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Processo nº 571/03
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - A., identificado nos autos, após ser detido a 31 de Janeiro de 2003, foi interrogado judicialmente no dia imediato, nos termos do artigo 141º do Código de Processo Penal (CPP), no âmbito do processo de inquérito nº 1718/02.9, pelo magistrado do 1º Juízo de Instrução Criminal do Tribunal Judicial da comarca de Lisboa, o qual, na respectiva decisão considerou, além do mais, indiciarem os autos, “forte e suficientemente”, ter o mesmo cometido um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 172º, nº 1, do Código Penal (CP), bem como um crime de abuso sexual de crianças previsto e punido pelo artigo 172º, nºs. 1 e 2, do mesmo texto.
Na sequência, e por entender existir perigo de continuação de actividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, subsumível ao enquadramento previsto na alínea c) do artigo 204º do CPP, aquele magistrado impôs ao arguido, como medida de coacção, a prisão preventiva.
Requereu este último que, para organização da sua defesa, dado pretender recorrer da medida decretada, lhe fossem entregues cópias das peças processuais que identificou ou – então – que lhe fosse garantido o acesso às mesmas, ou a um extracto das mesmas, contendo a matéria relevante, o que, por despacho judicial de 6 de Fevereiro foi indeferido. Como se escreveu, na oportunidade, e em síntese, “[...] não se justifica, no caso concreto, levantar o segredo de justiça, pois que a sua manutenção em nada contende com os direitos da defesa do arguido de tal molde que os seus direitos constitucionais sejam afectados”.
O arguido reagiu às duas decisões, delas interpondo recurso, o mesmo tendo feito o Ministério Público no tocante à que ordenou a medida de coacção, por entender verificarem-se igualmente, no concreto caso, os requisitos gerais constantes das alíneas a) e b) do citado artigo 204º - respectivamente, a verificação da fuga ou perigo de fuga e do perigo de perturbação do decurso de inquérito no que respeita à aquisição, conservação ou veracidade da prova.
2.1. - O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 10 de Abril de 2003, pronunciou-se quanto à medida da prisão preventiva aplicada, mantendo-a e, desse modo, negando provimento ao recurso do arguido, concedendo, por sua vez, parcial provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, na medida que teve ainda por verificada a caracterização do requisito geral da alínea b), existindo, quanto ao arguido, “o perigo de continuação de actividade criminosa e o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, tudo em razão da natureza e circunstâncias do crime, bem como da personalidade do arguido e ainda o perigo de perturbação do decurso do processo, nomeadamente para a aquisição, conservação e veracidade da prova [...]”.
2.2. - Posteriormente, por acórdão de 16 de Maio, o Tribunal da Relação de Lisboa não conheceu do recurso interposto pelo arguido do despacho de
6 de Fevereiro, por inutilidade superveniente: ao decidir, perante a alegação de ilegal privação de acesso a provas e elementos do processo pedidos pela defesa, no sentido da inexistência de violação das garantias de defesa do arguido – nomeadamente para efeitos de preparação do recurso da decisão que aplicou a prisão preventiva –, o acórdão de 10 de Abril esgotou o poder jurisdicional.
3.1. - O arguido interpôs recurso para o Tribunal Constitucional deste acórdão de 10 de Abril, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo a apreciação da constitucionalidade da norma ínsita no nº 4 do artigo 141º do CPP, “por si só ou, de forma implícita, conjugadamente, entre outros, com os artigos 61º, nº 1, alínea b),
86º, nº 4 e 89º, nº 2, do CPP, interpretada no sentido de que os factos e elementos da prova posteriores ao despacho que ordena a prisão preventiva – os quais não foram, mesmo que de forma muito sumária, previamente expostos ao arguido – podem ser considerados em sede de recurso para justificar a prisão preventiva”, o que violaria o disposto nos artigos 20º e 28º, nº 1, da CR, bem como nos artigos 5º, nº 2, 6º, nºs. 1 e 3, alínea b), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH).
O Tribunal Constitucional por Acórdão de 12 de Junho
último – nº 296/03 – julgou extinto o recurso, por inutilidade superveniente, nos termos que nele constam nestes autos e aqui se têm por reproduzidos.
3.2. - O arguido interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão da Relação de Lisboa de 16 de Maio, ao abrigo da mesma alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
Em seu ponto de vista, o acórdão interpretou o artigo
666º, nºs. 1 e 3, do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por força do artigo 4º do CPP, “no sentido de que se esgota o poder jurisdicional do tribunal de recurso se, noutro recurso do mesmo processo, for proferido um acórdão – para mais não transitado em julgado – cuja fundamentação se pronuncie acerca da matéria que, não sendo objecto desse outro recurso, constitui o objecto do recurso ora em causa”.
A interpretação apontada violaria, em sua tese, “o princípio jurídico de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva consagrado no artigo 20º, nºs. 1, 4 e 5, da CRP”.
