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Proc. n.º 36/02
2ª Secção Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – O relatório
1. A Câmara Municipal de Guimarães veio, “ao abrigo da al. b), nº 1, do artº
70.º, da Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro”, interpor recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão n.º 57/2001, de 6 de Novembro de 2001, do Tribunal de Contas (Plenário da 1ª Secção), que “julgou improcedente o recurso para o Plenário, do douto acórdão nº 138/2001, de 10/07/01, da 1ª Secção mesmo Tribunal, que recusou o ‘visto’ ao contrato de empreitada para a execução da Escola ........., celebrado com a empresa A., com fundamento na aplicação do art.º 107.º, n.º 1, al. b), do Dec. Lei n.º 59/99, de 2 de Março, por ter considerado o valor de adjudicação ‘consideravelmente superior’ ao preço base, tendo para o efeito, considerado um preço que ultrapasse os 25% deste preço-base, com recurso ao limite estabelecido no art.º 45.º do referido Dec. Lei n.º 59/99”.
2. No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, diz a Câmara recorrente que pretende que se “aprecie a constitucionalidade daquela norma (art.º 107.º, n.º 1, al. b), do Dec. Lei n.º 59/99, de 2 de Março), quando interpretada, como o fez o Tribunal recorrido, no sentido de que a expressão que dela consta ‘consideravelmente superior’ não poderá exceder os 25% do valor do preço base do concurso, adoptando, deste modo, um valor fixo, sem atender às circunstâncias concretas do caso, por violação do princípio da proporcionalidade, consagrado no art.º 266.º, n.º 2 da C.R.P., conjugado com o princípio da autonomia do poder local e a limitação da tutela administrativa, consagrados nos art.os 237.º e 242.º do mesmo diploma fundamental, tal como consta da alegação apresentada pela ora recorrente no recurso da decisão constante do atrás mencionado Acórdão n.º 138/2001, do mesmo Tribunal de Contas”.
3. Nas suas alegações, a Câmara recorrente formulou as seguintes conclusões:
“1. Traduz um ‘conceito indeterminado’ a expressão ‘preço consideravelmente superior’, constante do art.º 107.º, n.º 1, al. b), do Decreto-Lei n.º 55/99, de
2 de Março (Lei das Empreitadas das Obras Públicas), pelo que
2. a interpretação dessa lei traduz-se numa actividade vinculada (e não discricionária), tendente a descobrir a vontade do legislador ou a vontade da lei ( cfr. Prof. Freitas do Amaral, em Direito Administrativo, Lições, Vol. II, pág. 284);
3. Assim, só o exercício casuístico da actividade interpretativa, com ponderação concreta de cada situação particular, nos termos do art.º 9.º do Código Civil
(se o legislador tivesse entendido que o valor da adjudicação não poderia ser superior a 25% do preço-base do concurso, tê-lo-ia dito expressamente como o fez no artigo 45.º do referido diploma), e tendo em atenção o interesse público, é que será legal;
4. Não o é a interpretação feita pelo Tribunal recorrido, estabelecendo o limite fixo de 25%, em todo e qualquer caso, com recurso ao limite estabelecido no art.º 45.º do mesmo diploma (‘trabalhos a mais’);
5. Assim, a douta decisão recorrida não interpreta a lei no sentido mais conforme à Constituição, violando o princípio da legalidade, ínsito no Estado de Direito Democrático, consagrado no art.º 2.º da C.R.P.
6. Para este efeito, há que também fazer apelo aos princípios informadores do interesse público, para aferir do controle da legalidade.
7. Assim, a referida interpretação viola o princípio da igualdade (art.º 13.º da C.R.P . ), pois dele decorre que devem tratar-se igualmente as situações iguais mas também tratar-se desigualmente as situações desiguais;
8. Ora, ao estabelecer-se um limite fixo de 25% sobre o preço-base do concurso, não se está a atender ao valor adequado ao caso concreto, de harmonia com as circunstâncias e condicionalismos da respectiva situação particular.
9. Por outro lado, é também violado, na aludida interpretação, o princípio da proporcionalidade, na vertente do princípio da justa medida ou da proporcionalidade em sentido estrito (art.º 18.º, n.º 2 e 3 da C.R.P.), uma vez que essa medida pode ser excessiva e desproporcionada para alcançar o fim pretendido que é o de evitar que haja uma desproporção entre o valor real e de mercado da obra e o preço da adjudicação (a percentagem de 25% tanto pode ser excessiva como insuficiente, tudo dependendo das circunstâncias concretas em causa).
10. Por outro lado ainda, ao interpretar e aplicar a lei nos termos rígidos em que o faz, recusando o ‘visto' ao contrato de empreitada dos autos, o Tribunal recorrido está a substituir-se à Administração, incidindo o respectivo controle sobre o mérito do acto administrativo que adjudicou a obra, nessa medida violando a autonomia do poder local e a limitação da tutela administrativa, consagrados, respectivamente, nos artigos 237.º e 242.º da C.R.P ., bem como o princípio da separação de poderes.
11. É, assim, inconstitucional, a norma do art.º 107.º, al. b), do Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março, quando interpretada, como o fez o douto acórdão recorrido, no sentido de que o preço de adjudicação não poderá exceder, em todo e qualquer caso, o limite de 25% sobre o preço base do concurso, com recurso ao limite estabelecido no art.º 45.º do mesmo diploma (‘obras a mais’)”.
4. O agora relator entendeu ser caso de não conhecimento do recurso e, por isso, ordenou a audição da recorrente nos termos do art.º 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (ex vi do art.º 69º da LTC), estribando aquele seu entendimento no seguinte parecer:
«É certo que o Acórdão recorrido afirmou que, em “várias decisões do tribunal” tem preenchido o conceito indeterminado “de preço consideravelmente superior ao preço base do concurso”, quer em relação a todas as propostas, quer mesmo em relação à mais conveniente, que consta da al. b) do n.º 1 do art.º 107.º do Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março, enquanto pressuposto do dever do dono da obra de não adjudicar a empreitada, mediante o recurso a um outro limite que está estabelecido na lei - no art.º 45.º do DL. n.º 59/99 para outros desvios admitidos, embora aqui sob um condicionamento rigoroso. São os casos, entre outros aí referidos, das obras a mais ou de alterações à obra adjudicada em que a lei estabeleceu como limite possível para o agravamento a percentagem de 25% sobre o valor do preço estabelecido para a empreitada.
Mas no Acórdão recorrido, o Tribunal de Contas não se quedou, pura e simplesmente, pela invocação dessa sua anterior jurisprudência, mas assentou a sua decisão em outros fundamentos. Diz ele o seguinte: «No caso dos autos, porém, o desvio em relação ao preço base é de mais de 40% pelo que, mesmo para o senso comum, estamos perante um preço consideravelmente superior.
E, assim, tendo em conta o carácter imperativo da sobredita alínea b) do n.º 1 do art.º 107.º do Dec.-Lei n.º 59/99, não pode deixar de concluir-se haver clara violação da norma financeira nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º 3 do art.º 44.º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto».
No caso sub judice, a decisão recorrida, de confirmação da recusa do visto, não derivou, pois, do entendimento segundo o qual o conceito indeterminado de “preço consideravelmente superior ao preço-base” constante do referido preceito da al. b) do n.º 1 do art.º 107.º do DL. n.º 59/99 deve ser aferido segundo os termos do art.º 45º do mesmo diploma, mas antes do critério de que o desvio em relação ao preço base era de mais de 40% e isso, mesmo para o senso comum, ser um preço consideravelmente superior.
Deste modo - e repetindo - a ratio decidendi não se consubstanciou na interpretação e aplicação do critério normativo de que deverá ter-se por preço consideravelmente superior, para os efeitos do art.º 107.º, n.º 1, al. b) do DL. n.º 59/99, aquele que excede a percentagem de 25% a que alude o art.º
45.º do mesmo diploma, mas num outro critério normativo que atende às circunstâncias específicas do caso - o de que havia um desvio de 40% em relação ao preço base e de este desvio ser consideravelmente superior mesmo à luz do senso comum. O critério aplicado como integrador do referido conceito indeterminado foi o do atendimento às circunstâncias específicas do caso, fazendo relevar o desvio de 40% em relação ao preço-base e o seu significado como consideravelmente superior mesmo à luz do senso comum. Ora, a recorrente sindicou constitucionalmente um critério normativo que não foi o que a decisão recorrida aplicou, acima precisado, pois o critério por ela impugnado perante este Tribunal foi o da norma em causa «quando interpretada... no sentido de que o preço de adjudicação não poderá exceder, em todo e qualquer caso, o limite de 25% sobre o preço base do concurso, com recurso ao limite estabelecido no art.º 45.º do mesmo diploma (“obras a mais”)» - conclusão 11.
Sendo assim falece o pressuposto do recurso que é exigido pela al. b) do nº 1 do art.º 70.º da LTC de que a decisão recorrida tenha feito uma efectiva aplicação da norma ou critério normativo que a recorrente sindica.
Nestes termos afigura-se ao relator que não se poderá tomar conhecimento do recurso por falta do referido requisito específico.
Destarte, e pelo exposto, decide-se ouvir a recorrente, por 10 dias, nos termos do art.º 3.º, n.º 3 do CPC».
4. A recorrente respondeu à questão prévia suscitada, pugnando pelo conhecimento do recurso.
Com esse sentido sustenta que o Acórdão n.º 138/2000, proferido em Subsecção da 1ª Secção, recusou o visto, pura e simplesmente, por haver considerado que “na falta de critério legalmente estabelecido que indique quando um preço deva ser qualificado como consideravelmente superior ao preço base, tem este Tribunal, socorrendo-se do disposto no art.º 45º do mesmo diploma, vindo a entender que tal sucede quando essa diferença ultrapassa 25%”.
“E foi exactamente por a decisão não invocar qualquer outro fundamento e muito menos apelar para qualquer ponderação das circunstâncias concretas do caso que a recorrente - continua ela a afirmar - recorreu para o Plenário da 1ª Secção, suscitando a inconstitucionalidade do art.º 107.º, n.º 1, al. b) do Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março, quando interpretado no sentido de que a expressão “consideravelmente superior” não pode exceder 25% do preço do valor base do concurso, invocando a violação do princípio da proporcionalidade consagrado no art.º 269.º, n.º 2 da CRP, conjugado com o princípio da autonomia consagrados nos art.os 237.º e 242.º da CRP”.
Mais diz a recorrente que “o acórdão do Plenário do Tribunal de Contas limitou-se a reiterar os fundamentos da decisão anteriormente tomada e, como não estava impedido de o fazer, usou alguns “considerandos”, designadamente, o que o de que “no caso dos autos, porém, o desvio em relação ao preço base é de mais de 40% pelo que, mesmo para o senso comum, estamos perante um preço consideravelmente superior”.
Todavia, na tese da recorrente, a utilização deste considerando não
«significa, salvo o devido respeito, que a ratio decidendi da decisão de recusa do “visto” anteriormente tomada pela Subsecção da 1ª secção do Tribunal de Contas se tenha consubstanciado no critério normativo que subjaz ao aludido considerando». Se assim fora, “o Plenário do Tribunal de Contas estaria a suscitar uma questão relevante para a concessão ou recusa do visto [....] e, consequentemente deveria nos termos do n.º 2 do art.º 100.º da Lei n.º 98/97, notificar a recorrente para se pronunciar”.
Como tal procedimento não foi desencadeado, conclui a recorrente que a ratio decidendi do acórdão ora recorrido se manteve a mesma do Acórdão n.º
138/2001 e é por isso que o Tribunal Constitucional deve conhecer da sua inconstitucionalidade.
B – A fundamentação
5. A questão decidenda
É a de saber se a norma cuja inconstitucionalidade a recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie – a correspondência entre o conceito normativo de preço consideravelmente superior ao preço base do concurso a que se refere o art.º 107.º, n.º 1, al. b) do DL. n.º 59/99, de 2 de Março e a diferença de mais de 25% a que alude o art.º 45.º do mesmo diploma - constituiu a essencial ratio decidendi do acórdão ora recorrido.
6. Do mérito do recurso.
Não se nega que o acórdão do Plenário do Tribunal de Contas procedeu
à ampliação dos fundamentos da decisão. Enquanto o acórdão da Subsecção da 1ª Secção do Tribunal de Contas se bastou com uma interpretação de correspondência entre o conceito normativo de preço “consideravelmente superior” ao preço base do concurso, a que se refere o art.º 107.º, n.º 1, al. b) do DL. n.º 59/99, de 2 de Março, e o conceito de diferença de mais de 25%, a que alude o art.º 45.º do mesmo diploma, e a consideração de que, no caso concreto, essa diferença era superior, o Plenário disse muito mais como razão para confirmar a decisão de recusa “do visto”. Argumenta a recorrente que a consubstanciar “este mais” uma
“questão” relevante para a concessão ou recusa do “visto”, ela lhe deveria ter sido notificada para se pronunciar. Só que, ainda que assim fosse, essa é uma questão relativa ao processo cujo conhecimento não cabe na competência deste Tribunal Constitucional e cuja oportunidade de adequada suscitação se poderá considerar esgotada. Ora, conhecendo do recurso, o Plenário do Tribunal de Contas disse, entre o mais:
[...]
“No preceito actualmente vigente está claramente afastada qualquer discricionariedade na decisão de adjudicar quando o preço oferecido seja consideravelmente superior ao preço base.
Como tem sido salientado em várias decisões deste Tribunal, a verosimilhança do preço base indicado nos concursos é um elemento de correcção do procedimento concursal sem o qual fica em crise a sua própria fidedignidade e até mesmo a realização do princípio da concorrência.
Na verdade, o preço base anunciado é um ponto fundamental da oferta que o dono da obra lança à concorrência.
Daí que os potenciais concorrentes devam poder confiar em que o valor da adjudicação não será muito diferente daquele que é anunciado.
E têm também de estar certos de que a obra lhes não será adjudicada se apenas puderem oferecer um preço excessivo quando comparado com o preço base anunciado.
Como resulta de várias decisões deste Tribunal, este preceito visa a realização da disciplina financeira pública - o que lhe confere natureza indiscutivelmente financeira - fazendo com que os custos das obras não excedam desmesuradamente quanto se encontra planeado e previsto pelos órgãos competentes das pessoas colectivas públicas.
Para o preenchimento desse conceito indeterminado - preço consideravelmente superior - tem vindo o Tribunal de Contas a socorrer-se de um outro limite estabelecido na lei - no art.º 45.º do Dec.-Lei n.º 59/59 - para outros desvios admitidos, embora aqui sob um condicionamento rigoroso.
No caso dos autos, porém, o desvio em relação ao preço base é de mais de 40% pelo que, mesmo para o senso comum, estamos perante um preço consideravelmente superior.
E, assim, tendo em conta o carácter imperativo da sobredita al. b) do n.º 1 do art.º 107.º do Dec.-Lei n.º 59/59, não pode deixar de concluir-se haver clara violação de norma financeira nos termos e para os efeitos da al. b) do n.º 3 do art.º 44.º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto”.
Ora, perante o discurso judicial transcrito, torna-se claro que, relativamente ao caso concreto apreciado, o que relevou como critério determinante da decisão foi o de que “o desvio em relação ao preço base é de mais de 40% pelo que, mesmo para o senso comum, estamos perante um preço consideravelmente superior”. A referência feita imediatamente antes aos precedentes do Tribunal de Contas relativos à interpretação da norma da al. b) do n.º 1 do art.º 107.º do Dec.-Lei n.º 59/59 tem, no discurso expendido, o sentido de dar apenas a conhecer esses precedentes ou essa história interpretativa, e nunca de enunciar o critério de decisão a seguir no caso concreto.
Assim sendo, temos de concluir que a recorrente sindicou constitucionalmente um critério que não foi o que o acórdão erigiu a essencial ratio decidendi para confirmar o anterior acórdão do Tribunal de Contas de recusa do “visto”.
Deste modo falece o pressuposto do recurso que é exigido pela al. b) do nº 1 do art.º 70.º da LTC de que a decisão recorrida tenha feito uma efectiva aplicação da norma ou critério normativo que a recorrente sindique.
Consequentemente não se pode tomar conhecimento do objecto do recurso.
C – A decisão
7. Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide
não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Sem custas. Lisboa, 26 de Maio de 2003~ Benjamim Rodrigues Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos