramente especificada e enunciada pelo recorrente - desde que a questão de constitucionalidade suscitada se prenda como critério normativo acolhido naquela decisão (e não com estrita operação de subsunção jurídica por esta realizada a propósito de um específico e particular caso concreto). Como dão nota os recorrentes, tem sido debatida na jurisprudência constitucional a questão que se traduz em determinar se deterá ainda natureza ‘normativa’ a impugnação - feita pelo recorrente - do ‘processo interpretativo’ que, em áreas constitucionalmente cobertas pelo princípio da legalidade (penal, fiscal), teria, em alegada violação de tal princípio, procedido a uma interpretação extensiva ou de cariz analógico dos conceitos legais, ampliando consequentemente o âmbito ‘normal’ ou ‘natural’ da aplicabilidade do tipo ou ‘fattispecie’ legal. No Acórdão nº 674/99, (in Diário da República, II Série, de 25 de Fevereiro de
2000, pág. 3856) procedeu-se a uma global apreciação da evolução da jurisprudência do Tribunal Constitucional, incidente sobre tal tema.
............................................................................................................................................................................................................................................ E o Acórdão nº 674/99 acaba por aderir - embora de modo não unânime - à tese sustentada por Rui Medeiros (A Decisão da Inconstitucionalidade, pág. 340/342) acerca da eventual extensão do sistema de controlo da constitucionalidade às normas que se extraem da integração de lacunas, em que se conclui que ‘nos casos em que o próprio legislador pode (sem ofender a Constituição) estabelecer por via legislativa solução idêntica àquela que resultava da interpretação ou integração inconstitucional da lei realizada pelo tribunal ‘a quo’, o Tribunal Constitucional não pode conhecer do recurso’.
É que - a não ser assim - afirma-se - acabaria por estar cometido ao Tribunal Constitucional o controlo da interpretação judicial de todas as normas situadas em áreas abrangidas pelo princípio da tipicidade, já que seria sempre possível atacar uma norma legislativa quando interpretada e aplicada de forma a exceder o seu ‘sentido natural’, confundindo e sobrepondo os planos de constitucionalidade normativa e da errónea interpretação do direito infraconstitucional.
No mesmo sentido, pode ver-se - em termos também não unânimes - o Acórdão nº 383/2000.
É possível identificar três posições, na jurisprudência actual deste Tribunal, sobre a questão enunciada. a)A posição, afirmada pelos Exmos. Conselheiros Presidente e Vice-Presidente nas declarações de voto formuladas nos Acórdãos nºs 205/99, 285/99 e 122/00, que se traduz em considerar que não cabe, em nenhuma circunstância, no âmbito do controlo normativo cometido ao Tribunal Constitucional a verificação da ocorrência de uma alegada interpretação ‘criativa’ ou ‘extensiva’ de uma norma penal, em invocada colisão com os princípios da legalidade e da tipicidade; b) A posição - de sentido exactamente oposto - sustentada pelos Exmos. Conselheiros Sousa Brito e Maria dos Prazeres Beleza, nas declarações de voto apendiculadas, respectivamente, aos Acórdãos nºs. 674/99 e 383/00 - considerando que detém o referido carácter ‘normativo' a averiguação da existência de uma violação dos princípios da tipicidade e da legalidade, já que tal equivaleria a apreciar da conformidade da norma penal concretamente interpretada e aplicada, com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua específica função de orientação de comportamentos, não revestindo, nesta óptica, tal situação diferença relevante relativamente ao normal e incontroverso controlo da constitucionalidade da interpretação de normas penais. c) Finalmente, a orientação que parece ser maioritária no Tribunal Constitucional - expressa na solução que fez vencimento, nomeadamente, nos Acórdãos nºs. 674/99, 383/00, 205/99, 285/99 e 122/00 - e que se traduz em proceder a uma distinção essencial: se a parte se limitar a pôr em crise o
‘processo interpretativo’ concreta ou pontualmente seguido pelo tribunal ‘a quo’ na fixação do sentido dos conceitos usados pelo legislador penal ‘maxime’ na definição dos elementos do tipo - sustentando que tal processo interpretativo implicou um alargamento ou extensão do âmbito ‘natural’ dos conceitos legais, traduzindo interpretação ‘criativa’ ou extensiva de normas penais materiais - não estará delineada, em termos bastantes, uma verdadeira questão de inconstitucionalidade ‘normativa’. Se, porém, a parte questionar um critério interpretativo de índole generalizante e explicitamente invocado pelo juiz ‘a quo’, em função do qual se alcançou a norma relevante para a dirimição do caso concreto - sendo tal conteúdo ou critério interpretativo autonomizado e claramente destacado das circunstâncias específicas e particulares do caso concreto, fazendo nomeadamente o juiz ‘a quo’ explícito apelo à utilização do critério normativo ‘inovador’ ou ‘criativo’, alegadamente violador do princípio da legalidade - e tratando o recorrente de o enunciar através de proposição formulada com ‘elevada abstração’ e vocação para uma aplicação de cariz generalizante - já se estará (na óptica de tal orientação da maioria do Tribunal Constitucional) perante uma questão susceptível de preencher o objecto de um recurso de constitucionalidade. Deste modo - ponderadas as soluções acolhidas, nomeadamente, nos citados Acórdãos nºs. 674/99, 205/99 in Boletim do Ministério da Justiça 486, pág. 51,
285/9) in Boletim do Ministério da Justiça 487) pág. 72, 122/00, in Boletim do Ministério da Justiça 494, pág. 57, 383/00, 190/01 in Diário da República, II Série, de 6 de Julho de 2001, pág. 11247, 363/01, in Diário da República, II Série, de 13 de Outubro de 2001, pág. 17097 e 483/02 - e na óptica da tese que vem sendo maioritariamente seguida na jurisprudência do Tribunal Constitucional
(vejam-se as declarações de voto constantes dos acórdãos citados) - importa proceder a uma distinção de que dependerá o carácter ‘normativo’ do objecto do recurso: assim, se a parte se limitar a pôr em crise o ‘processo interpretativo’ seguido pelo tribunal ‘a quo’ na fixação do sentido dos conceitos usados pelo legislador na definição dos elementos do tipo (em áreas submetidas ao referido princípio da legalidade) - sustentando que tal processo interpretativo implicou, na concreta subsunção realizada, de um alargamento ou extensão de tais conceitos legais, traduzindo a realização de interpretação extensiva ou de cariz analógico - não estará delineada uma verdadeira questão de inconstitucionalidade
‘normativa’. Já será, pelo contrário, admissível o recurso para o Tribunal Constitucional em duas outras situações: I) quando o recorrente questione directamente a constitucionalidade do
‘resultado interpretativo’ alcançado pelo tribunal ‘a quo’ - tomado em si mesmo, com total abstracção do ‘processo interpretativo’ da lei que ao mesmo conduziu - tratando-se, afinal de determinar se a eventual e hipotética consagração legislativa do regime jurídico em que se consubstancia tal
‘resultado interpretativo’ colide ou não com a Constituição por razões estranhas
à invocada violação dos princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade, ‘maxime’ do artigo 29°, n° 1, da Constituição da República Portuguesa (cfr. a situação debatida no Acórdão n° 483/02, em que o Tribunal Constitucional não conheceu da questão atinente a uma pretendida ‘violação do princípio da legalidade' na interpretação judicial da norma constante do n° 4 do artigo 118° da versão originária do Código Penal – apreciando, porém, a constitucionalidade do ‘resultado interpretativo’ alcançado, para efeitos de contagem do prazo prescricional, em sede de consumação do crime de propagação de doença contagiosa agravado pelo resultado, num caso em que se verificava uma pluralidade de ‘resultados agravativos’) ; II) quando o recorrente questione a constitucionalidade de um critério interpretativo de índole generalizante, explicitamente adoptado pelo tribunal recorrido através de enunciação de um conteúdo interpretativo autonomizado e destacado das circunstâncias específicas e particulares do caso concreto - ou seja, quando o juiz ‘a quo’ haja feito explícito apelo à utilização do critério normativo alegadamente violador do princípio da legalidade e o recorrente tenha curado de o enunciar através de proposição formulada com ‘elevada abstracção’ e vocação para uma aplicação de cariz generalizante – traduzindo, na fixação dos
‘pressupostos da interpretação final’ opção por critérios gerais normativos que se apresentem por tal sorte que deles decorra a ampliação do sentido da lei, por forma a criar uma norma que nela não tenha fundamento: assim nas hipóteses subjacentes aos Acórdãos 205/99, 285/99 e 122/00 - o tribunal ‘a quo’ tinha feito apelo expresso à realização de uma interpretação necessariamente actualista das normas do Código Penal de 1982 que regulavam o instituto da interrupção da prescrição do procedimento criminal, adequando-as à nova estrutura de tramitação do processo penal, ocorrida com a vigência do Código de Processo Penal de 1987, explicitando, deste modo, o critério normativo
‘genérico’ que subjazia à interpretação que realizou das normas questionadas - o que, desde logo, transcendia o puro plano de um ‘erróneo’ preenchimento, concretização ou subsunção de um tipo ou norma penal. Será, deste modo, admissível sindicar - na óptica de uma alegada violação do princípio da legalidade, proclamado pelo n° 1 do artigo 29° da Constituição - o critério interpretativo ‘extensivo’ ou ‘actualista', explicitamente formulado e invocado pela decisão recorrida; já não será possível sindicar o uso meramente implícito pelo juiz ‘a quo’ de um tal critério de interpretação do tipo - nomeadamente nos casos em que o tribunal ‘a quo’, sem assumir explicitamente a utilização de um tal critério interpretativo ‘extensivo’ ou de cariz analógico, haja, na concreta subsunção que realiza, extravazado - na óptica do recorrente - os limites consentidos pelo elemento literal do preceito interpretado. Qual a razão de ser desta distinção, assente, em última análise, na enunciação ou formulação expressa pela decisão recorrida de um critério interpretativo
‘extensivo’ ou inovatório do tipo em causa? Supomos que a razão de ser de tal dualidade de soluções assentará - não em quaisquer pressupostos situados no campo da metodologia jurídica - mas em considerações que - no plano da organização ou da arquitectura constitucional das competências dos tribunais - se fundam na repartição de competências entre o Tribunal Constitucional e as demais ordens jurisdicionais.
É que - a admitir-se que uma ‘norma’, extraída pelo julgador mediante um processo interpretativo, meramente implícito, de um preceito normativo deve, enquanto se prove o seu conteúdo inovador, de ‘norma nova’ - que extravaza o sentido possível dos elementos do tipo - ser objecto idóneo do controlo de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional - acabaria este Tribunal por
‘expropriar’ os tribunais que integram as restantes ordens jurisdicionais do seu poder - e competência - para interpretar as normas de direito infraconstitucional, passando sempre a competir ao Tribunal Constitucional a
‘última palavra’ acerca da interpretação correcta e adequada de todas as normas de direito ordinário vigentes em áreas sujeitas ao princípio da legalidade. Na verdade - e como é evidente - só é possível saber se estamos perante uma norma jurisprudencial ‘nova’ depois de o Tribunal Constitucional ter fixado qual o sentido ‘correcto’ dos conceitos usados pelo legislador infraconstitucional para descrever a ‘fattispecie’ normativa: ou seja, a
‘prova’ de que estaríamos perante um conteúdo normativo inovatório implicaria que - previamente a tal demonstração - o Tribunal Constitucional fixasse o preciso sentido ou significado do preceito que lhe serve de base ou suporte, determinando qual o bem ou interesse jurídico tutelado e qual o significado literal ‘máximo’ consentido por um tal preceito. Para saber se o sentido jurisprudencialmente alcançado pelo tribunal judicial tem, no preceito legal, um ‘mínimo de correspondência verbal’ teria o Tribunal Constitucional de fixar
- como verdadeira ‘questão prejudicial’ à dirimição da questão de constitucionalidade consistente na violação do n° 1 do artigo 29°- qual o sentido exacto e preciso de tal norma, acabando por esvaziar, na totalidade, a competência da ordem dos tribunais judiciais, no que concerne à interpretação do direito infraconstitucional vigente em qualquer área sujeita ao princípio da legalidade. Não se trata, neste caso, de - em situações pontuais ou excepcionais - o Tribunal Constitucional poder interpretar o direito infraconstitucional quando tal se revele indispensável à dirimição da questão de constitucionalidade suscitada: na verdade, a orientação atrás referida implicaria a afectação do
‘núcleo essencial’ de competência das restantes ordens jurisdicionais, a cujos Supremos Tribunais seria retirado o poder de fixar qual o sentido exacto de todos os preceitos legais vigentes em áreas cobertas pelo princípio da legalidade, passando tal tarefa a competir ao Tribunal Constitucional, como operação prévia indispensável para concluir pela existência ( ou não) de uma interpretação ‘criativa’ ou ampliativa, relativamente ao teor ‘exacto e correcto' dos preceitos infraconstitucionais aplicados. Como é evidente, este risco já não se verifica nos casos em que o Tribunal ‘a quo’ enunciou explicitamente - e aplicou a certo caso concreto - um critério interpretativo ‘criativo’ ou extensivo, de modo a transcender claramente o plano de uma errónea interpretação e subsunção dos factos à norma: para sindicar, na
óptica do princípio da legalidade, tal critério, já não carece obviamente o Tribunal Constitucional de proceder à prévia fixação do sentido ‘correcto’ da norma de direito infraconstitucional em causa, podendo dirigir o julgamento de inconstitucionalidade directamente ao critério interpretativo que o Tribunal ‘a quo’ tratou de autonomizar (relativamente à pura actividade subsuntiva que realizou aquando da aplicação da norma) e expressamente invocou e enunciou. Neste entendimento - que supomos estar subjacente à actual orientação maioritária da jurisprudência do Tribunal Constitucional - será possível a este Tribunal sindicar, na óptica do referido princípio da legalidade, o critério ou processo interpretativo seguido pela decisão impugnada, desde que - ela própria
- o formule e autonomize em termos de critério normativo ‘generalizante’, de modo a dispensar o Tribunal Constitucional da tarefa de previamente avaliar e
‘reconstruir' tal processo interpretativo através de uma preliminar interpretação - e definitiva fixação do sentido ‘exacto’ - de todos os preceitos de direito ordinário vigentes em domínios sujeitos ao princípio da tipicidade. Nos acórdãos atrás referenciados, em que o Tribunal Constitucional apreciou efectivamente a constitucionalidade de uma interpretação actualística e inovatória do artigo 120.° do Código Penal de 1982 destinada a adequar tal norma à nova estrutura procedimental do Código de Processo Penal de 1987- o próprio tribunal ‘a quo’ tinha explicitado e enunciado expressamente tal critério interpretativo, assumindo claramente a necessidade de proceder a uma interpretação ‘criativa’ e actualística da norma – podendo, consequentemente, sindicar-se tal critério normativo no plano da eventual violação do artigo
29.°, n.° 1, da Constituição, sem necessidade de previamente fixar o sentido
‘exacto’ do referido artigo 120.° do Código Penal, de modo a sindicar a subsunção efectuada pelos tribunais judiciais. No caso dos autos, não se vislumbra minimamente, na decisão recorrida, qualquer apelo a um critério interpretativo geral do tipo penal em causa, configurável como ‘inovatório’ ou ‘criativo’ em relação ao sentido possível, consentido pelo elemento literal - concluindo singelamente a decisão instrutória pela existência de ‘indícios’ suficientes dos factos constantes da acusação e pela subsunção de tais factos ao tipo penal do artigo 379.°, por se considerar que os factos indiciados preenchem de pleno a literalidade de tal norma ( cfr. fls.
386/387). Implica isto que - na hipótese dos autos - para apurar da alegada violação do princípio da legalidade teria este Tribunal - como operação preliminar - de começar por fixar o sentido exacto e preciso de todos os elementos integradores da ‘fattispecie’) normativa, só após tal operação lhe sendo naturalmente possível concluir pela existência ou inexistência de interpretação ‘criativa’ ou ‘extensiva’. Teria, pois, este Tribunal - para dirimir a questão de constitucionalidade colocada, na óptica do n.° 1 do artigo 29.° da Constituição da República Portuguesa que ‘expropriar’ a competência dos tribunais judiciais para fixarem o sentido do referido artigo 379.°- passando a sindicar, não um critério interpretativo genericamente proclamado pela decisão recorrida, mas a estrita e casuística subsunção dos factos indiciados àquele tipo. E, pelas razões apontadas, consideramos que tal tarefa excede manifestamente o âmbito do controlo normativo da constitucionalidade”.
Por seu turno, o arguido não efectuou qualquer pronúncia sobre o despacho lavrado em 15 de Maio de 2003.
Cumpre decidir.
3. Entende o Tribunal que, pelo que se contém no despacho exarado pelo relator, não deve, no caso em espécie, conhecer-se do objecto do recurso.
Essencialmente, e como deflui de tal despacho, a decisão em crise considerou ofensiva da Lei Fundamental determinada interpretação das normas ínsitas nos artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal (versão citada naquele mesmo despacho), em conjugação com o artº 120.º, n.º 1, alínea d) do Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82 (interpretação essa que teria sido tentada por alguns tribunais), já que a mesma teria sido alcançada por meio de um processo que conduziria a uma aplicação «extensiva», «analógica» ou «actualista» que, por força do princípio da legalidade penal, ultrapassava o campo semântico dos conceitos que o legislador utilizou ao redigir aqueles preceitos.
Mas, se isto é assim, então concluiu-se que é o próprio processo interpretativo que porventura teria sido levado a efeito pelas decisões dos tribunais que «tentaram» a dita interpretação que é o questionado pelo despacho ora recorrido. E, neste contexto, nenhuma diferença substancial se depara relativamente aos casos em que este Tribunal (embora não unanimemente) tem considerado como não podendo constituir uma questão de inconstitucionalidade normativa sobre a qual possam recair os seus poderes cognitivos e que têm tradução no já citado Acórdão n.º 674/99.
Termos em que se não conhece do objecto do recurso.
Sem custas, por não serem elas devidas.
Lisboa, 7 de Julho de 2003 Bravo Serra Gil Galvão Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, nos termos da declaração de voto junta)
Declaração de Voto
Votei vencida quanto à decisão de não conhecimento do objecto do recurso pelas razões constantes da declaração de voto que juntei ao Acórdão n.º
383/2000, para as quais remeto.
Ter-me-ia antes pronunciado no sentido da improcedência do recurso, por entender que a interpretação recusada pela decisão recorrida para “os artigos 335.º e 337.º do CPP/1987, conjugados com o artigo 120.º, n.º 1, al. d) do CP/1982” excedeu o sentido possível das palavras da lei, sendo assim de concluir pela violação do princípio da legalidade penal (n.ºs 1 e 3 do artigo
29.º da Constituição).
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Luís Nunes de Almeida