O Tribunal Constitucional, por decisão de 25 de Junho, transitada em julgada, não tomou conhecimento do recurso, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A daquela Lei nº 28/82, por não se verificarem os pressupostos do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade convocado: a Relação não perfilhou o critério eleito pelo recorrente para fundamentar o seu recurso, concluindo, assim, que a norma impugnada não foi aplicada na decisão recorrida com o sentido identificado pelo recorrente, sentido que ele entende estar em desconformidade com a Constituição.
4. - Aos 9 de Julho, o arguido requereu a providência de habeas corpus, fundada no artigo 222º, nº 2, alínea b), do CPP, invocando a ilegalidade da situação de prisão preventiva em que se encontra, pois entende consubstanciar-se abuso de poder, por erro grosseiro ou de excepcional gravidade na aplicação do direito, o que constitui “manifesto atentado ao direito à liberdade, que é subsumível à previsão do artigo 31º do CPP”.
O pedido formulado desdobra-se em duas questões, que tem por “fundamentais”:
“Questão A – Ao requerente não foram revelados os factos concretos que lhe são atribuídos e em que se funda a sua prisão, isto é, não sabe porque motivo concreto é que está preso; Questão B – Ao requerente não foi dado acesso aos meios de prova – ou a extracto da matéria relevante para o efeito do exercício da defesa – em que se funda tal prisão, isto é, está impedido de exercer cabalmente a sua defesa.”
No entender do arguido, a situação encerra clara violação das seguintes disposições legais:
a) dos artigos 20º, nº 4, 27º, nºs. 1 e 4, 28º, nº 1 e
32º, nº 1, da CR;
b) dos artigos 5º, nºs. 1, 2 e 4, e 6º, nºs. 1 e 3, alíneas a) e b), da CEDH;
c) dos artigos 61º, nº 1, alíneas b), f) e h), 86º, nº
5, 89º, nº 2, e 141º, nºs. 4 e 6, do CPP.
Postas em crise, na óptica do requerente, “as garantias do Direito Fundamental à Liberdade”, não deixa este de, concretamente, enunciar as interpretações possíveis que tem por inconstitucionais (a vingar a tese da violação garantística):
“Por um lado, o entendimento de que o arguido não tem direito, numa situação de prisão preventiva – antes que ela seja declarada ou enquanto for mantida –, a conhecer a factualidade concreta, que lhe permita conhecer as circunstâncias essenciais de tempo, lugar e modo daquilo que lhe é atribuído, e (ou) a ter acesso aos elementos de prova (ou, pelo menos, a extracto ou súmula do que for relevante) em que se funda tal prisão preventiva, por força do disposto no artº
86º nº 1 do C.P.P., devidamente conjugado com o artigo 89º nº 2 ou com quaisquer outros preceitos legais, é inconstitucional, por violação dos artºs. 27º nº 4,
28º nº 1 e 32º nº 1 da CRP. Por outro lado, o entendimento de que as situações abrangidas pelas QUESTÕES A e B ora em causa – isto é, a não revelação ao arguido da factualidade concreta que lhe é atribuída, bem como de um extracto ou súmula dos meios de prova relevantes, a facultar, desde logo, aquando do primeiro interrogatório do arguido que precede a decisão que determina a prisão preventiva – não são enquadráveis no âmbito do artº 222º nº 2-b) do C.P.P. é igualmente inconstitucional, por violação do artº 31º nº 1 da CRP. Tais juízos de inconstitucionalidade são reforçados quando o fundamento da decisão de não facultar tais elementos ao arguido se baseia na circunstância de ele ter negado a prática, em abstracto, do crime que lhe é imputado, bem como de meros factos gerais que são insusceptíveis de permitir a compreensão dos motivos concretos da prisão.”
5. - O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 16 de Julho de último, indeferiu a petição de habeas corpus com base em falta de fundamento bastante – alínea a) do nº 4 do artigo 223 do CPP.
Transcreve-se a parte do aresto mais significativa a esse respeito:
“Na aplicação destas disposições [refere-se ao artigo 222º, nºs. 1 e 2 do CPP, tendo presente o disposto nos artigos 31º, nº 1, e 32º, nº 1, da CR], o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a reafirmar que a providência de habeas corpus, enquanto medida excepcional e remédio de urgência perante ofensas graves à liberdade que se traduzam em abuso de poder, ou por serem ofensas sem lei ou por serem grosseiramente contra a lei, não constitui no sistema nacional (e nos modelos comparados) um recurso dos recursos e muito menos um recurso contra os recursos. A providência visa reagir, de modo imediato e urgente, contra a privação arbitrária da liberdade, ou contra a manutenção de uma situação de ofensa à liberdade manifestamente ilegal, consubstanciando um verdadeiro abuso de poder
– como se expressa na Constituição no artigo 31º. A primeira referência é, pois, o respeito da lei, no sentido de respeito pelas condições substantivas e processuais. Mas, no nível dos fundamentos da providência de habeas corpus, o que releva não são os juízos, verdadeiramente de julgamento de direito e de facto, quanto à interpretação e verificação dos pressupostos e condições da privação de liberdade, mas a imediata e directa, patente e grosseira contrariedade à lei. Por isso, a enunciação dos fundamentos da providência que o CPP indica, na identificação das causas que possam constituir abuso de poder, em desenvolvimento da projecção constitucional. Os fundamentos enunciados revelam que a ilegalidade da prisão que lhes está pressuposta, se deve configurar como violação directa e substancial e em contrariedade imediata e patente da lei: quer seja a incompetência para ordenar a prisão, a inadmissibilidade substantiva (facto que não admita a privação de liberdade), ou a directa, manifesta e auto-determinável insubsistência de pressupostos, produto de simples e clara verificação material (excesso de prazo). Deste controlo estão afastadas todas as condicionantes, procedimentos, avaliação prudencial segundo juízos de facto sobre a verificação de pressupostos, condições, intensidade e disponibilidade de utilização in concreto dos meios de impugnação judicial. Todas estas considerações relevam já dos procedimentos e não da substância, e são, ou podem ser, objecto do exercício do direito aos recursos ordinários previstos na lei de processo e colocados por esta à disposição dos interessados. Podendo ser objecto – dir-se-ia típico – de recurso ordinários, e tenham estes o efeito que tiverem, ou qualquer que seja a decisão que, em concreto, vier neles a ser proferida, as referidas questões procedimentais estão inteiramente fora dos âmbito dos pressupostos, nominados e em numerus clausus, da providência extraordinária. Aplicando ao caso, o requerente, com efeito, não invoca qualquer fundamento que tenha a ver com a substância imediata, ou com a contraditoriedade patente, directa, imediata e arbitrária da lei, mas apenas apresenta invocações mediatas
, resultantes de discordância de julgamento, e inteiramente idênticas aso fundamentos que invocou nos recursos ordinários que interpôs. Estes e a providência agora requerida têm, assim, uma identidade de objecto. Não invoca, pois, qualquer violação substancial, directa, patente e grosseira da Lei.”
6.1. - Inconformado, reagiu o arguido ao aresto do Supremo mediante a interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, do acórdão de
16 de Julho, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro.
Em seu critério, foram oportunamente arguidas as seguintes questões de constitucionalidade:
“Quando o art. 28º da CRP manda comunicar ao detido as causas que determinaram a detenção, dando-lhe oportunidade de defesa, quando o art. 27º nº 4 da Constituição diz que toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada de forma compreensível das razões da sua prisão, quando o art. 141º nº 4 do CPP estipula que o juiz informa o arguido dos motivos da detenção e lhe expõe os factos que lhe são imputados, é sempre aos factos concretos que integram o tipo legal do crime que o legislador se reporta, o que implica o conhecimento das circunstâncias que permitam (minimamente) identificar onde, como e quando tais factos foram praticados.
É este o sentido correcto dos preceitos legais em causa [os supra referidos artºs. 141º, nº 4, 86º, nº 1 e 5 e 89º, nº 2 do CPP – cfr. supra nºs. 104 a
106], devidamente interpretados à luz das garantias constitucionais e dos mais elementares direitos de defesa. Apesar da má lei que temos, é essa a única interpretação que respeita a Constituição (artºs. 27º, nº 4, 28º nº 1 e 32º nº 1), bem como a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artº 5º nºs. 2 e 4 e artº 6º nº 3, als. a) e b), que igualmente vincula o Estado Português, sendo certo que, quanto à C.E.D.H., tem sido essa a jurisprudência constante e pacífica do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Por cautela, deixam-se arguidas duas inconstitucionalidades relativas a eventuais interpretações que possam ser consideradas. Por um lado, o entendimento de que o arguido não tem direito, numa situação de prisão preventiva - antes que ela seja declarada ou enquanto for mantida –, a conhecer a factualidade concreta, que lhe permita conhecer as circunstâncias essenciais de tempo, lugar e modo daquilo que lhe é atribuído, e (ou) a ter acesso aos elementos de prova (ou, pelo menos a extracto ou súmula do que for relevante) em que se funda tal prisão preventiva, por força do disposto no art.
86º nº 1 do C.P.P., devidamente conjugado com o artº 89º nº 2 ou com quaisquer outros preceitos legais, é inconstitucional, por violação dos artºs. 27º nº 4,
28º nº 1 e 32º nº 1 da CRP. Por outro lado, o entendimento de que as situações abrangidas pelas questões A e B ora em causa – isto é, a não revelação ao arguido da factualidade concreta que lhe é atribuída, bem como de um extracto ou súmula dos meios de prova relevantes, a facultar, desde logo, aquando do primeiro interrogatório do arguido que precede a decisão que determina a prisão preventiva – não são enquadráveis no âmbito do artº 222º nº 2-b) do C.P.P. é igualmente inconstitucional, por violação do artº 31º nº 1 da CRP. Tais juízos de inconstitucionalidade são reforçados quando o fundamento da decisão de não facultar tais elementos ao arguido se baseia na circunstância de ele ter negado a prática, em abstracto, do crime que lhe é imputado, bem como de meros factos gerais que são insusceptíveis de permitir a compreensão dos motivos concretos da prisão.”
6.2. - O acórdão recorrido, ao decidir como decidiu, sustentou um entendimento sobre as questões A e B, anteriormente enunciadas, que o requerente pretende, agora, discutir.
No tocante à questão A, defende o recorrente que o entendimento do nº 4 do artigo 141º do CPP que o acórdão sustenta, no segmento que impõe ao juiz que comunique ao arguido os motivos da detenção e lhe exponha os factos que lhe são imputados, por si só ou conjugadamente com os artigos 86º, nºs. 1, 4 e 5, e 89º, nº 2, do CPP – no sentido de que é suficiente a comunicação de um mínimo de referência a um enquadramento de factos gerais, não sendo necessária a imputação da factualidade concreta punível –, de modo a não lhe ser permitido conhecer as circunstâncias essenciais de tempo, lugar, modo e objecto (quando fez, onde fez, como fez, com quem fez e a quem fez), é inconstitucional por ofensa ao artigo 28º, nº 1, da CR, bem como aos artigos
27º, nºs. 1 e 4, e 32º, nº 1, da CR, para além da violação dos artigos 5º, nºs.
2 e 4, e 6º, nº 3, alíneas a) e b) da CEDH.
Quanto à questão B, sustenta o recorrente que o entendimento dado pelo tribunal recorrido ao artigo 222º, nº 2, alínea b), do CPP, “no sentido de que está fora do âmbito da providência de habeas corpus a questão da informação ao arguido dos meios de prova relevantes (ou do extracto ou súmula dos mesmos) em que se funda a prisão preventiva, é inconstitucional, por violação do artigo 31º, nº 1, da CR, por si só ou conjugadamente com os preceitos referidos no antigo precedente” (questão A).
7. - O recurso foi admitido, por despacho do Conselheiro relator, de 22 de Julho, o que, no entanto, não vincula o Tribunal Constitucional – nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82.
Já neste Tribunal, proferiu-se, a 30 de Julho, despacho do seguinte teor:
“Notifique para alegações. Prazo de 10 dias, a correr em férias: artigos 79º, nº 2, e 43º, nº 5, da Lei do Tribunal Constitucional. Advirta-se, desde já, para a eventualidade de não se tomar conhecimento do objecto do recurso, relativamente à chamada questão A: na verdade, poderá entender-se que a mesma decorre lateralmente à problemática do habeas corpus, com ela não se imbricando, e, também, poderá considerar-se que a questão suscitada não corresponde à dimensão interpretativa das normas convocadas na aplicação feita no acórdão recorrido. De igual modo, é de ponderar, no tocante à chamada questão B, o eventual não conhecimento do objecto do recurso, se caracterizado como amparo e, como tal, subtraído ao poder de cognição do Tribunal Constitucional.”
8.1. - Alegou, na oportunidade, o recorrente.
Abordando a eventualidade da existência de questões prejudiciais, susceptíveis de obstaram ao conhecimento do objecto do recurso – na sequência do despacho citado – alinham-se as seguintes considerações:
“[...]
123. Quais são, então, as hipóteses teóricas que, em matéria de questões prejudiciais, o presente recurso pode eventualmente suscitar:
· Relativamente à chamada QUESTÃO A, poderá entender-se que a mesma decorre lateralmente à problemática do habeas corpus?
· Poderá considerar-se que a questão de inconstitucionalidade suscitada a tal propósito não corresponde à dimensão interpretativa das normas convocadas na aplicação feita no acórdão recorrido?
· Quanto à chamada QUESTÃO B, deverá ser a mesma ser considerada como amparo e, como tal, subtraída ao poder de cognição do Tribunal Constitucional?
124. Ressalvado o devido respeito, discutir se a denominada QUESTÃO A decorre lateralmente à problemática do habeas corpus talvez fizesse sentido no
âmbito do acórdão do STJ, mas não em sede de recurso de constitucionalidade.
É que o Supremo Tribunal já admitiu – num segmento da sua decisão que o Recorrente só tem de louvar - que a alegada ilegalidade – a existir – consubstanciaria um fundamento adequado de habeas corpus. E admitiu bem, pois seria chocante considerar que a não revelação ao arguido dos motivos da prisão não consubstanciaria prisão ilegal, por abuso de poder. Simplesmente tal problema está ultrapassado. Agora, o que se debate, em sede deste recurso, é a dimensão interpretativa dada pelo STJ ao art. 141.º n.º 4 do CPP, por si só ou conjugadamente com as regras que disciplinam o segredo de justiça. O Supremo Tribunal interpreta aquela(s) regra(s) no sentido de que é suficiente a comunicação ao arguido de um mínimo de referência a um enquadramento de factos gerais, não sendo necessária a imputação da factualidade concreta punível, o que, na óptica do Recorrente, é inconstitucional.
125. Por outro lado, a questão de inconstitucionalidade suscitada corresponde – com precisão e clareza – à dimensão interpretativa das normas convocadas na aplicação feita no acórdão recorrido. O STJ, no entendimento adoptado quanto ao art. 141.º n.º 4 do CPP, por si só ou conjugadamente com as regras que disciplinam o segredo de justiça, julga suficiente a participação de factos gerais que envolveriam a prática delituosa, quando, para o Recorrente, tal dimensão normativa – ao excluir a necessidade da imputação da factualidade concreta punível – é incompatível com princípios e normas constitucionais, maxime os arts. 27.º n.ºs 1 e 4, 28.º n.º 1 e 32.º n.º 1 da CRP. Nem se pode dizer que qualquer outra dimensão normativa resulta da circunstância de o Supremo Tribunal referir que “a ter-se entendido haver ausência, insuficiência ou imperfeição, por parte do juiz, no cumprimento do dever de comunicação e exposição, deveria tal irregularidade ter sido imediatamente suscitada”. Não se discute neste recurso se tal irregularidade – a bem dizer, nulidade, invocável até ao termo do debate instrutório (art. 120.º n.º 2 al. d) e n.º 3 al. c) do CPP) – deveria ou não ter sido suscitada, nem que consequências daí advêm. A questão do recurso é a de saber se é ou não compatível com a Constituição a interpretação feita pelo STJ dos segmentos das regras legais que, a nível da legislação processual, impõem a comunicação ao arguido dos motivos da sua prisão para que ele possa exercer a sua defesa.
126. Finalmente, a QUESTÃO B não está tratada como amparo . O Recorrente coloca-se estritamente no âmbito da dimensão normativa conferida pelo STJ ao art. 222.º n.º 2 al. b) do CPP. O Supremo Tribunal sustenta que a questão da informação ao arguido dos meios de prova em que se funda a prisão preventiva é meramente procedimental, estando fora do âmbito da providência de habeas corpus, como tal prevista no art. 222.º n.º 2 al. b) do CPP. Para o Recorrente “facto pelo qual a lei a não permite [a prisão]”, como previsto naquele preceito legal, não pode deixar de abranger o seu pressuposto fundamental de facultar ao arguido, não só o conhecimento do facto concerto punível, como também o extracto ou súmula dos meios de prova relevantes para a compreensão do motivo da prisão e para o exercício da defesa. E mais diz o Recorrente que entendimento distinto desse normativo é inconstitucional por violação do art. 31.º n.º 1 da CRP, pois tal omissão, constituindo um erro de excepcional gravidade na aplicação do direito, subsume-se a uma situação de abuso de poder, uma vez que põe em crise as garantias do Direito Fundamental à Liberdade. De resto, essa perspectiva impõe-se à luz da jurisprudência do TEDH na interpretação da CEDH, que vincula o Estado Português, bem como em função da história do direito português, onde, desde 1832 e até 1982, esteve expressamente consagrado como crime de prisão ilegal, por abuso de autoridade, a situação em que não eram revelados ao arguido meios de prova, designadamente as testemunhas, em que se fundava a prisão (cfr. supra n.ºs 86, 87 e 91). Em suma, o tema do recurso, nesta parte, é claramente o da dimensão normativa do art. 222.º n.º 2 al. b) do CPP, avaliada em função do art. 31.º n.º 1 da CRP, por si só ou conjugadamente com os preceitos dos arts. 27.º n.ºs 1 e 4, 28.º n.º
1 e 32.º n.º1 [...].”
No entendimento professado pelo recorrente “nada pode, nem deve, impedir o Tribunal Constitucional de julgar o presente recurso”.
8.2. - Retira-se do extenso quadro conclusivo que se desenvolve – que, porventura requereria sintetização a moldá-lo em conformidade com o disposto no nº 4 do artigo 690º do Código de Processo Civil, aplicável no caso – a pretensão da “declaração” da inconstitucionalidade das seguintes interpretações normativas:
“(i) Do entendimento que o acórdão recorrido faz do art. 141º nº 4 do C.P.P., no segmento que impõe ao juiz que comunique ao arguido os motivos da detenção e lhe exponha os factos que lhe são imputados, por si só ou conjugadamente com os arts. 86.º n.ºs 1, 4 e 5 e 89.º n.º 2 do C.P.P., no sentido de que é suficiente a comunicação de um mínimo de referência a um enquadramento de factos gerais – particularmente, bastando informar o arguido do universo geral das vítimas, dos limites espaciais e temporais da eventual prática delituosa (entre 1998 e
2003), da identificação típica dos elementos dos crimes (isto é, a norma legal incriminadora) e da identidade dos co-arguidos (sem qualquer relacionação concreta) –, não sendo necessária a imputação da factualidade concreta punível - que lhe permita conhecer as circunstâncias essenciais de tempo, lugar, modo e objecto (quando fez, onde fez, como fez, com quem fez e a quem fez) daquilo que lhe é atribuído -, por ofensa dos arts. 27º nºs 1 e 4, 28º nº 1 e 32º nº 1 da CRP, para além da violação dos arts. 5º nº 2 e 4 e 6º nº 3, alíneas a) e b) da C.E.D.H.
(ii) Do entendimento que a decisão recorrida faz do art. 222º nº 2-b) do C.P.P., no sentido de que está fora do âmbito da providência de habeas corpus, não consubstanciando uma situação de abuso de poder aí subsumível, a questão da total ausência de informação ao arguido dos meios de prova relevantes (ou de extracto ou súmula dos mesmos) em que se funda a prisão preventiva, por violação do art. 31º nº 1 da CRP, por si só ou conjugadamente com os artigos 27º n.ºs 1 e
4, 28º n.º 1 e 32º n.º 1 da C.R.P.”
8.3. - Por sua vez, o magistrado do Ministério Público contra-alegou, concluindo assim:
“1- A ‘ratio decidendi’ do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que rejeitou o pedido de ‘habeas corpus’ é apenas integrada pela aplicação normativa do artigo
222º, do Código de Processo Penal, enquanto norma delimitadora do âmbito de admissibilidade de tal procedimento em virtude de prisão ilegal – não podendo, deste modo, considerar-se aplicada pelo acórdão recorrida a norma constante do artigo 141º, nº 4, do Código de Processo Penal, invocada pelo recorrente.
2- E sendo, aliás, ostensivamente inútil a dirimição da questão de constitucionalidade por ele colocada quanto a tal norma, já que a decisão do Supremo sempre permaneceria intocada e imutável, com base no decidido acerca do elenco de matérias, taxativamente definidas e que constituem objecto idóneo da referida providência.
3- Não é inconstitucional a interpretação normativa do referido artigo 222º, nº
2, alínea b) do Código de Processo Penal que se traduz em restringir a admissibilidade da providência aos casos em que se invoca a inadmissibilidade substantiva da prisão preventiva, ditada com fundamento em se basear em facto que não admita a privação da liberdade, excluindo-se a controvérsia acerca da suficiência dos meios de prova revelados ao arguido como demonstração do facto criminoso que lhe é imputado.
4- E sendo naturalmente o exercício do direito de defesa, quanto a tal questão procedimental, plenamente assegurado através do pertinente recurso ordinário – que, aliás, o arguido interpôs – não havendo qualquer imposição constitucional de que o habeas corpus se deva configurar como um meio destinado a alterar ou fazer inflectir precedentes decisões proferidas no âmbito dos recursos interpostos pelo arguido.
5- Termos em que não deverá conhecer-se da questão colocada quanto ao artigo
141º, nº 4, do Código de Processo Penal; e julgar-se improcedente e suscitada quanto ao artigo 222º, nº 2, alínea b) do mesmo Código.”
II
1. - A Constituição da República, ao cuidar dos direitos, liberdades e garantias pessoais, consagra no nº 1 do seu artigo 31º, a providência de habeas corpus, a requerer perante o tribunal competente, contra o
“abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal”.
Concebido como “garantia privilegiada do direito à liberdade”, na expressão de Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 199), este meio de fazer cessar uma situação de ofensa ilegítima à liberdade pessoal é entendido como “remédio de urgência” e não propriamente como “recurso dos recursos”
(note-se que este Tribunal já considerou o habeas corpus como “providência de carácter excepcional destinada a proteger a liberdade individual nos casos em que não haja outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade” – Acórdão nº 370/2000, publicado no Diário da República, II Série, de
18 de Outubro de 2000).
A referida providência visa concretizar uma reacção imediata e urgente ao “abuso de poder” que o texto constitucional anatematizou, e que, na modelação legal, pressupõe objectivamente uma situação de ilegalidade de prisão, ou por esta ter sido ordenada por tribunal incompetente, ou por ter sido motivada por facto pelo qual a lei não a permita ou, ainda, por se manter para além dos prazos fixados legal ou judicialmente – cfr. as alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 222º do CPP, respectivamente.
2. - Discute-se se, no concreto caso, o parâmetro constitucional do artigo 31º, nº 1, foi respeitado pelo acórdão recorrido, ao indeferir a providência deduzida do habeas corpus por falta de fundamento bastante – alínea a) do nº 4 do artigo 223º do mesmo Código.
A respectiva fundamentação, e a metódica subjacente, levam a concluir que o acórdão seguiu a orientação jurisprudencial tradicionalmente firmada daquele Supremo Tribunal quanto à natureza da providência, abstractamente considerada, como meio processual que não se compadece com demoras escusadas sempre que se esteja perante a privação da liberdade de alguém em manifesta situação de ilegalidade, subsumível, no entanto, à moldura de uma violação directa e substancial, em contrariedade imediata e patente da lei: trata-se de incompetência para ordenar a prisão, ou da inadmissibilidade substantiva desta (facto que não admite a privação da liberdade), ou “a directa, manifesta ou autodeterminável insubsistência de pressupostos, produto de simples e clara verificação material (excesso de prazo)”.
O sentido decisório do acórdão, utilizando os seus próprios termos, afastou-se, assim, de “todos os conhecimentos, procedimentos, avaliação prudencial segundo juízos de facto sobre a verificação de pressupostos, condições, intensidade e disponibilidade de utilização in concreto dos meios de impugnação judicial”. Ora, observou-se ainda, no caso sub judice, não foram invocados fundamentos relacionados “com a substância imediata ou com a contraditoriedade patente, directa, imediata e arbitrária da lei”, limitando-se o recurso a “invocações mediatas, resultantes da discordância do julgamento”, em tudo idênticas aos fundamentos convocados nos recursos ordinários interpostos.
3. - Defende o recorrente que o acórdão entendeu o disposto no nº 4 do artigo 141º do CPP, no segmento que impõe ao juiz a comunicação ao arguido dos motivos da detenção e a exposição dos factos que lhe são imputados – por si só, ou conjugadamente com o disposto nos artigos 86º, nºs. 1, 4 e 5, e 84º, nº 2, do mesmo Código –, no sentido da suficiência da comunicação de um mínimo de referência a um enquadramento de factos gerais – “particularmente, bastando informar o arguido do universo geral das vítimas (no caso, alunos ou ex-alunos da B.), dos limites espaciais (haverá uma casa em ------------ relevante para o efeito) e temporais da eventual prática delituosa (entre 1998 e 2003), da identificação típica dos elementos dos crimes (isto é, a norma legal incriminadora) e da identidade dos co-arguidos (sem qualquer relacionação concreta)” – não sendo necessária a imputação da factualidade concreta punível –
“que lhe permite conhecer as circunstâncias essenciais de tempo, lugar, modo e objecto (quando fez, onde fez, como fez, com quem fez e a quem fez) daquilo que lhe é atribuído”.
Na tese do acórdão colhe-se que se considerou ter o arguido ficado a conhecer “minimamente o universo das pessoas envolvidas, os limites espaciais e temporais das imputadas práticas delituosas, a identificação típica dos elementos dos crimes e a identidade dos co-arguidos”, mínimo esse compaginável com as exigências da vertente interna do segredo de justiça.
De qualquer modo – mais se observou no referido acórdão – se o arguido discordou, na altura, desse critério avaliativo por considerar ter havido
“ausência, insuficiência ou imperfeição, por parte do juiz, no cumprimento do dever de comunicação e exposição”, cumpria-lhe suscitar de imediato essa
“irregularidade” que, a proceder, provocaria a realização ou renovação do acto, expurgado dos vícios ou defeitos que lhe aponta.
4. - Como quer que seja, ao indeferir a petição de habeas corpus com base em falta de fundamento bastante, o aresto recorrido arvorou a norma da alínea b) do nº 2 do artigo 222º do CPP – parametrizada pelo artigo
31º, nº 1, da CR – como sua ratio decidendi, e, a essa luz, a deduzida problemática decorrente do nº 4 do artigo 141º do CPP, por si só ou no seu encadeamento com os demais normativos processuais penais convocados, decorre lateralmente à verdadeira questão de constitucionalidade subjacente, configurando-se como inútil para a sua dirimição, recortando-se, na verdade, como meros obiter dicta.
Com efeito, a nuclearidade do acórdão assenta na interpretação e aplicação normativa do artigo 222º do CPP, enquanto norma delimitadora do objecto idóneo da providência de habeas corpus (como observa o Ministério Público).
Ao conceber esta medida como providência apta para, expeditamente, fazer cessar uma situação caracterizadamente abusiva, o acórdão entronca, de resto, na linha jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça que coloca o acento tónico na ocorrência de abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, conjugada na protecção constitucional do direito à liberdade, sendo exigível, no entanto, em caso de atentado ilegítimo, “grave e em princípio grosseiro e rapidamente verificável”, que integre uma das hipóteses de ilegalidade de detenção ou de prisão taxativamente indicadas “nas disposições legais que desenvolvem o preceito constitucional”, concretamente no elenco contemplado no nº 2 do artigo 222º do CPP (assim, por exemplo, os acórdão de 10 de Janeiro de 2002, 23 de Maio de mesmo ano e 26 de Junho de 2003, lavrados, respectivamente, nos processos nºs. 02P002, 02P023 e 03P2629, consultáveis em
www.dgsi.pt/jstj).
Como resulta destes arestos e agora se acentua, para que se desencadeie o exame da situação de detenção ou prisão nesta sede há que se deparar com abuso de poder, consubstanciador de atentado ilegítimo à liberdade individual – grave, repete-se, grosseiro e rapidamente verificável – que integra uma daquelas hipóteses, incluindo a obrigatoriedade de apontar os factos em que se apoia o pedido com necessária inclusão das referentes à componente subjectiva imputada à autoridade do magistrado envolvido.
É que, observou-se no acórdão do Supremo de 3 de Julho de 2001 (publicado na Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano IX, tomo II, págs. 241 e segs.), ao sublinhar o rigor na caracterização da providência sob pena de se comprometerem os seus fins específicos e relevantes: a “[a)usência de factos suficientemente reveladores dos aludidos riscos, erros de apreciação, deficiências de fundamentação ou preterição de suficiente contraditório que porventura tenham existido, não podem, na falta de elementos minimamente concludentes, levar a considerar verificada a invocada actuação por arbítrio, abuso de poder ou adulteração dos fins que tornassem a imposição da prisão preventiva manifestamente «ilegal» – passível, portanto, de lhe ser posto termo pela providência de habeas corpus – e não porventura somente «injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto» (art. 225º, nº 2)”
5. - Ora, se, por um lado, há toda uma conjugação normativa cujo controlo de constitucionalidade não deve constituir objecto deste recurso por inutilidade do seu conhecimento, por outro lado, importa considerar se a interpretação dada à norma central da fundamentação – a norma da alínea b) do nº
2 do artigo 222º do CPP – o foi de modo a que se possa concluir por um intolerável atentado, em Estado de Direito, à liberdade, como pretende o recorrente, gerando “uma clamorosa e evidente ilegalidade da prisão assim decretada”.
Entende-se que questões relacionadas com a verificação dos requisitos gerais das medidas de coacção privativas de liberdade são levadas ao crivo do habeas corpus quando, como decorre da sensibilidade jurisprudencial anteriormente mencionada, que se perfilha na sua essencialidade, a ilegalidade seja evidente e se case com a gravidade e o carácter grosseiro do erro – o que justifica a tramitação expedita da medida e a finalidade de assim se pôr termo à fonte da ilegalidade – sem que, no entanto, esse parâmetro objectivo abdique de um juízo que, como expressão garantística da medida da privação da liberdade, se não limite a ser simples afirmação de autoridade de quem decreta a prisão ou detenção mas vá mais longe, de modo a avaliar a correcção da autoridade que ordenou a medida de coacção privativa da liberdade.
Esse juízo sobre a racionalidade da imputação (como, em diferenciado contexto histórico e legislativo, se exprimiu Adriano Moreira – “A Jurisprudência do S.T.J., sobre Habeas Corpus”, in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano III, 1947/48, págs. 176/177) esteve presente na leitura que o acórdão recorrido fez da norma aplicada e não “fecha” – nos limites do concreto caso – a regra do secretismo interno do inquérito, de modo a proporcionar uma prestação de justiça “meramente formal”, que ao arguido dificulte o exercício adequado da sua defesa – como se temeu no Acórdão deste Tribunal nº 121/97, publicado no Diário da República, II Série, de 30 de Abril de 1997.
No concreto caso, o juízo formulado no acórdão recorrido mostra-se devidamente fundamentado na perspectiva jurídico-constitucional, que agora interessa, assim legitimando o poder jurisdicional que lhe está subjacente, quer ao descaracterizar a situação como de “clamorosa ilegalidade”, quer ao desconstruir uma qualquer dimensão de arbítrio.
E mantiveram-se, de resto, as “portas abertas” da lei: a via do recurso ordinário não deixou de ser utilizada, sendo esse o lugar próprio, na ponderação dos valores conflituantes, para convocar a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (cfr. Paulo Dá Mesquita, “o Segredo do inquérito penal – uma leitura jurídico-constitucional” in Direito e Justiça, vol. XIV, tomo 2, ano 2000, pág. 120).
III
Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) negar provimento ao recurso quanto à questão de constitucionalidade referente à norma da alínea b) do nº 2 do artigo 222º do Código de Processo Penal;
b) não tomar conhecimento do recurso quanto à questão de constitucionalidade referida à norma do nº 4 do artigo 141º do Código de Processo Penal, no segmento que impõe ao juiz que comunique ao arguido os motivos da detenção e lhe exponha os factos que lhe são imputados, por si só ou conjugadamente com os artigos 86º, nºs. 1, 4 e 5, e 89º, nº 1, do mesmo texto legal;
c) condenar o recorrente nas custas do processo, com taxa de justiça que se fixa em 15 unidades de conta.
Lisboa, 24 de Setembro de 2003
Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida