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Processo n.º 225/03
2ª Secção Relator -Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam em conferência no Tribunal Constitucional
1.Em 15 de Setembro de 2003 foi proferida nos presentes autos decisão sumária de não conhecimento do recurso interposto por A., melhor identificado nos autos. Tal decisão sumária teve o seguinte teor:
«I. Relatório
1. A. foi condenado pelo Tribunal Colectivo do Círculo Judicial de Faro, como autor material de um crime de maus tratos a cônjuges, na pena de dois anos e dois meses, e de um crime de violação, na pena de quatro anos de prisão, sendo-lhe aplicada uma pena única de cinco anos de prisão. Inconformado, recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, impugnando a matéria de facto, a medida da pena aplicada e a aplicação da Lei n.º 2/99. Por acórdão de 28 de Maio de 2002, este Tribunal decidiu conceder parcial provimento ao recurso, condenando o arguido pelo crime de maus tratos, previsto e punível pelo artigo 152º, n.º 2, do Código Penal, na pena de um ano e seis meses de prisão, com um ano de perdão desta pena, nos termos da Lei n.º 2/99, de
12 de Maio, e por crime de violação, previsto e punível pelo artigo 164º do mesmo Código, na pena de três meses de prisão, aplicando-lhe a pena única de três anos e dois meses de prisão, resultante do cúmulo jurídico destas penas.
2. O arguido recorreu então para o Supremo Tribunal de Justiça, impugnando a medida da pena única aplicada – que entendia dever ser fixada em três anos de prisão – e a sua não suspensão, sem fazer na respectiva motivação de recurso
(fls. 215 a 221 dos autos) referência a qualquer questão de constitucionalidade. Por acórdão de 7 de Novembro de 2002, o Supremo Tribunal de Justiça rejeitou o recurso, por manifestamente improcedente. Pode ler-se nesse aresto:
“(…) Fica, assim, em apreciação somente a questão da pena única fixada na 2ª Instância. Importa considerar aqui os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, no domínio da medida concreta da pena. Tem vindo este Supremo Tribunal de Justiça a entender que a escolha e a medida da pena, ou seja a determinação das consequências do facto punível, é levada a cabo pelo juiz conforme a sua natureza, gravidade e forma de execução, escolhendo uma das várias possibilidades legalmente previstas, traduzindo-se numa autêntica aplicação do direito sindicável pelos tribunais superiores. E que não oferece dúvidas de que é susceptível de revista a correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada (…). Dispõe o Código Penal:
«Artigo 77.° - Regras da punição do concurso
1. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
3. Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.
4. As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.» Como bem notou o recorrente, a moldura penal abstracta desenhada pelas penas parcelares, que ele aceita, situa-se entre 3 anos (a pena da violação) e 3 anos e 6 meses (a pena mais grave acrescida de 6 meses do remanescente da pena aplicada ao crime de maus tratos). E é dentro dessa moldura que deve ser encontrada a pena única a aplicar,
«considerando, em conjunto, os factos e a personalidade do agente». «Na verdade, o elemento aglutinador da pena aplicável aos vários crimes é, justamente, a personalidade do delinquente, a qual tem por força das coisas caracter unitário»
(Simas Santos e Leal Henriques, C. Penal Anotado, I, pág. 912)
É certo que, constituindo a pena mais grave o limite mínimo da moldura aplicável, pode ser a pena única fixada nesse valor, com diluição completa das restantes penas em acumulação. Mas então é necessário que o conjunto dos factos desenhem uma personalidade do arguido tão favorável que permita esse resultado. Ora, mesmo que se ultrapassasse os limites que vimos se colocam aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça nesta questão (uma diferença de 2 meses em 3 anos e 2 meses, não se pode considerar uma desproporção justificadora de uma intervenção), não seria esse o caso presente. Desde logo, parte dos elementos invocados pelo recorrente, como o seu comportamento posterior, a relação com os filhos, reinserção social não se revê na matéria de facto provada. Depois, não se vê qualquer circunstância atenuante que justifique a adopção desse mínimo, quando a personalidade do arguido, emerge do abuso do álcool, da reiteração violenta das condutas, e aponta claramente em sentido inverso. Aliás, o Tribunal Superior recorrido adoptou uma posição que a observação empírica aponta como comum à maioria dos Tribunais, incluindo este Supremo Tribunal de Justiça: adicionar à pena mais grave um terço do cômputo das restantes penas. Finalmente refira-se que o recorrente aceita (fls. 219) que, como se decidiu no acórdão recorrido, no crime de maus tratos a ilicitude se situa num grau médio e na violação num grau médio baixo, enquanto que a culpa é de grau médio quanto aos maus tratos e médio baixo quanto ao crime de violação. Ou seja, em nenhum dos crimes são baixas a ilicitude ou culpa, antes se situam num grau médio (com nuances), o que mina o bem fundado do pedido de redução da pena única. Não pode, pois, nem deve, censurar este Tribunal a medida da pena única fixada pela Relação.
2.7. E sendo assim, fica prejudicada a questão da suspensão da execução da pena. Como decidiu a Relação, a essa suspensão obsta no caso sujeito a medida concreta superior a 3 anos de prisão (cfr. art. 50.°, n.° 1 do C. Penal).
2.8. Deve considerar-se como manifestamente improcedente o recurso quando é clara a inviabilidade do recurso, como sucede, v.g., quando o recorrente pede a diminuição da pena ‘atendendo ao valor das atenuantes’ e não vem provada nenhuma circunstância atenuante; quando é pedida a produção de um efeito não permitido pela lei; quando toda a argumentação deduzida assenta num patente erro de qualificação jurídica; ou quando se pugna no recurso por uma solução contra jurisprudência fixada ou pacífica e uniforme do STJ e o recorrente não adianta nenhum argumento novo. Pode dizer-se que o recurso é manifestamente improcedente quando, no exame necessariamente perfunctório a que se procede no visto preliminar, se pode concluir, face à alegação do recorrente, à letra da lei e às posições jurisprudenciais sobre as questões suscitadas, que aquele recurso está votado ao insucesso, como acontece no presente recurso.”
3. Inconformado, o arguido veio arguir a nulidade deste acórdão por falta de fundamentação e omissão de pronúncia, dizendo, no que ora interessa:
“(…)
10. Quanto à primeira questão referida, da falta de pronúncia sobre o tempo decorrido desde a prática dos factos, deveria no modo de ver do Recorrente ter-se este Supremo Tribunal de Justiça pronunciado expressamente no sentido de apreciar e de decidir qual a sua relevância para efeitos de medida concreta e tipo da pena de prisão a aplicar, justificando a sua consideração, como se disse na motivação do Recurso, a redução da pena e a opção pela ‘pena suspensa’.
11. A este propósito, deve o Recorrente frisar, também, que entendimento diferente, no sentido de permitir ao Supremo Tribunal de Justiça omitir qualquer pronúncia sobre questão colocada no Recurso por a entender, porventura, de evidente irrelevância – O QUE NÃO É MANIFESTAMENTE O CASO EM APREÇO – não poderia deixar de ferir todas e cada uma das normas legais citadas (…), dos artigos 410°, 424°, 426°, 432° e 434° do Código de Processo Penal, de evidente inconstitucionalidade, por violação do direito ao recurso, consagrado no artigo
32°n.° 1 da Constituição da República Portuguesa, e do dever de fundamentação das decisões judiciais, consagrado no artigo 205°, igualmente da Lei Fundamental.
12. Quanto à segunda questão, da desconsideração das circunstâncias atinentes à personalidade do arguido invocadas na motivação do Recurso, entende o Recorrente que, nos termos do que preceituam os artigos 424°, n.° 2, e 426° do Código de Processo Penal, o Tribunal não poderia ter deixado ou de apreciar os factos ora invocados (cf. também o artigo 369°, para cuja regime o citado artigo 424° expressamente remete) ou, não o entendendo possível, de remeter o processo para o Tribunal da Relação ou para o Tribunal da 1ª Instancia, para que tais circunstâncias fossem devidamente confirmadas e consideradas na decisão em causa.
13. Com efeito, o que estava em causa não eram factos que devessem necessariamente encontrar-se plasmados na enumeração ou listagem da matéria de facto provada, mas antes circunstâncias que o Tribunal tem de equacionar obrigatoriamente e necessariamente após a fixação dos factos provados.
14. E só nesse momento, já que, atento o princípio da presunção da inocência, só então se pode concluir que o Arguido cometeu o crime (praticou os factos penalmente ilícitos) e imputar-lhe, por isso, responsabilidade penal.
15. Aliás, deve atentar-se que foi o próprio Tribunal da Relação que se referiu a estas circunstancias agora em causa, PARA ALÉM DA FACTUALIDADE DADA COMO PROVADA E DAS DEMAIS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO.
16. Acresce ser entendimento do Recorrente que tal decisão – de não considerar as circunstâncias atinentes à personalidade do arguido invocadas na motivação do Recurso por isso que elas se não encontram enumeradas na selecção da matéria de facto provada – é reveladora de que o douto Acórdão acolhe interpretação das normas citadas (…), dos artigos 410°, 424°, 426°, 432° e 434° do Código de Processo Penal, que limita os seus poderes de cognição, mesmo no que às circunstâncias relativas à personalidade do arguido se reporta, aos factos constantes da selecção da matéria de facto provada, ferindo tais normas igualmente de inconstitucionalidade por violação do princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32° n.° 2, da Constituição da República Portuguesa.
17. Finalmente, entende o Recorrente que este Supremo Tribunal cometeu, ainda, nulidade por falta de fundamentação do douto Acórdão, ao justificar a fixação da pena única feita pelo Tribunal Superior Recorrido no ‘costume dos Tribunais’,
18. Acolhendo e seguindo, desse modo, interpretação do artigo 374°, n.° 2, do Código de Processo Penal que o coloca em clara oposição com o artigo 203° da Constituição da República Portuguesa que, definindo a independência dos Tribunais, os sujeita à lei.” Por acórdão de 16 de Janeiro de 2003, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu desatender a arguição de nulidade, com a seguinte fundamentação:
“3.
É em relação a esse acórdão que [o requerente] vem arguir a nulidade, ‘por falta de fundamentação e por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379°, n.° 1, alíneas a) e c), aqui aplicável por força do disposto no n.° 4 do artigo 425°, ambos do Código de Processo Penal’. Mas uma leitura atenta e cuidada do aresto arguido e a consideração de algumas condicionantes processuais ter-lhe-iam evitado o estéril esforço desenvolvido. Não atentou o requerente que se titulou o n.° II do acórdão em causa, da seguinte forma ‘Fundamentos da decisão (art. 420°, n.° 3 do CPP)’. Dispõe-se nesse normativo: «3 – Em caso de rejeição do recurso, o acórdão limita-se a identificar o tribunal recorrido, o processo e os seus sujeitos e a especificar sumariamente os fundamentos da decisão.» Ora, o acórdão em causa foi efectivamente de rejeição do recurso. Assim, é-lhe aplicável aquela disposição e não a disciplina da fundamentação do art. 374° do CPP, como pretende o requerente. Mas apesar do comando daquele n.° 3 do art. 420°, o acórdão foi muito mais longe do que «especificar sumariamente os fundamentos da decisão» e o seu conteúdo satisfaria claramente à exigência do art. 374° referido. Com efeito, indicou a condenação em l.ª instancia (ponto 2.1), o acórdão da Relação (ponto 2.2.), as questões colocadas no recurso para este Supremo Tribunal de Justiça (ponto 2.3), os factos apurados pelas instâncias (ponto
2.4.), transcreveu as partes da decisão recorrida que foram objecto de impugnação (ponto 2.5). Esclareceu, ainda, os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, em recurso de revista, como é o caso, quanto à medida da pena (ponto 2.5.)
(problemática que o requerente prefere ignorar ou evitar); ponderou os normativos aplicáveis e, apesar de considerar que 2 meses numa pena de 3 anos e
2 meses de prisão, não seriam indicadores de desproporção capaz de desencadear a intervenção correctiva do STJ, afirmou fundadamente que, no caso, não merecia censura a decisão da Relação (ponto 2.6). Finalmente, considerou prejudicada a questão da suspensão da execução da pena, por ser esta superior a 3 anos de prisão (ponto 2. 7). Foi assim cumprido, de forma mais exigente do que o prescrito pela lei, o dever de fundamentar, pelo que não está presente a nulidade da al. a) do n.° 1 do art.
379° do CPP [é nula a sentença que não contiver as menções referidas no artigo
374°, n.°s 2 e 3, alínea b)].
4. Invoca também o requerente a omissão de pronúncia. Dispõe aquele art. 379° que é nula a sentença, quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar [n.° 1, al. c), 1ª parte]. Porém esquece o requerente que tal nulidade ocorre quando o tribunal omite pronúncia sobre questão que devesse apreciar, na expressão legal. O que é diverso de apreciar todos os argumentos invocados pelo interessado em defesa da sua tese, que se não confundem com questão. Assim tem decidido este Supremo Tribunal de Justiça, como se pode ver pelos seguintes sumários:
(…) Ora, como reconhece o requerente, o acórdão em causa conheceu da primeira das questões colocadas e não conheceu da segunda por ter ficado prejudicado esse conhecimento pela solução dada àquela. Deste modo, é irrelevante para a arguição da nulidade a indagação sobre o grau de apreciação de cada um dos argumentos esgrimidos pelo recorrente. Improcede, assim e também, a arguição de nulidade por omissão de pronúncia.
5. Face à ‘surpresa’ e ‘inconformismo’ do requerente manifestados na arguição, sempre se dirá que a observação empírica a que se fez referência nada tem a ver com o ‘costume’ desdenhosamente referido, mas se traduz no reconhecimento do valor, significado e conforto que as investigações empíricas proporcionam no universo da medida concreta da pena (…). E significa que a decisão da Relação era perfeitamente conforme com a prática comum dos tribunais, o que reforça o sentido do princípio da igualdade. O requerente não compreendeu ainda quais as limitações de um tribunal de revista, como o Supremo Tribunal de Justiça, na abordagem da questão da medida concreta da pena. Assim explicitar-se-á: Mostra se hoje afastada a concepção da medida da pena concreta, como a «arte de julgar»: um sistema de penas variadas e variáveis, com um acto de individualização judicial da sanção em que à lei cabia, no máximo, o papel de definir a espécie ou espécies de sanções aplicáveis ao facto e os limites dentro dos quais deveria actuar a plena discricionariedade judicial, em cujo processo de individualização interviriam, de resto, coeficientes de difícil ou impossível racionalização. De acordo com o disposto nos art.°s 70° a 82° do Código Penal a escolha e a medida da pena, ou seja, a determinação das consequências do facto punível é levada a cabo pelo juiz conforme a sua natureza, gravidade e forma de execução, escolhendo uma das várias possibilidades legalmente previstas traduzindo-se numa autêntica aplicação do direito. Não só o Código de Processo Penal regulou aquele procedimento, de algum modo autonomizando-o da determinação da culpabilidade
(cfr. arts. 369º a 371º), como o n.º 3 do art. 71º do Código Penal (…) dispõe que «na sentença devem ser expressamente referidos os fundamentos da medida da pena», alargando a sindicabilidade, tornando possível o controlo dos tribunais superiores sobre a decisão de determinação da medida da pena. Mas importa considerar os limites de controlabilidade da determinação da pena em recurso de revista, como é o caso. Não oferece dúvidas de que é susceptível de revista a correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação. Tendo sido posto em dúvida que a valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade caibam dentro dos poderes de cognição do tribunal de revista
(Cfr. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, § 82 II 3), deve entender se que a questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada
(…). Diga-se, ainda, que ao Supremo Tribunal de Justiça está vedado extrair conclusões ou ilações da matéria de facto estabelecida pelas instâncias, também elas matéria de facto (…). Finalmente, todas as restantes questões abordadas pelo requerente situam-se fora do horizonte desta arguição de nulidade, esgotado como se mostra o poder jurisdicional deste Supremo Tribunal de Justiça (n.° 1 do art. 666° do CPC, aplicável por força do art. 4° do CPP).
6. Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em desatender a arguição de nulidade.”
4. O arguido veio então interpor o presente recurso para o Tribunal Constitucional – que, em resposta a convite formulado no tribunal recorrido, depois esclareceu ser interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional –, com um requerimento onde se diz ser esse recurso interposto:
“Para ser declarada a inconstitucionalidade das normas dos artigos 410º, 424º,
426º, 432º e 434º do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido de permitir ao Supremo Tribunal de Justiça omitir pronúncia sobre questão colocada no Recurso por a entender irrelevante, por violação do direito ao recurso, consagrado no artigo 32º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, e do dever de fundamentação das decisões judiciais, consagrado no artigo 208º, igualmente da Lei Fundamental; e, ainda, por violação do principio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa – quando e na medida em que tal interpretação, como acontece nos doutos Acórdãos, é levada a limitar os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça mesmo no que se reporta às circunstâncias relativas
à personalidade do arguido. E para ser declarada, igualmente, a inconstitucionalidade da norma do artigo
374º n.º 2 do Código de Processo Penal, na interpretação, igualmente acolhida nos doutos Acórdãos, de que as decisões dos tribunais podem ser fundamentadas no
‘costume dos Tribunais’, por violação do artigo 206º da Constituição da República Portuguesa que, definindo a independência dos Tribunais, os sujeita à lei. As inconstitucionalidades em causa foram oportunamente invocadas pelo Recorrente na Arguição de Nulidades do douto Acórdão do Supremo Tribunal agora Recorrido, não o tendo sido antes por razoavelmente não poder antecipar a interpretação seguida das normas legais em causa antes citadas.” O recurso foi admitido por despacho de 19 de Fevereiro de 2003. II. Fundamentos
5. O presente recurso foi admitido no tribunal a quo, mas essa decisão não vincula este Tribunal, como prevê o n.º 3 do artigo 76º da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que, entendendo-se que não é de conhecer do recurso, se lavra a presente decisão sumária, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo
78º-A do mesmo diploma.
6. Na verdade, o presente recurso foi intentado ao abrigo do disposto no artigo
70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. Ora, como se sabe, no direito constitucional português vigente, apenas as normas são objecto de fiscalização de constitucionalidade concentrada em via de recurso (cfr., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/96, publicado no Diário da República [DR], II Série, de 15 de Maio de 1996, e J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 1998, p.
821), com exclusão dos actos de outra natureza (políticos, administrativos, ou judiciais em si mesmos). E, como também é sabido, para se poder conhecer do recurso de constitucionalidade interposto nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, torna-se necessário, a mais do esgotamento dos recursos ordinários e que a inconstitucionalidade normativa tenha sido suscitada durante o processo, que a norma ou dimensão normativa impugnada tenha sido aplicada, como ratio decidendi, pelo tribunal recorrido.
7. No presente caso, verifica-se, porém, que as dimensões normativas – as normas nas interpretações – impugnadas não foram aplicadas pela decisão recorrida, ou seja, no acórdão de 7 de Novembro de 2002, tal como ficou esclarecido no acórdão de 16 de Janeiro de 2003, que indeferiu a arguição da sua nulidade. Isto é claro, em primeiro lugar, para a interpretação das normas dos artigos
410º, 424º, 426º, 432º e 434º do Código de Processo Penal, no sentido de permitir ao Supremo Tribunal de Justiça omitir pronúncia sobre questão colocada no Recurso por a entender irrelevante. Como se pode ler no acórdão de 16 de Janeiro de 2003, e resulta do confronto com a fundamentação do acórdão então reclamado, este apreciou todas as questões sobre que tinha de se pronunciar: a relativa à medida da pena única aplicada ao arguido e a relativa à suspensão da pena (que considerou prejudicada). Como se esclareceu no acórdão que desatendeu a arguição de nulidade, tal nulidade só ocorre quando o tribunal omite pronúncia sobre questão que devesse apreciar, mas isto é ‘diverso de apreciar todos os argumentos invocados pelo interessado em defesa da sua tese, que se não confundem com questão’. Não foi, pois, aplicada nesse aresto, nem no acórdão de 16 de Janeiro do corrente ano, qualquer norma com o sentido de ‘permitir ao Supremo Tribunal de Justiça omitir pronúncia sobre questão colocada no Recurso por a entender irrelevante’. O que se entendeu foi que havia pronúncia sobre todas as questões colocadas – diversas de todos os argumentos invocados pelo recorrente –, e, portanto, que não havia qualquer omissão de pronúncia. Coisa diversa é, evidentemente, a discordância do recorrente em relação ao sentido com que se concluiu a apreciação dessas questões (analisando criticamente ou não todo e cada um dos argumentos apresentados pelo recorrente). Este sentido da pronúncia – que, sob a invocação da omissão de pronúncia, é o que se afigura estar em questão no presente recurso –, não pode, porém, ser sindicado pelo Tribunal Constitucional no presente recurso. Não pode, pois, tomar-se conhecimento do recurso quanto à referida interpretação, relativa à possibilidade de omissão de pronúncia.
8. Consultando a decisão recorrida e o acórdão que desatendeu a arguição da sua nulidade é, também, claro, que não foi nela aplicado o artigo 374º n.º 2 do Código de Processo Penal, na interpretação de que as decisões dos tribunais podem ser fundamentadas no “costume dos Tribunais”. Tal interpretação foi, aliás, expressa e concludentemente recusada no acórdão de
16 de Janeiro de 2003, dizendo-se que “a observação empírica a que se fez referência nada tem a ver com o ‘costume’ desdenhosamente referido, mas se traduz no reconhecimento do valor, significado e conforto que as investigações empíricas proporcionam no universo da medida concreta da pena”. Seja como for, e ainda que se entendesse que na frase que se contém a fls. 239 dos autos, na decisão recorrida – “Aliás, o Tribunal Superior recorrido adoptou uma posição que a observação empírica aponta como comum à maioria dos Tribunais, incluindo este Supremo Tribunal de Justiça: adicionar à pena mais grave um terço do cômputo das restantes penas” – contém uma remissão para o “costume dos tribunais” no sentido de fundamentar a decisão, o que não parece ser o caso, é certo que sempre se trataria aqui de mais um fundamento, que não exclui a existência de outros, só por si bastantes (cfr. fls. 238 e v. dos autos), para esse acórdão de Novembro de 2002 ter chegado à conclusão de que não devia censurar a medida da pena única fixada pelo Tribunal da Relação, fundamentos, esses, desde logo, relacionados com os elementos de facto existentes e relevantes para a medida da pena. Não pode, pois, dizer-se que o tribunal recorrido tenha aplicado, como sua ratio decidendi, uma qualquer norma com o sentido de que as decisões dos tribunais podem ser fundamentadas no ‘costume dos Tribunais’. E também não pode, pois, tomar-se conhecimento do recurso quanto a esta norma.”
2.Notificado desta decisão, o recorrente veio dela reclamar para a conferência ao abrigo do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, “pelos exactos fundamentos que invocou no requerimento de interposição de recurso”.
3.Em vista do processo, o Ministério Público junto do Tribunal Constitucional pronunciou-se pela improcedência da reclamação, “deduzida sem que o reclamante tenha cumprido o ónus de fundamentar as razões da dissidência quanto à decisão reclamada”. Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
4.A presente reclamação foi deduzida pelos mesmos “exactos fundamentos” invocados no requerimento de interposição de recurso, de uma decisão sumária de não conhecimento de recurso, fundamentada na falta de aplicação das dimensões normativas impugnadas pela decisão recorrida (o acórdão de 7 de Novembro de
2002).
O reclamante limita-se, pois, a remeter para os fundamentos do recurso, sem, todavia, adiantar o que quer que seja que possa infirmar o que, quanto à não verificação deste requisito do recurso interposto, se expõe na decisão reclamada
(n.ºs 7 e 8).
A fundamentação desta decisão – no sentido de não ter sido aplicada na decisão recorrida qualquer norma com o sentido de “permitir ao Supremo Tribunal de Justiça omitir pronúncia sobre questão colocada no Recurso por a entender irrelevante” (entendendo-se antes que havia pronúncia sobre todas as questões colocadas), ou com o sentido de que as decisões dos tribunais podem ser fundamentadas no “costume dos Tribunais” – mantém, pois, inteira validade.
A decisão sumária de não conhecimento do recurso deve, pois, ser confirmada, e a presente reclamação desatendida, por não se basear em quaisquer fundamentos que ponham em causa aquela decisão.
III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se desatender a presente reclamação e confirmar a decisão sumária de não conhecimento do recurso, bem como condenar o recorrente em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 15 de Outubro de
2003
Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos