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Processo n.º 102/03
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A recorrente A., deduziu reclamação para a conferência, nos termos do n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), contra a decisão sumária do relator de não conhecimento do presente recurso.
1.1. Essa decisão sumária é do seguinte teor:
“1. A., interpôs, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), recurso, para este Tribunal Constitucional, do acórdão do Tribunal Central Administrativo, de 9 de Janeiro de 2003, que negou provimento a recurso jurisdicional por ela deduzido contra a sentença do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, de
6 de Agosto de 2002, que indeferira pedido de suspensão de eficácia da deliberação do Conselho de Administração do B., de 17 de Janeiro de 2002, que decidira a assinatura do contrato de concessão do serviço público de reboques e amarração do porto de Sines com a C.
No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade refere a recorrente:
«O presente recurso tem por objecto a questão da inconstitucionalidade do artigo 76.°, n.° 1, alínea c), conjugado com o artigo 25.°, ambos da LPTA, na interpretação que lhe foi dada no acórdão ora recorrido, o qual, nessa interpretação, viola o direito à tutela judicial efectiva da ora recorrente consagrado constitucionalmente nos artigos 268.°, n.° 4, e 20.° da Constituição, uma vez que lhe nega o direito de requerer a suspensão de eficácia de um acto daquela Administração portuária (B.) que decidiu outorgar às recorridas particulares um contrato administrativo em violação do seu direito à outorga do mesmo contrato.
A referida questão de inconstitucionalidade do artigo 76.°, n.° 1, alínea c), conjugado com o artigo 25.° da LPTA, na interpretação que lhe deu o acórdão recorrido, foi suscitada nas alegações do recurso interposto contra a sentença do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, o qual, em primeira instância e com os mesmos fundamentos de direito assentes na pretensa irrecorribilidade do acto, rejeitou o pedido de suspensão formulado pela ora recorrente.»
O Desembargador Relator do Tribunal Central Administrativo admitiu o recurso interposto, mas, como é sabido, tal decisão não vincula o Tribunal Constitucional (n.º 3 do artigo 76.º da LTC), e, no presente caso, entende-se que não há que conhecer do recurso.
2. O acórdão recorrido negou provimento ao recurso jurisdicional, desenvolvendo, para tanto, a seguinte fundamentação:
«A sentença recorrida indeferiu o pedido de suspensão, julgando inverificados os requisitos das alíneas a), b) e c) do n.° 1 do artigo 76.° da LPTA.
A aqui recorrente, nas suas conclusões a) a h), defende que a decisão suspendenda é lesiva e, portanto, passível de suspensão de eficácia.
A deliberação suspendenda foi tomada em 17 de Janeiro de 2002 pela autoridade requerida e decidiu a assinatura do contrato de concessão com a sociedade C..
Começando por analisar se se verifica o requisito da alínea c) do n.° 1 do artigo 76.° da LPTA, a sentença recorrida expendeu, nomeadamente, o seguinte sobre a deliberação suspendenda: “(...) nem consubstancia qualquer decisão relativamente à aqui requerente, limitando-se a tomar conhecimento de fax assinado pelos representantes do agrupamento em que estes informam que o contrato poderá ser assinado pela C. e tendo deliberado quem por parte da B. outorgaria nesse contrato.
Sendo por isso manifesto que esta deliberação constitui mero acto instrumental no procedimento de celebração do contrato, não produzindo quaisquer efeitos lesivos susceptíveis de afectar a esfera jurídica da requerente e consequentemente de lhe causar quaisquer prejuízos, e por isso ser insusceptível de impugnação contenciosa, nos termos do artigo 25.° da LPTA.
Por isso que, não sendo o acto recorrível, se mostre preenchido o pressuposto exceptivo da procedência da suspensão, por existirem indícios da ilegalidade de interposição do recurso contencioso de tal acto irrecorrível.”
O assim decidido não merece qualquer censura.
De facto, tal como bem se refere na sentença recorrida, a deliberação suspendenda é um mero acto instrumental no procedimento de celebração do contrato, estando desprovida de natureza vinculativa e de eficácia externa, pelo que não tem as características de acto administrativo como o define o artigo 120.° do CPA.
Assim, tal deliberação não assume autonomamente potencialidades lesivas de direitos ou interesses legalmente protegidos, pelo que, não sendo um acto contenciosamente recorrível, nos termos do disposto nos artigos 25.°, n.°
1, da LPTA e 268.°, n.° 4, da CRP, existem fortes indícios de ilegalidade na interposição do recurso contencioso de tal acto (alínea c) do n.° 1 do artigo
76.° da LPTA).
Refira-se que, ao contrário do que alega a recorrente, a sentença recorrida não se pronunciou sobre a eventual invalidade da deliberação aqui em causa.
O que disse, e bem, foi que tal deliberação, não sendo acto recorrível contenciosamente, era também insusceptível de suspensão de eficácia por inverificação do requisito da alínea c) do n.° 1 do artigo 76.° (cf. acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 16 de Maio de 1996, recurso n.º
40 324, e de 17 de Março de 1999, recurso n.º 44 661, entre muitos outros).
E esta interpretação pacífica na doutrina e na jurisprudência, designadamente do Tribunal Constitucional, daquele preceito (e do artigo 25.°, n.° 1, da LPTA), não viola o disposto no artigo 268.°, n.° 4, da CRP, antes se conformando com a sua previsão (cf. Santos Botelho, Contencioso Administrativo, 3.ª edição, Almedina, págs. 230 e 231, e autores e acórdãos aí citados).
Improcedem, portanto, as conclusões a) a h) das alegações.
Nas suas conclusões i) e j), a recorrente invoca que a deliberação suspendenda lhe causa prejuízos de difícil reparação, nomeadamente, na grave ofensa da sua imagem, perda de clientela e, ainda, “na perda de sinergias e racionalizações económicas”, todas insusceptíveis de serem contabilizadas e reparadas.
É desde logo de referir que a recorrente se limita nas presentes alegações de recurso a reafirmar o por si invocado sobre esta matéria no requerimento inicial, não imputando à sentença recorrida, que sobre a mesma detalhadamente se debruçou, qualquer vício ou erro.
Sobre o pressuposto da alínea a) do n.° 1 do artigo 76.° da LPTA refere nomeadamente a sentença recorrida sobre a invocada criação de má imagem e perda de clientela: “(...) Com efeito, tendo-se apresentado a concurso em agrupamento, o concurso foi-lhes adjudicado. E por isso que se não vislumbre como da suspensão de assinatura de contrato cujo concurso lhe foi adjudicado, lhe possam advir os invocados prejuízos. Ou que prejuízos pretenda acautelar com a suspensão da assinatura do contrato cujo objecto lhe foi adjudicado em agrupamento, como é que daí lhe advém má imagem ou perda de clientela, na medida em que foi oponente a concurso e o ganhou, nos moldes em que concorreu.”
E como também bem expendeu a sentença, a existirem prejuízos, estes resultarão, não do acto suspendendo, mas do diferendo não resolvido entre a recorrente e outras empresas do agrupamento em que se constituiu, ou seja, os eventuais prejuízos não resultam directa, imediata e necessariamente do acto cuja inexecução se pretende obter, pelo que não existe uma relação de causalidade adequada entre tais (eventuais) prejuízos e a deliberação impugnada (cf. acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 30 de Outubro de
1990, Acórdãos Doutrinais, n.º 350; de 19 de Março de 1992, Acórdãos Doutrinais, n.º 373; e de 7 de Outubro de 1993, recurso n.º 32 629).
Improcedem, assim, as conclusões i) e j) das alegações.
E também a conclusão k) das alegações não procede já que a recorrente se limita a alegar que da determinação da suspensão não resulta qualquer lesão, grave ou não, para o interesse público, quando a sentença recorrida também se pronunciou detalhadamente sobre este pressuposto (cf. fls.
380), concluindo, e bem, pela existência de prejuízo de difícil reparação para o interesse público caso se deferisse o pedido de suspensão.»
3. Como resulta da precedente transcrição, quer a sentença do Tribunal Administrativo de Círculo, quer o acórdão, ora recorrido, do Tribunal Central Administrativo, que a confirmou, fizeram assentar o indeferimento do pedido de suspensão de eficácia em três fundamentos autónomos – (i) existirem fortes indícios de ilegalidade na interposição do recurso, dada a irrecorribilidade contenciosa do acto em causa; (ii) não se verificarem prejuízos de difícil reparação para a requerente com a imediata execução do acto; e (iii) existir grave dano do interesse público caso se suspendesse a execução da deliberação –, sendo certo que bastaria a verificação de um deles para condenar a pretensão da recorrente. Ora, a questão de constitucionalidade suscitada pela recorrente respeita apenas ao primeiro fundamento do acórdão recorrido, pelo que, mesmo que fosse dada razão à recorrente e julgada inconstitucional a interpretação normativa imputada a esse acórdão, sempre persistiria a decisão de mérito neste contida, alicerçada nos dois restantes fundamentos, de todo alheios àquela questão de constitucionalidade.
Daqui resulta, inexoravelmente, a inutilidade do julgamento da questão de constitucionalidade suscitada nestes autos. Com efeito, como este Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recurso de constitucionalidade tem natureza instrumental, o que implica, como se sabe, que
é condição do conhecimento do respectivo objecto a possibilidade de repercussão do julgamento que nele vier a ser efectuado na decisão recorrida
(ver, entre muitos outros, o Acórdão n.º 463/94, no Diário da República, II Série, n.º 270, de 22 de Novembro de 1994, pág. 11 733), repercussão que, como se demonstrou, não é susceptível de ocorrer no presente caso.
4. Em face do exposto, e sem necessidade de mais considerações, decide-se, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não conhecer do recurso.”
1.2. Na sua reclamação, a recorrente começa por referir que:
“A douta decisão sumária em crise nos autos decidiu não tomar conhecimento do presente recurso, por entender que a deliberação suspendenda datada de dia 17 de Janeiro de 2002 pela qual a autoridade requerida decidiu a assinatura do contrato de concessão do serviço público de reboques a amarração no porto de Sines com a recorrida particular C. seria um mero acto instrumental no procedimento de celebração do contrato, estando desprovido de natureza vinculativa e de eficácia externa, pelo que não conteria em si próprio lesividade autónoma, mostrando-se por conseguinte irrecorrível.”
e depois desenvolve argumentação que sintetiza nas seguintes conclusões:
“a) A deliberação da B. em crise nos autos define autonomamente a situação subjectiva da ora recorrente, inviabilizando-lhe o exercício do seu direito à outorga do contrato de concessão, direito o qual se constituiu na sua esfera jurídica por força da adjudicação da proposta que foi por si subscrita e apresentada ao concurso para a atribuição da concessão do serviço público de reboques e amarração no porto de Sines; b) E por assim ser, é dotada de lesividade;
c) De facto é ela que consubstancia a deliberação da autoridade recorrida de outorgar o contrato de concessão do serviço público de reboques e amarração no porto de Sines a uma entidade na qual não participa a ora recorrente;
d) Tal decisão foi, pois, tomada em violação do direito de adjudicação da ora recorrente;
e) A consagração da tese agora contestada levaria à gravíssima consequência de deixar qualquer adjudicatário de um concurso público desprovido da possibilidade de defender judicialmente o seu direito à outorga do contrato – direito esse que decorresse da adjudicação –, deixando-o à mercê dos caprichos das autoridades adjudicantes;
f) A sustentação do agora repudiado raciocínio levaria a que a entidade adjudicatária ficasse impossibilitada de fazer valer o seu direito à outorga do contrato, permitindo, por sua vez, que um eventual concorrente preterido pudesse, nesse limite, ser chamado a outorgar o contrato em vez do adjudicatário, ficando este impossibilitado de reagir contenciosamente contra o acto lesivo;
g) Não se pode confundir lesividade com invalidade;
h) Com efeito, o reconhecimento da lesividade de uma decisão administrativa é independente da sua invalidade – veja-se, por exemplo, o caso paradigmático dos actos expropriatórios, os quais são claramente lesivos independentemente de serem válidos ou inválidos;
i) Assim, a determinação da lesividade invocada nos autos para efeito da recorribilidade da deliberação recorrida nada tem que ver com a sua invalidade, invalidade que não cabe discutir a propósito da recorribilidade do acto;
j) Não se deve confundir um acto administrativo de execução com um acto administrativo subsequente ou complementar de um acto anterior;
k) É que o acto de execução nada acrescenta ao acto executado, enquanto que o acto subsequente é praticado tendo como pressuposto um acto anterior, sendo, no entanto, ele próprio definidor de situações jurídicas autónomas em face daquele;
l) É precisamente este último o tipo que reveste o acto da B. em crise nos autos;
m) De facto, tal deliberação tem o acto de adjudicação do concurso como pressuposto, mas é relativamente a este autónomo, definindo situações jurídicas distintas das por aquela definidas;
n) Nesta medida não há qualquer dúvida de que é lesivo e deve, por consequência, ser objecto de impugnação e suspensão contenciosas;
o) Não se devem confundir os direitos da ora recorrente do foro privatístico a opor às recorridas particulares nos tribunais cíveis, com o direito à tutela do direito subjectivo público da ora recorrente em face da autoridade recorrida, consubstanciado no direito à outorga do contrato de concessão por causa da adjudicação de que foi destinatária;
p) São, com efeito, dois direitos distintos, os quais reclamam tutelas autónomas e separadas;
q) Na interpretação que deu aos artigos 76.°, n.° 1, alínea c), e
25.° da LPTA, estes preceitos devem ser considerados contrários ao disposto nos artigos 268.°, n.° 4, e 20.° da Constituição por lhe negarem o seu direito a uma tutela judicial efectiva;
r) Termos em que devem ser desaplicados nessa interpretação, considerando-se recorrível e, consequentemente, susceptível de ser objecto de suspensão de eficácia a deliberação da B. em crise nos autos.
Termos em que deverá ser julgada procedente a presente reclamação, prosseguindo o processo os seus ulteriores termos, com as consequências legais.”
1.3. Notificadas desta reclamação, as contra-interessadas C., D., e E., responderam, propugnando a confirmação da decisão reclamada, pelos fundamentos dela constantes. Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. A presente reclamação emerge de um equívoco por parte da recorrente: é que a decisão reclamada não diz o que a reclamante diz que ela diz. Como se referiu, a recorrente começa a sua reclamação por afirmar que a decisão sumária impugnada decidira não conhecer do presente recurso por entender que a deliberação cuja eficácia se pretendia suspender, atenta a sua natureza instrumental, não era contenciosamente recorrível, e depois consome a totalidade da sua reclamação a esgrimir contra essa pretensa concepção.
Simplesmente, em parte alguma da decisão sumária se afirma que a deliberação suspendenda não seria acto contenciosamente recorrível e que por isso se não conheceria do objecto do recurso de constitucionalidade.
O que na decisão sumária se afirmou foi que: (i) dependendo a concessão da suspensão de eficácia da verificação cumulativa dos três requisitos elencados nas três alíneas do n.º 1 do artigo 76.º da LPTA, basta a não verificação de qualquer um deles para a suspensão ser negada; (ii) no presente caso, o acórdão recorrido deu como não verificados nenhum desses três requisitos; (iii) respeitando o presente recurso de constitucionalidade apenas ao requisito da alínea c) do n.º 1 do citado artigo 76.º (não resultarem do processo fortes indícios da ilegalidade da interposição do recurso – no caso, por irrecorribilidade do acto cuja eficácia se pretendia suspender), o seu eventual provimento nunca seria susceptível de alterar o sentido da decisão impugnada, que sempre seria o de indeferimento da suspensão, embora então com a sua fundamentação limitada à não verificação dos dois restantes requisitos (a execução do acto causar provavelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente e não determinar a suspensão grave lesão do interesse público); (iv) desta constatação, conjugada com a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, deriva a inutilidade do conhecimento do objecto do presente recurso.
Na sua reclamação, a recorrente não ataca nenhum dos fundamentos da decisão sumária impugnada, fundamentos que se consideram válidos e que conduzem efectivamente ao não conhecimento do objecto do recurso.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação, confirmando a decisão reclamada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 20 de Maio de 2003.
Mário José de Araújo Torres (Relator)
Paulo Mota Pinto
Rui Moura Ramos