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Processo n.º 116/03
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A Inspecção Regional de Trabalho da Região Autónoma da Madeira aplicou a A. a coima de 480 000$00 por cada um dos três autos de notícia levantados, com fundamento em infracção do disposto no n.º 1 do artigo 95º da Lei do Contrato Individual de Trabalho, que proíbe os descontos na retribuição – descontos, estes, efectuados pela arguida com fundamentos em faltas injustificadas dos trabalhadores em causa, de acordo com o horário por ela pretendido –, e ordenou
à arguida a restituição aos trabalhadores dos montantes da retribuição e dos descontos para a Segurança Social. Segundo essa decisão administrativa, os trabalhadores em questão encontravam-se “a cumprir com a escala que já praticava[m] e que está visada pela Direcção Regional do Trabalho”, recusando-se
“a praticar um horário de trabalho unilateralmente imposto pela arguida, não tendo sido objecto do respectivo ‘visto’ por parte da Direcção Regional do Trabalho, pressupostos da sua validação para se considerar em conformidade com o disposto na Lei e no Instrumento de Regulamentação Colectiva aplicável (cfr. artigo 5º da Portaria n.º 174/87, de 31 de Dezembro de 1987)”.
Por sentença de 14 de Março de 2002, do Tribunal do Trabalho do Funchal, foi mantida esta decisão, tendo então a arguida recorrido para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Este Tribunal acordou, em 22 de Janeiro de 2003, conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida e absolver a arguida das coimas em que fora condenada, bem como da reposição da retribuição descontada aos trabalhadores e dos descontos para a Segurança Social. Pode ler-se neste acórdão:
“(…) No caso em análise, face aos elementos disponíveis, não é possível afirmar-se que o horário de trabalho dos trabalhadores a que aludem os autos de notícia tivesse sido individualmente contratado, nem existe qualquer cláusula da contratação colectiva aplicável que exija o acordo do trabalhador para a alteração do horário, pelo que a entidade patronal, dentro do seu poder de autoridade, podia alterar a escala dos trabalhadores referidos no auto de notícia. Consequentemente, os trabalhadores estavam obrigados a cumprir as novas escalas determinadas pela entidade patronal e a cumprir o horário de trabalho nelas estipulado. Os trabalhadores referidos no auto de notícia, porém, resolveram continuar a cumprir a escala anterior, faltando ao serviço nos dias designados pela nova escala, pelo que faltaram injustificadamente ao serviço, o que implicava a perda de retribuição desses dias de faltas injustificadas – art. 27°, n.° 1, da LCT. Contudo, a entidade autuante entende que a alteração do horário não era válida porquanto não tinha sido sujeita a aprovação prévia da Direcção Regional do Trabalho. Vejamos: Todas as alterações da organização dos tempos de trabalho devem ser, além do mais, afixadas na empresa com certa antecedência e comunicadas à Inspecção-Geral do Trabalho, nos termos previstos na lei para os mapas do horário de trabalho – al. c) do n.° 3 do art. 12 da LDT. E o art. 46°, n.° 1, do mesmo diploma estipula que ‘a entidade patronal remeterá cópia do mapa de horário de trabalho à Inspecção Geral do Trabalho com a antecedência mínima de 48 horas relativamente à sua entrada em vigor’. E o art. 47° do mesmo diploma, na redacção dada pela Lei n.º 65/77, de 6.2, diz que ‘a validade dos mapas de horário de trabalho depende da sua conformidade com as disposições aplicáveis em matéria de duração de trabalho e do cumprimento das formalidades estabelecidas neste capítulo‘. Na sua redacção originária este art. 47° prescrevia a obrigatoriedade de aprovação dos mapas. Mas essa ‘obrigatoriedade de aprovação dos mapas’ foi expressamente revogada pelo art. 2° da Lei n.º 65/77 que refere: ‘são revogadas todas as disposições legais que consagrem a necessidade da aprovação dos mapas de horário de trabalho ou sancionem a falta de cumprimento de tal exigência’. A razão de ser desta alteração legislativa está bem explicita no preâmbulo do diploma onde se diz:
‘Esta exigência revela-se hoje injustificada e desajustada em relação ao papel que o Estado deve assumir, estabelecendo o quadro legal que abstracta e genericamente delimite o poder de organização dos agentes económicos e fiscalizando o acatamento das regras e dos limites impostos. Para que este objectivo se atinja é desnecessária a aprovação dos mapas de horário de trabalho, sendo suficiente a remessa de uma cópia, para conhecimento,
à Administração. Naturalmente que esta não fica impedida de, no exercício da sua função orientadora, fazer as observações e recomendações que a análise dos mapas eventualmente suscite, bem como de prestar as informações e apoio técnico convenientes na elaboração dos mesmos. Simplesmente, a correcção material e formal dos mapas passa a ser da exclusiva competência das entidades patronais que os elaboram. Será, por isso, sancionada a afixação dos mapas de horário elaborados em desconformidade com a lei ou instrumento de regulamentação colectiva de trabalho aplicáveis e não mais a falta da sua aprovação.’ Foi, pois, revogada a necessidade de aprovação prévia dos mapas de horários de trabalho pela Inspecção-Geral do Trabalho, continuando, no entanto, a existir uma obrigação de comunicação desses mapas à IGT, que pode fiscalizar a sua conformidade com a lei ou com os instrumentos de regulamentação colectiva do trabalho, podendo sancionar a entidade patronal em caso de violação das disposições legais ou convencionais aplicáveis. Apesar disso, na Região Autónoma da Madeira, e já no domínio de aplicação da Lei
65/77, foi editada a Portaria n.° 174/87, de 31.12, que, no ser art. 5°, estabelece um regime de aprovação administrativa dos mapas de horário de trabalho que são visados pela Direcção Regional do Trabalho ficando o visto dependente da sua conformidade com a lei e os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho. Acontece que este regime de aprovação dos mapas de horários de trabalho contraria frontalmente o disposto na lei geral do trabalho, nomeadamente o disposto no art. 47° da LDT e a norma revogatória do art. 2° da Lei n.º 65/77, conforme se reconhece no Ac. do Tribunal Constitucional n.° 139/94 de 26.01.94, que inclusivamente declarou a inconstitucionalidade da referida Portaria, nos termos dos arts. 234° e 229°, alínea b), da Constituição – (cfr. BMJ n.° 433,
159). Assim, não é de aceitar o entendimento defendido pela Inspecção Regional da Madeira de que o ‘visto’ da Direcção Regional do Trabalho era um pressuposto da validade da alteração dos horários de trabalho (constantes da escalas) dos trabalhadores a que aludem os autos de notícia. Actualmente a validade do horário de trabalho, ou da sua alteração, não está dependente da ‘aprovação’ ou do ‘visto’ da Direcção Regional da Madeira, bastando a sua comunicação prévia, conforme resulta da conjugação dos arts. 12°, n.° 3, e 47° da LDT. Significa isto que a alteração dos horários (escalas) imposta pela arguida aos trabalhadores referidos nos autos de notícia não carecia da aprovação prévia da Direcção Regional do Trabalho da Madeira para ser válida e eficaz, razão pela qual os trabalhadores não podiam deixar de a acatar. Não tendo acatado tal alteração e faltando ao serviço nos dias indicados no auto de noticia, os trabalhadores em causa faltaram injustificadamente, sendo irrelevante que tivessem cumprido o horário antigo, porquanto esse já não estava em vigor. Em consequência, podia a arguida descontar-lhes a retribuição correspondente a esses dias, visto que a mesma não era devida. Não praticou, pois, a arguida a infracção que lhe foi imputada nos autos de notícia – violação do art. 95°, n.° 1, do LCT. Razão pela qual não pode deixar de ser absolvida.”
2.Notificado da sentença, o Ministério Público veio, ao abrigo do disposto nos artigos 70º, n.º 1, al. a), e 72º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, interpor o presente recurso de constitucionalidade, por entender que “não foi, de modo implícito, aplicada no douto Acórdão recorrido a Portaria n.º 174/87, de
31 de Dezembro, emanada do Governo Regional da Madeira”, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
3.Nas alegações que produziu no Tribunal Constitucional, o Ministério Público concluiu da seguinte forma:
“1 – As normas constantes da Portaria n.º 174/87, de 31 de Dezembro, que estabelecem a necessidade de, como condição da respectiva eficácia na Região Autónoma da Madeira, os mapas de horário de trabalho serem visados pela Direcção Regional do Trabalho (artigos 1º, n.º 1, 5º, 6º e 7º) são inconstitucionais, por violação dos artigos 229º, alíneas a) e b), e 234º da Constituição, na versão de
1982.
3 – Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado na decisão recorrida.”
A sociedade recorrida não apresentou quaisquer alegações.
Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
4.O presente recurso de constitucionalidade, interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, tem por objecto a apreciação da constitucionalidade das normas constantes da Portaria n.º 174/87, de 31 de Dezembro.
Está, porém, em causa apenas a norma do artigo 5º, n.º 1, desta Portaria, pois apenas a sua aplicação foi recusada na decisão recorrida, invocando para tanto, como fundamento, o que se decidiu no Acórdão deste Tribunal n.º 139/94
(publicado no Diário da República, II série, de 11 de Fevereiro de 1995).
5.Recorde-se o que, para chegar a uma conclusão no sentido da inconstitucionalidade, se disse a propósito da norma em questão neste Acórdão n.º 139/94:
“(…)
5. A matéria do horário de trabalho acha-se regulamentada pelo Decreto-Lei n.º
409/71, de 27 de Setembro [alterado, primeiro, pelo Decreto-Lei n.º 65/87, de 6 de Fevereiro (os artigos 46º e 47º) e, depois, pelo Decreto-Lei n.º 398/91, de
16 de Outubro (os artigos 5º, 13º, 27º, 36º, 37º e 38º); e revogado parcialmente
(os artigos 16º a 24º, 41º e 42º) pelo Decreto-Lei n.º 421/83, de 2 de Dezembro)] e pela Lei n.º 2/91, de 17 de Janeiro, que veio reduzir o período normal de trabalho (este, no domínio do decreto-lei, podia atingir 48 horas por semana e, agora, não pode exceder 44 horas). Nesta legislação, contém-se, pois, o regime jurídico da duração do trabalho por efeito de contrato de trabalho. O capítulo IX do citado Decreto-Lei n.º 409/71, de 27 de Setembro (artigos 44º a
47º) versa sobre os mapas de horário de trabalho. De acordo com a disciplina aí estabelecida para o que agora importa, as entidades patronais têm que enviar à Inspecção-Geral do Trabalho, com uma antecedência mínima de 8 dias relativamente à sua entrada em vigor, uma cópia dos mapas de horário de trabalho, que devem ser elaborados nas ‘condições’ e com as ‘formalidades’ estabelecidas por despacho do Ministro competente (cf. artigo
46º, na redacção do citado Decreto-Lei n.º 65/87). Esse despacho é, justamente, o Despacho Normativo n.º 36/87, do Secretário de Estado do Emprego e Formação Profissional, publicado no Diário da República, I série, de 4 de Abril
(rectificado no Diário da República, I série, de 30 de Maio de 1987), que veio revogar o despacho ministerial de 21 de Dezembro de 1971, publicado no suplemento do Diário do Governo, I série, n.º 298, de 22 de Dezembro de 1971, que antes regulava a matéria. Os mapas de horário de trabalho – cuja validade, inicialmente, dependia ‘da sua aprovação pelo Instituto Nacional do Trabalho e Previdência quando as horas de começo e termo do período de funcionamento do estabelecimento’ não coincidissem
‘com as de entrada e saída de todos os trabalhadores’ ou quando não fosse ‘comum a todos estes o intervalo de descanso’ (cf. artigo 47º do Decreto-Lei n.º
409/71, na sua redacção inicial) –, com a publicação do Decreto-Lei n.º 65/87, de 6 de Fevereiro, deixaram de carecer de qualquer aprovação (cf. artigo 2º do citado Decreto-Lei n.º 65/87). A sua validade passou a ficar dependente apenas
‘da sua conformidade com as disposições aplicáveis em matéria de duração de trabalho e do cumprimento das formalidades estabelecidas nesta capítulo’ (cf. citado artigo 47º, na redacção introduzida pelo referido Decreto-Lei n.º 65/87).
6. O artigo 2º do Decreto-Lei n.º 65/87, de 6 de Fevereiro, dispôs que ‘são revogadas todas as disposições legais que consagrem a necessidade da aprovação dos mapas de horário de trabalho ou sancionem a falta de cumprimento de tal exigência’. Não obstante isso, o Secretário Regional dos Assuntos Sociais da Região Autónoma da Madeira editou, em 21 de Dezembro de 1987, a Portaria n.º 174/87, publicada no Jornal Oficial, de 31 de Dezembro de 1987, de que faz parte o artigo 5º, n.º
1, aqui sub iudicio, na qual – depois de se invocar ‘a necessidade de regulamentação daquele normativo no sentido de o adequar à orgânica própria da Administração Regional’ – se preceitua, entre o mais, o seguinte:
(a). os mapas do horário de trabalho são enviados pela entidade patronal, em duplicado (e não apenas uma cópia), à Direcção Regional do Trabalho, ‘para efeitos de conhecimento e visto’ (cf. artigo 1º, n.º 1);
(b). esses mapas, verificada que seja a sua ‘conformidade com a lei e os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho aplicáveis’, são ‘visados pela Direcção Regional do Trabalho’, que, de seguida, devolve o respectivo original ‘para efeitos de afixação’ (cf. artigo 5º, n.ºs 1 e 2);
(c). só depois disso, e justamente com a sua afixação, é que os mapas entram em vigor (cf. artigos 6º e 7º);
(d). mantêm-se em vigor vários números (os n.ºs 1 a 4 e 22 a 37) do Despacho Ministerial de 20 de Dezembro de 1971 – isto, não obstante o n.º 12 do Despacho Normativo n.º 36/87, publicado no Diário da República, I série, de 4 de Abril, ter disposto que ‘é revogado o despacho ministerial de 20 de Dezembro de 1971, publicado no suplemento ao Diário do Governo, I série, n.º 298, de 22 de Dezembro de 1971’.
7. A norma aqui sub iudicio – a do dito artigo 5º, n.º 1, da Portaria n.º
174/87, de 31 de Dezembro – preceitua como segue:
1. Verificada a sua conformidade com a lei e os instrumentos de regulação colectiva de trabalho aplicáveis, os mapas de horário de trabalho serão visados pela Direcção Regional do Trabalho. Nesta norma, estabelece-se, pois, um regime de aprovação administrativa dos mapas de horário de trabalho: tais mapas são, de facto, visados pela Direcção Regional do Trabalho, e o visto fica dependente da verificação da sua conformidade com a lei e os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho. A isto acresce que os mapas só entram em vigor, cumpridas que sejam as formalidades prescritas na Portaria (cf. artigo 6º). Foi, de resto, deste modo que a decisão recorrida interpretou a norma sub iudicio. Aí se disse, na verdade, que ‘a Portaria n.º 174/87 veio consagrar
[...] o regime de aprovação’; que ela ‘impõe [...] o controlo da legalidade dos mapas de horário de trabalho pela Administração [...]’. Assim sendo, a norma do n.º 1 do artigo 5º, atrás transcrito, contém uma regra que contraria a que se acha consagrada na lei geral que regula a matéria. Nesta lei geral, com efeito, a validade e a eficácia dos mapas de horário de trabalho não se acham condicionadas por qualquer visto ou aprovação. A validade dos mapas depende tão-só da sua ‘conformidade com as disposições aplicáveis em matéria de duração de trabalho e do cumprimento das formalidades estabelecidas’ no capítulo IX do Decreto-Lei n.º 409/71, de 27 de Setembro (cf. artigo 47º deste Decreto-Lei n.º 409/71, na redacção do citado Decreto-Lei n.º 65/87). E isto, porque a exigência de aprovação administrativa foi considerada pelo legislador como ‘injustificada e desajustada em relação ao papel que o Estado deve assumir’
(cf. Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 65/87 citado); e, daí, a revogação de todas as disposições legais que consagravam a necessidade dessa aprovação (cf. artigo 2º do Decreto-Lei n.º 65/87). Quanto à eficácia dos mapas, o que tão-só se estabelece no regime geral é que eles só podem entrar em vigor depois de registados em livro próprio (cf. n.º 10 do citado Despacho Normativo n.º 36/87) e que a sua afixação deve preceder a sua entrada em vigor (cf. n.º 6 do referido Despacho Normativo). Ao que acaba de dizer-se, há ainda que ajuntar que a norma sub iudicio veio exigir a aprovação administrativa dos mapas de horário de trabalho em todos os casos, enquanto que, na lei geral, no período em que essa aprovação se exigia, ela só era necessária naqueles casos em que ‘as horas de começo e termo do período de funcionamento do estabelecimento não coincidam com as de entrada e saída de todos os trabalhadores ou quando não seja comum a todos estes o intervalo de descanso’ (cf. artigo 47º do Decreto-Lei n.º 409/71, de 27 de Setembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 65/87, de 6 de Fevereiro). Quer isto dizer que a norma sub iudicio contém disciplina inicial e primária sobre a matéria a que respeita. Ora, tratando-se de disciplina inicial e primária atinente à matéria relativa aos mapas de horário de trabalho, suposto que tal norma podia ser produzida pelo poder normativo regional – o que, desde logo, exigia que se estivesse em presença de matéria de interesse específico para a região, que não contrariasse lei geral da República e não fosse reservada à competência própria dos órgãos de soberania – sempre ela haveria de constar de acto legislativo (decreto legislativo regional, aprovado pela assembleia (legislativa) regional), e não de regulamento regional, como no caso acontece [cf. acórdãos n.º 184/89 (Diário da República, I série, de 9 de Março de 1989), n.º 308/89 (Diário da República, II série, de 15 de Junho de 1989), n.º 399/89 (Diário da República, II série, de 14 de Setembro de 1989) e n.º 170/90 (Diário da República, I série, de 27 de Junho de 1990)]. De facto, às regiões autónomas compete ‘legislar, com respeito da Constituição e das leis gerais da República, em matérias de interesse específico para as regiões que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania’ [cf. artigo 229º, alínea a), na redacção de 1982, que era a que estava em vigor, à data em que foi editada a Portaria]. Essa competência há-de, no entanto, ser exercida pelas assembleias regionais
(cf. artigo 234º da Constituição), mediante decretos legislativos regionais, que são actos legislativos (cf. artigo 115º, n.º 1, da Constituição). Vistas as coisas a esta luz – e independentemente de ser ou não legítimo ao poder normativo regional editar a norma sub iudicio – uma coisa é certa: como, no caso de tal ser possível, ela só poderia ser editada pela Assembleia Regional e o foi pelo Governo Regional, a norma em causa provém de órgão constitucionalmente incompetente. E, por isso, viola ela o artigo 229º, alínea a), conjugado com o artigo 234º, da Constituição, na versão de 1982 (cf., neste sentido, o já citado Acórdão n.º 170/90).
8. A norma sub iudicio é ainda inconstitucional a outros títulos. Desde logo, porque, pressuposto da intervenção do poder normativo regional, é, como já se deixou dito e decorre do artigo 229º, alínea a), que a matéria seja de interesse específico para a Região (ou seja, que se trate de matéria que, não estando reservada à competência própria dos órgãos de soberania, lhe respeite exclusivamente ou nela exija um tratamento especial, por aí assumir uma configuração especial também): cf. sobre isto, por último, o Acórdão n.º 328/92
(Diário da República, I série-A, de 12 de Novembro de 1992). E isto, quer esteja em causa o poder legislativo regional, quer o poder regulamentar da Região, como sucede no caso. No presente caso, é, de facto, o próprio autor do regulamento quem, no preâmbulo, diz intervir pela ‘necessidade de regulamentação daquele normativo no sentido de o adequar à orgânica própria da Administração Regional e, com as alterações decorrentes da realidade regional, conferindo-se um conteúdo real e efectivo, dentro da filosofia da nova configuração legal, à referida recepção de cópias, por forma a evitar que a exigência do envio mais não seja que uma mera formalidade burocrática e ineficaz’ (sublinhou-se). Essa necessidade de regulamentação sentiu-a o autor da Portaria por virtude das
‘alterações ao regime de elaboração dos mapas de horário de trabalho introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 65/87, alterações que se traduzem na eliminação da obrigatoriedade de aprovação daqueles mapas com a exigência de envio de cópias dos mesmos para conhecimento da Administração’ (cf. citado Preâmbulo). Como se observou no Acórdão n.º 268/88, publicado no Diário da República, I série, de 21 de Dezembro de 1988:
[...] o poder regulamentar regional, previsto no artigo 229º, alínea b), da CRP, não pode logicamente, isto é, numa interpretação enraizada em visão sistemática desse mesmo artigo 229º, deixar de estar sujeito às mesmas limitações que o poder legislativo regional, ou seja, também ele só poderá operar normativamente em relação a matérias de interesse específico regional que não estejam reservadas à acção legislativa dos órgãos de soberania [...]. Ora, não se vê (nem no Preâmbulo da Portaria se alega seja o que for nesse sentido) que a sujeição ou não dos mapas de horário de trabalho a um regime de aprovação administrativa seja uma questão que respeite exclusivamente à Região Autónoma da Madeira ou que nela assuma uma especial configuração, a exigir um tratamento especial. Por aí, pois, a norma em apreciação viola a alínea b), conjugada com a alínea a), ambas do artigo 229º da Constituição, na redacção de 1982.
9. Acresce que, se, acaso, a norma sub iudicio pudesse constar de regulamento (o que não sucede, como já se viu), sempre este teria que ser editado pela Assembleia (Legislativa) Regional, e não pelo Governo da Região. As regiões autónomas – resulta do que prescreve o artigo 229º, alínea b), da Constituição, na versão de 1982 – têm competência para ‘regulamentar [...] as leis gerais emanadas dos órgãos de soberania que não reservem para estes o respectivo poder regulamentar’ [cf., hoje, o artigo 229º, n.º 1, alínea d)]. Simplesmente, essa regulamentação, nos casos em que ela pode ter lugar, só pode ser produzida pela assembleia (legislativa) regional, que é o único órgão da região com competência para o efeito, como bem resulta do que se dispõe no artigo 234º da Constituição, na versão de 1982 (cf., hoje, o artigo 234º, n.º
1). Pois bem: O regime jurídico do horário de trabalho (recte, o regime jurídico da duração do trabalho por efeito de contrato de trabalho) – maxime, naquilo que se refere especificamente aos mapas de horário de trabalho – contém ‘normas e princípios portadores de eficácia normativa para os cidadãos do todo nacional’, pois que ‘contém matéria de inegável dimensão nacional’ (estas expressões são do Acórdão n.º 133/90, publicado no Diário da República, II série, de 4 de Setembro de 1990). Porque é assim, isto é, porque – nos dizeres do Acórdão n.º 254/90
(Diário da República, I série, de 6 de Setembro de 1990) – a disciplina aí contida ‘é a expressão jurídico-material de interesses respeitantes a todo o território nacional’, deve tal legislação ser havida como lei geral e, mesmo, como lei geral da República (cf. artigo 115º, n.º 4, da Constituição, na versão de 1982). Sendo assim, pois – e como se viu já –, só a Assembleia Regional podia regulamentar essa legislação. E, ainda assim, tão-só ali onde o legislador nacional não tinha reservado para si esse poder regulamentar. No caso, o legislador nacional reservou para o Governo a regulamentação das
‘condições e formalidades a observar na elaboração dos mapas de horário de trabalho e nas suas alterações’ (cf. artigo 46º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º
409/71, de 27 de Setembro) – ‘condições e formalidades’ que, como já se anotou atrás, vieram a ser fixadas pelo Despacho Normativo n.º 36/87, do Secretário de Estado do Emprego e Formação Profissional, publicado no Diário da República, I série, de 4 de Abril de 1987. Deste modo, a Assembleia Regional da Madeira (hoje, Assembleia Legislativa Regional) – mas nunca o Governo Regional – apenas podia intervir para regulamentar aspectos diferentes dos acabados de apontar, atinentes à disciplina dos mapas de horário de trabalho que fossem de interesse específico para a Região, maxime no tocante à designação da entidade ou serviço a quem as entidades patronais deviam enviar a cópia de tais mapas. Só que – já se viu –, no caso, o regulamento regional (dita Portaria n.º 174/87, de 31 de Dezembro) foi emitido pelo Secretário Regional dos Assuntos Sociais. Ora, isto - com o decorre do que vem de dizer-se -, só por si, importa violação do artigo 234º, conjugado com a alínea b) do artigo 229º, da Constituição, na versão de 1982.”
6.No presente caso, há apenas que reiterar estas considerações para a apreciação da norma em causa, concluindo, pois, que a norma do artigo 5º, n.º 1, da Portaria n.º 174/87, de 31 de Dezembro deve ser julgada inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 229º, alíneas a) e b), e 234º, da Constituição, na versão saída da I revisão constitucional, e que, por conseguinte, há que negar provimento ao recurso.
III. Decisão Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide: a) Julgar inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos
229º, alíneas a) e b), e 234º, da Constituição, na versão posterior à Lei Constitucional n.º 1/82, a norma do artigo 5º, n.º 1, da Portaria do Governo Regional da Madeira n.º 174/87, de 31 de Dezembro. b) Consequentemente, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida no que ao julgamento de inconstitucionalidade respeita.
Lisboa, 15 de Outubro de 2003 Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos