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Processo nº 427/03
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. - Nos presentes autos de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, instaurados ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, sendo recorrente A. e recorrido o Ministério Público, a fim de ser apreciada a constitucionalidade das interpretações alegadamente dadas pela decisão recorrida
às normas da alínea d) do nº 1 do artigo 192º do Código Penal e do nº 2 do artigo 283º do Código de Processo Penal, foi oportunamente, e nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da lei nº 28/82, proferida decisão sumária, do seguinte teor:
“1. - A., identificado nos autos, deduziu queixa-crime contra B. e C., também ali identificadas, imputando-lhes a prática de factos que, no seu entendimento, consubstanciavam a prática, pela primeira denunciada, de oito crimes de abuso de confiança e de um crime de devassa da vida privada, e, pela segunda, de um crime de devassa da vida privada, previstos e puníveis, respectivamente, pelos artigos
205º e 192º do Código Penal. Realizadas as diligências tidas por necessárias em sede de inquérito, o Ministério Público, por despacho de 13 de Março de 2002, concluindo que não foi praticado qualquer ilícito criminal, determinou o arquivamento do autos, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 277º do Código de Processo Penal.
2. - Inconformado com o despacho de arquivamento, o queixoso, que, entretanto, se constituiu assistente nos autos, requereu a abertura da instrução visando a pronúncia das denunciadas pela prática do crime de devassa da vida privada, previsto e punido pelo artigo 192º, nº1, alínea d) do Código Penal. Após realização do debate instrutório, veio a ser proferida, em 15 de Outubro de 2002, a decisão instrutória que, concluindo “que os indícios recolhidos não são suficientes para imputar a qualquer das arguidas a infracção em causa, por nem sequer se verificarem os elementos típicos que a mesma pressupõe”, não pronunciou as arguidas.
3. -Desta decisão interpôs o assistente recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, concluindo a sua motivação do seguinte modo: a) - As cartas que constituem o objecto dos crimes imputados às arguidas contém expressões reveladores do foro intimista do seu autor, bem como dos seus estados de espírito e convicções religiosas ; b) - A revelação do seu conteúdo carece de autorização prévia do seu autor, ou suprimento judicial se este negar tal autorização e(s) interessado(s) o requererem; c) - Suprimento cujos termos processuais se encontram especificados no Art.º 1425° e seguintes do Código de Processo Civil ; d) - Mostrando-se incompetente, em razão da matéria, o Tribunal onde tais cartas foram carreadas como prova; e) - O que, de resto, se mostra impugnado, por inadmissibilidade do meio de prova, no recurso interposto dessa Douta Decisão, a correr termos na 2ª secção deste Venerando Tribunal, sob o n.º 404/02 ; f) - Não podendo a arguida B. utilizar tais cartas para qualquer fim, directa ou indirectamente sem autorização do seu autor, o ora recorrente, ou suprimento judicial em processo adequado; g) - Muito menos a arguida C. que não era, claramente, a destinatária de tais cartas-missivas confidenciais por natureza ou, mesmo que assim não tivessem sido consideradas ainda assim não poderiam ser usadas por contrariarem a expectativa do seu autor (Art.º 78°, CC); h) - Incorrendo a arguida B. em oito crimes de ABUSO DE CONFIANÇA, previsto e punido no Art.º 205°, n.º 1, do Código Penal, e num crime de DEVASSA DA VIDA PRIVADA, previsto e punido no Art.º 192°, n.º 1, alínea d), do mesmo CP; i) - E a arguida C. num crime de DEVASSA DA VIDA PRIVADA, punido pelo
último normativo invocado na alínea anterior ; j) - A Douta Decisão Instrutória ora sob recurso viola assim as normas dos Art.º 70º, n.º 1, 75º, n.º 1, 76º. n.º 1, 78º e 80º, todos do Código Civil, do Art.º 1425° e seguintes do Código de Processo Civil, dos art.ºs 192°, n.º 1, alínea d) e 205°, n.º 1, do Código Penal, dos Art.º 308°, n.º 1, ex vi Art.º
126, n.º 3, estes do Código de Processo Penal e Art.º 20°, n.º 1 e 26°, n.º 1 e
2 da Constituição da República Portuguesa ; k) - Violação legal e constitucional que aqui expressamente se invoca para os legais efeitos; l) - Devendo, na perspectiva do recorrente, ser tal Decisão Instrutória ser revogada e substituída por outra que pronuncie as arguidas pelos supra invocados crimes ou os que melhor ciência adeque. O procurador-geral adjunto no Tribunal da Relação, na vista que teve dos autos, pronunciou-se pela improcedência do recurso, entendendo que o mesmo era manifestamente infundado, na parte que se refere ao crime de abuso de confiança, por o mesmo não ter sido objecto da instrução e, no restante, louvando-se na resposta do Ministério Público na 1ª instância, concluiu que a conduta das arguidas não assumia relevância penal, pugnando pela confirmação da decisão recorrida. Em resposta o assistente manifestou o seu desacordo, salientando que as cartas em causa eram “missivas confidenciais”, pelo que a sua utilização abusiva, além de imoral, “fere os direitos constitucionalmente consagrados do recorrente, o direito ao bom nome e reputação e à reserva da intimidade e da vida privada e familiar”.
4. - Por acórdão de 31 de Março de 2003, o Tribunal da Relação de Guimarães julgou improcedente o recurso, confirmando o despacho de não pronúncia, fundamentando-se, para tanto, no seguinte:
«A única questão a decidir é a de saber se os factos apurados são passíveis de integrar o crime de devassa da vida privada uma vez que, conforme muito bem refere o Exmo Procurador Geral Adjunto, o assistente, no requerimento de abertura da instrução, apenas a este crime alude, conformando-se, quanto ao crime de abuso de confiança, com a decisão que ordenou o arquivamento do processo. O art° 26° da C.R.P. consagra, imediatamente a seguir ao direito à vida e à integridade pessoal (respectivamente, art°s 24° e 25°), “outros direitos pessoais” integrantes da mesma categoria específica, de entre os quais se destaca o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, que se analisa principalmente em dois direitos menores: a) o direito de impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar; b) o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem.
“Alguns outros direitos fundamentais funcionam como garantia destes”, como é o caso do dever de reserva das cartas confidenciais e demais papéis pessoais - art°s75° a 78° do C. Civil. No caso em apreço, as cartas, cuja cópia consta de fls.20 a 42, foram enviadas pelo assistente à 1ª arguida e referem-se à intimidade da sua vida privada. Assim, é-lhes aplicável o disposto nos art°s 77° e 76° do Cód. Civil, isto é, não podem ser publicadas sem o consentimento do seu autor. Ora, o art° 192° do C.P. dispõe:
“1. Quem, sem o consentimento e com intenção de devassar a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual: a) Interceptar, gravar, registar, utilizar, transmitir ou divulgar conversa ou comunicação telefónica; b) Captar, fotografar, filmar, registar ou divulgar imagem das pessoas ou de objectos ou espaços íntimos; c) Observar ou escutar às ocultas pessoas que se encontrem em lugar privado; ou d) Divulgar factos relativos à vida privada ou a doença grave de outra pessoa;
É punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias.
2. O facto previsto na alínea d) do número anterior não é punível quando for praticado como meio adequado para realizar um interesse público legítimo e relevante”. Assim, no caso, são requisitos do crime de devassa da vida privada: a) que tenham sido divulgados factos relativos à vida privada de alguém; b) que essa divulgação tenha sido feita sem o consentimento desse alguém; c) que essa divulgação tenha sido feita com intenção de devassar a vida privada dessa pessoa, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual. Quanto aos dois primeiros requisitos, não há dúvida de que as cartas juntas ao processo divulgam factos da vida privada do assistente (também da 1ª arguida) e a sua junção foi feita sem o seu consentimento. Quanto ao último requisito - intenção de devassar a vida privada do assistente: Há que dizer, antes de mais, que estamos diante “de um daqueles crimes em que a lesão do bem jurídico só é punida enquanto consequência “de uma direcção da vontade hostil ao bem jurídico””, ou seja, exige-se um dolo específico, isto é, a intenção de devassar a vida privada de alguém. Note-se que a doutrina maioritária considera não ser punível o dolo eventual. No caso, é o próprio assistente que afirma que a junção das cartas foi feita pela arguida C. “na legal defesa deduzida” nos autos n.º 477/01, “para provar as imputações difamatórias” e “como meio de defesa em processo criminal em que era arguida a mãe da destinatária de tais cartas”. Por outro lado, da prova produzida, quer na fase de inquérito quer na fase de instrução, não foram apurados elementos que nos permitam concluir pela existência de indícios suficientes da actuação dolosa da arguida. Assim, quanto a este requisito, não existem quaisquer indícios de que as arguidas - a 1ª ao facultar as cartas à 2ª e estas ao juntá-las àqueles autos - tivessem agido com o propósito de devassar a vida privada do assistente. Note-se até que não é apenas a vida privada do assistente que é divulgada mas também a da 1ª arguida. Assim sendo e porque só se deve submeter alguém a julgamento quando haja forte probabilidade de vir a ser condenado, estabelecendo o n.º 2 do artigo 283° do C.P.P (integrado na doutrina e jurisprudência que era seguida na vigência do C.P.P de 1929) que os indícios são suficientes 'sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança' e porque no caso, não existem quaisquer indícios de que as arguidas tenham tido a intenção de devassar a vida privada do assistente, bem andou o Tribunal “a quo” ao não as pronunciar.»
5. - É, pois, deste aresto, que foi interposto pelo recorrente o presente recurso para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
- “O presente recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n° 1 do artº 70° da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro;
- Com vista à apreciação da inconstitucionalidade da interpretação dada
à alínea d) do n° 1 do artigo 192° do Código Penal, dado que tal como foi posterga o direito arrogado pelo ofendido e bem assim da descoberta da verdade material ;
- Tal norma, assim interpretada, viola o artigo 26° n° 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa ;
- Para apreciação ainda da inconstitucionalidade da interpretação dada aos factos eventualmente integrantes no n° 2 do artigo 283° do Código de Processo Penal, dada como foi no Douto Acórdão recorrido, já que, no seu modesto entendimento, a junção das cartas aos autos 'como meio de defesa em processo criminal em que era arguida a mãe da destinatária de tais cartas' sem o consentimento do seu autor, o ora recorrente, importava ter em consideração a particularidade da defesa aduzida no Proc. 477/01. Que foi claramente excessiva, por sempre poder ser suprida por outro tipo de prova, acrescendo que foram juntas por quem não era destinatário das mesmas, constituindo, assim, uma devassa da vida privada ;
- Entendendo-se, assim, que a interpretação em causa viola o artigo 20°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa ;
- A questão de inconstitucionalidade foi suscitada nos autos na alínea j) das conclusões do recurso apreciado no Venerando Acórdão em crise;”
6. - Não se encontrando o Tribunal Constitucional vinculado pela decisão que admitiu o recurso – n.º3 do artigo 76º da Lei n.º 28/82 – entende-se não poder conhecer do objecto do recurso, sendo caso de proferir decisão sumária, nos termos do n.º1 do artigo 78º-A do mesmo diploma.
7. - Com efeito, a admissibilidade do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, interposto ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, como é o caso, implica, para que possa ser admitido e conhecer-se do seu objecto, a congregação de vários pressupostos, entre os quais a aplicação pelo Tribunal recorrido, como sua ratio decidendi, de norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, considerada esta norma na sua totalidade, em determinado segmento ou segundo certa interpretação, mediatizada pela decisão recorrida. No exercício deste controlo normativo escapa à competência cogniscitiva do Tribunal Constitucional - de acordo com o nosso ordenamento jurídico - qualquer forma de fiscalização sempre que a questão de constitucionalidade seja dirigida à decisão judicial, em si mesma considerada. Assim, competindo ao recorrente o ónus de suscitação, deverá este cumpri-lo, referenciando-o normativamente, desse modo pondo em causa, por alegada violação de preceito ou de princípio constitucional, o critério jurídico utilizado na decisão ao aplicar a norma jurídica questionada.
8. - Ora, no caso dos autos, é manifesto que o recorrente não suscitou adequadamente durante o processo qualquer questão de constitucionalidade normativa, antes imputou à decisão, em si mesma considerada, a violação dos princípios constitucionais consagrados nos artigos 20º, nº1 e 26º, n.º 1 e 2, como sucedeu na conclusão j) das alegações de recurso, acima transcrita, onde o recorrente diz ter suscitado a “questão de constitucionalidade”. Ou seja, o recorrente não equacionou normativamente qualquer questão de constitucionalidade, desse modo pondo em causa, por alegada violação de preceito ou de princípio constitucional, o critério jurídico utilizado na decisão ao aplicar a norma jurídica questionada.
9. - Na verdade, o inconformismo do recorrente radica no facto de se ter entendido que a utilização dada às cartas em causa nos autos não integrava o tipo legal de crime previsto e punido no artigo 192º do Código Penal, por se ter concluído que faltava o elemento subjectivo deste tipo legal de crime, e que, assim, não havia “forte probabilidade” de as arguidas virem a ser condenadas, como resulta necessário do artigo 283º, nº2 do Código de Processo Penal, para se poder submeter alguém a julgamento. Saber se os factos integram ou não o tipo de ilícito em causa ou se constituem
“indícios suficientes” para os efeitos do artigo 283º do Código de Processo Penal, ou se a divulgação das cartas foi “claramente excessiva”, como o recorrente refere no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, para efeitos de se apurar se tal facto constitui o crime de devassa da vida privada, são questões que se reconduzem à discussão da própria decisão e dos seus fundamentos, a qual não pode ser reaberta em sede de recurso de constitucionalidade.
10. - Nestes termos, decide-se, ao abrigo do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso. Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 unidades de conta.”
2. - Notificado, veio o recorrente reclamar para a conferência, nos termos do nº 3 do artigo 78º-A citado, pedindo que, admitido o recurso, os autos prossigam seus trâmites normais, insistindo, para o efeito, na fundamentação anteriormente utilizado para os pontos 7 a 9 da decisão sumária, designadamente.
Por sua vez, o magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, em resposta, considera a reclamação manifestamente infundada, dado ser óbvio que o reclamante “não suscitou, em termos procedimentalmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade, idónea para suportar o recurso de fiscalização concreta interposto”.
3. - Não se vê razão válida para alterar o decidido sumariamente que, por esse motivo, se mantém, não tendo o reclamante logrado minimamente contrariar o decidido.
4. - Nestes termos, decide-se indeferir a reclamação deduzida, condenando-se o seu autor nas custas, com taxa de justiça que se fixa em 15 unidades de conta.
Lisboa, 24 de Setembro de 2003 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida