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Proc. nº 343/2003
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. Na sequência da realização de uma busca domiciliária e de uma busca em estabelecimento comercial, A. foi detido, tendo sido submetido a prisão preventiva, por despacho com o seguinte teor:
“Concorda-se inteiramente com a qualificação dos factos indiciados proposta pelo Ministério Público. Tal indiciação assenta na prova compilada para os autos e cuidadosamente enumerada no relatório constante de fls. 2849 e segs., a que acresceram ainda as vigilâncias realizadas e relatadas no processo, bem como a prova adquirida por via das intercepções telefónicas realizadas e que desde o início tenho vindo a supervisionar e acompanhar, enquanto juiz de instrução que as autorizou, circunstância que me proporcionou não só confirmar o gratificante espírito de lealdade institucional revelado pelo OPC para com as autoridades judiciárias deste processo, como também acompanhar em tempo útil os passos dados pelos arguidos na sua actividade criminosa. Com efeito, quem ouça as conversas entre si estabelecidas não poderá ficar com dúvidas sobre a natureza dos seus comportamentos e mesmo conhecimento e vontade de praticar os delitos que lhes são imputados. A título exemplificativo do que venho referindo cito as conversas ouvidas ou lidas durante os interrogatórios realizados e que não mereceram da parte dos arguidos reparos que permitam inflectir aquela convicção. Aliás, a este propósito serão elucidativas as declarações prestadas pelo arguido B. no seu interrogatório, explicando sem reservas a forma como actuava. Perante tão exaustiva e bem fundamentada promoção apresentada pela digna Procuradora da República que dirige o presente inquérito, repetir os argumentos expressos seria isso mesmo, uma mera repetição e, nessa medida uma excrescência inútil, mesmo sem apelar ao adiantado da hora. Aliás, nem os ilustres mandatários dos arguidos, com raras excepções apenas, revelaram oposição à qualificação jurídica dos factos indiciados. E aqueles que fugiram à regra, fizeram-no, salvo o devido respeito, por não terem entendido a fundamentação expendida pelo Ministério Público. Com efeito, a alusão à comercialização feita pelos arguidos C. e D. não traduziu a indicação dos factos que lhes são imputados. Esses encontram-se descritos no início da promoção onde se indica a matéria imputada a todos. O que com aquela menção se evidencia, isso sim, é a necessidade dessa comercialização dos produtos do arguido E., para a eficiência de resultados da organização. Por seu lado, a comparação apresentada pelo ilustre mandatário deste arguido com a situação do arguido B., ainda que feita a propósito da adequação das medidas de coacção, afigura-se como despropositada ao nível da matéria imputável a cada um: com efeito, não deixou o Ministério Público de referir que foi o E. quem fundou e liderou a organização criminosa sob investigação, organização essa em que o B., a par dos demais arguidos, participou, diferença que encontra reflexo ao nível das molduras penais estabelecidas na lei para a punição de cada um destes comportamentos. Uma palavra resta salientar para o caso do arguido F. para referir que os esclarecimentos que prestou durante o seu interrogatório se revelaram, pelo menos em face da prova até ao momento compilada, como suficientes para infirmar a convicção que as mesmas suscitavam antes de lhe ser dada a oportunidade de se defender. Também neste ponto me encontro, pois, de acordo com a posição assumida pelo Ministério Público, como nem podia deixar de ser, perante o facto de o arguido ter respondido a todas as questões formuladas, desfazendo equívocos e explicando as situações que antes não encontravam explicação. Assentes os crimes indiciariamente imputados aos arguidos, passemos, então ao ponto em que toda a defesa, com excepção apenas para os representantes dos arguidos B. e F., discorda da promoção do Ministério Público: os perigos a acautelar e a adequação das medidas propostas. Sustentam os ilustres defensores dos arguidos que a apreensão dos instrumentos da actividade dos arguidos afasta o perigo de continuação da actividade criminosa. Não me parece, todavia, que tenham razão. Com efeito estamos a falar de comércio paralelo, para cuja execução, basta ter alguma disponibilidade económica para investir. Por vezes nem isso, a fazer fé nas declarações de alguns arguidos quando afirmaram que “o E. dá-lhe o dinheiro quando tem. O respondente empresta-lhe também dinheiro (...)” (v. interrogatório do arguido G.). Aliás, se dúvidas houvesse sobre a existência do perigo de continuação de actividade criminosa, bastaria atentar-se no facto de os arguidos E., B., G. e C. já terem anteriormente sido constituídos arguidos, e ouvidos como tal, no
âmbito do inquérito que deu origem ao presente, onde também o ora arguido D. foi inquirido como testemunha, para se perceber que nem um tal alerta policial foi suficiente para os assustar e convencer a travar a sua actividade para o futuro. Talvez por ela ser tão lucrativa, como sublinhou a digna Procuradora da República na sua promoção. De resto, as escutas telefónicas evidenciam que os arguidos não cessaram a sua actividade criminosa até ao dia das detenções, manifestando uma convicção de impunidade que não desaparece. Sendo, aliás, da actividade criminosa imputada que vivem, impõe-se a pergunta: o que os fará cessar? Melhor: o que os fará cessar se nem reconhecem o mal cometido? Só o arguido B. o fez, sendo, pois, de admitir que a presente detenção tenha constituído prevenção suficiente no seu caso. Não se trata de qualquer “benesse” a quem confessou ou “castigo” a quem usou do direito ao silêncio como sustentou o ilustre mandatário do arguido E.. Trata-se, isso, sim de aplicar a medida adequada à prevenção dos perigos configuráveis, perante a prova indiciária compilada e a atitude responsavelmente assumida por cada um, depois de elucidados sobre o objecto do processo e tipo de prova recolhida no mesmo. Na mesma linha de pensamento, tão pouco o perigo para a aquisição da prova se mostra removido com as apreensões verificadas. Desde logo pela facilidade com que se disponibilizam documentos de suporte de transacções no meio
“profissional” em que os arguidos se inserem. O alarme social e intranquilidade pública configuráveis neste tipo de criminalidade são uma evidência também, lembrando a eloquência expressa na promoção que antecede esta decisão ao sublinhar que toda esta actuação de defraudação do erário público põe em causa os alicerces do próprio Estado de Direito. Finalmente, o perigo de fuga, não pode deixar igualmente de ser ponderado, como constituindo uma perspectiva configurável relativamente a agentes deste tipo de criminalidade, especialmente quando confrontados com a ameaça da aplicação de uma pena. Os crimes em referência são graves e encontram nas molduras penais estabelecidas pelo legislador um reflexo dessa gravidade. Dir-se-á, por fim, em face do alegado pelos ilustres defensores dos arguidos, que, apesar de tudo, não será necessária a medida mais gravosa que só excepcionalmente deve ser aplicada, bastando a obrigação de permanência na habitação, aliás sugerida por expressivo número como alternativa à prisão. Não basta, todavia, limitar os arguidos ao espaço das respectivas residências para obviar ao perigo de prosseguirem no comércio paralelo deste tipo, que, como já acima referido, se basta com algum investimento, conhecimentos no meio e, é bem verdade, um telefone. Tudo isso continuaria disponível no lar de cada um”.
O arguido interpôs recurso de tal despacho para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo concluído o seguinte:
Assim se dirá em CONCLUSÃO:
1) Vem o presente recurso interposto da douta decisão de fls. que sujeitou o ora recorrente a prisão preventiva;
2) Todavia, não assiste razão à tese constante em tal decisão, como se mostra desde logo evidente na circunstância de ter sido permitido a um co-arguido do Recorrente, com uma situação processual mais gravosa que a do recorrente [facto este reconhecido pela Mma JIC], aguardar em liberdade os ulteriores termos processuais sujeito apenas à medida de apresentações bi-semanais;
3) Falta de razão que resulta também do seguinte: o fundamento para tal diferenciação de estatutos residiu na circunstância do Recorrente exercer o direito ao silêncio, isto é, não prestou declarações, ao contrário daqueloutro co-arguido que parece ter prestado declarações e confessado a sua conduta delituosa;
4) Consubstanciando, por conseguinte, tal diferenciação de tratamento, uma autêntica fraude à lei, pois através dele atenta-se contra um direito - direito ao silêncio - com consagração constitucional, e um dos corolários máximos das garantias de defesa do arguido em processo penal;
5) Pode-se mesmo dizer que a interpretação constante na douta decisão recorrida da norma do art. 61°, nº 1, al. c) do CPP, conjugada com a norma constante na al. c) do mo 204° do CPP, viola manifestamente a norma constante no art. 32°, nº 1 da CRP , o que aqui se argui para todos os legais efeitos.
6) Mas, acima de tudo, tal diferenciação de estatutos permite-nos concluir com facilidade que os princípios da necessidade, proporcionalidade, adequação e excepcionalidade da prisão preventiva não são respeitados na decisão recorrida, pois a situação do recorrente comportava perfeitamente - tal como a daqueloutro co-arguido - qualquer medida de coacção não privativa da liberdade;
7) A decisão recorrida carece, ainda, de fundamentação fáctica ao não referir relativamente ao recorrente quaisquer factos que consubstanciem a existência dos alegados perigo de continuação da actividade criminosa, perigo de .fuga e perigo de perturbação da ordem pública;
8) Para além do mais, admitir que basta a alegação simples desses requisitos legais, sem necessidade de os fundamentar com referências a cada caso concreto, implica a consagração de um tipo de crimes incaucionáveis - ou do princípio da obrigatoriedade da prisão preventiva, absolutamente vedados pela Constituição e proibidos pela lei;
9) O recorrente julga, também, que a decisão recorrida não atendeu à sua personalidade, nem à sua situação sócio-económico-familiar, as quais são de molde a permitir que o Recorrente aguarde em liberdade os ulteriores termos processuais;
10) E, por último, não só é violado o princípio da presunção de inocência, mas também, e como corolário da violação desse princípio de valor constitucional, sobre o manto da actual prisão preventiva do arguido, a Mma JIC impõe a este a antecipação de uma pena de prisão cuja aplicação nos presentes autos será, na sua óptica, inevitável, como se depreende do despacho recorrido, o que faz inquinar a decisão recorrida, também nesta parte, de uma verdadeira fraude à lei;
11) Pelo exposto, a decisão recorrida erra por violação de lei, ao não ter considerado a legislação vigente, entre o plano das normas e princípios constitucionais e o da aplicação concreta, violando, entre outras do douto suprimento desse Tribunal da Relação, as normas contidas nos arts. 18°, nº 2;
27°; 28°, nº 2; 30°, nº 1; 32°, nºs 1 e 2 e 205°, nº 1, todos da C.R.P.; os arts. 61º, nº 1, al. c); 97°, nº 4; 191º; 193°; 202°; 204°, al. c); 209° e 212°, nº 1, todos do CPP;
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 12 de Fevereiro de 2003, considerou o seguinte:
II - FUNDAMENTAÇÃO A fundamentação do despacho recorrido quanto aos perigos mencionados no artigo
204°.
7 - O recorrente, não pondo em causa a existência dos perigos mencionados nas três alínea do artigo 204° do Código de Processo Penal, invocados no despacho recorrido, alega que a decisão impugnada não contém, relativamente a si, factos concretos que consubstanciem as afirmações que, quanto a essa matéria, nele são feitas. Porém, se analisarmos o despacho recorrido verificamos que a srª juíza expressou de forma tanto quanto possível concreta e fundamentada as razões que a levavam a considerar existir, no caso, perigo de continuação da actividade criminosa, perigo para a aquisição da prova, perigo de perturbação da tranquilidade pública e perigo de fuga, fundamentação que, sendo mais pormenorizada quando ao primeiro dos indicados perigos, que é o mais premente e determinante, não deixa de ser suficiente quanto aos restantes. De qualquer modo, alguma insuficiência que nessa sede se verificasse, constituiria mera irregularidade que deveria ter sido arguida no próprio acto, nos termos do n° 1 do artigo 123° do Código de Processo Penal, o que não aconteceu.
As finalidades da aplicação das medidas de coacção.
8 - Para além disso, afirma o recorrente que a prisão preventiva que lhe foi imposta constitui uma antecipação da pena de prisão. Salvo o devido respeito, não vemos no despacho recorrido qualquer fundamento para essa afirmação. Não o constituirá, por certo, a invocação do princípio da proporcionalidade, que relaciona a gravidade da medida aplicada com a do crime ou crimes fortemente indiciados. Tal princípio, ao contrário do que por vezes se considera, não impõe a aplicação de uma medida de coacção necessariamente equivalente à danosidade da conduta e à culpa do agente, tendo antes por função, enquanto manifestação que é do princípio da proibição de excesso, impedir a aplicação de medidas de coacção desproporcionais à gravidade do crime ou das previsíveis sanções que lhe venham a ser aplicadas. Como resulta da sua leitura, o despacho recorrido, em estrita obediência ao disposto na primeira parte do n ° 1 do artigo 191 ° do Código de Processo Penal, apenas atendeu às exigências processuais e não a quaisquer outras.
Os princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade e da excepcionalidade.
9 - Afirma também o arguido que o despacho recorrido não respeita os princípios da necessidade, da adequação, da proporcionalidade e da subsidiariedade. Porém, como se pode ver da fundamentação transcrita, o despacho recorrido justifica, de forma que não é contrariada pelo recorrente, que se torna necessária a aplicação de uma medida de coacção adequada a responder aos perigos enunciados, em especial o de continuação da actividade criminosa, perigo esse que, pela natureza da actividade fortemente indiciada, até aí desenvolvida por alguns arguidos, entre os quais o recorrente, exige a aplicação da prisão preventiva, medida que, por outro lado, não é excessiva. Refere ainda que, por esse mesmo motivo, as outras medidas de coacção, nomeadamente as previstas nos artigos 200° e 201 ° do Código de Processo Penal, não seriam suficientes. Nada se diz, em concreto, que ponha em causa estas considerações, razão pela qual nada há também a alterar.
O direito ao silêncio do arguido.
10 - Por fim, alega o arguido que a imposição da prisão preventiva traduz uma sanção por ele, no exercido do direito ao silêncio, que se encontra consagrado no artigo 61º, n° 1, alínea c) do Código de Processo Penal, não ter prestado declarações. Embora o legislador processual penal não tenha utilizado em todas as disposições que consagram esse direito a mesma formulação, deve entender-se que o direito ao silêncio não envolve apenas a faculdade de prestar ou não declarações sobre o objecto da causa mas implica também e sempre a proibição da imposição de qualquer consequência desfavorável derivada do seu exercício. Isso não implica, no entanto, que o arguido que optou pelo exercício desse direito deva colher os benefícios que uma atitude diferente poderia acarretar, nem obsta a que as declarações prestadas por quem entendeu dever fazê-lo sejam valoradas, quer quando através delas se exerceu o direito de defesa e, assim, se contrariou os indícios até ao momento existentes, quer quando elas traduzem uma atitude e uma personalidade susceptíveis de ser consideradas relevantes tendo em conta a determinação da medida da pena e a aplicação de medidas de coacção.
É precisamente isso o que se passa nestes autos. A srª juíza considerou que os esclarecimentos de um arguido tinham contribuído para dissipar os indícios que existiam, enquanto que as declarações por outro prestadas, porque traduziam uma interiorização da sua culpa, atenuavam o perigo de continuação da actividade criminosa. Nenhuma censura merece essa atitude. Em face do exposto, não se pode, portanto, deixar de considerar improcedente o recurso interposto.
2. A. interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão de 12 de Fevereiro de
2003, nos seguintes termos:
A., recorrente nos autos à margem em epígrafe, notificado da douta decisão de fls. , porque está em tempo, tem legitimidade e interesse processual; porque do texto do acórdão desse Tribunal da Relação de Lisboa resultam fortes indícios da existência das seguintes inconstitucionalidade/ilegalidades: a) Da interpretação dada às normas constantes nos artºs 61°, nº 1, al. c) e
204°, al. c), ambos do CPP, por violar o constante no n° 1 do artº 32° da CRP; b) Da interpretação dada à norma constante no artº 204° do CPP, por violar o constante no artº 28°, nº 2 da CRP , Porque as questões são actuais e úteis e foram suscitadas nas conclusões 5ª a 8ª da sua motivação de recurso. Vem mui respeitosamente, nos termos da CRP e nos termos da LOFPTC, requerer a apreciação das referidas normas pelo Venerando Tribunal Constitucional, segundo a interpretação dada no douto acórdão de fls.
Por despacho de 14 de Março de 2003, o recurso de constitucionalidade não foi admitido. Esse despacho tem o seguinte teor:
O arguido A. veio, a fls. 112, interpor recurso, para o Tribunal Constitucional, do acórdão de fls. 99 a 107. De acordo com os nºs 1 e 2 do artigo 75°-A da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, uma vez que, embora não o diga expressamente, se trata de um recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n° 1 do artigo 70° dessa lei, o requerimento de interposição do recurso deveria indicar: a) a alínea do n° 1 do artigo 70° ao abrigo da qual o recurso é interposto; b) a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o tribunal aprecie; c) a norma ou princípio constitucional violado; d) a peça processual em que o recorrente suscitou a questão de constitucionalidade. No requerimento apresentado o recorrente incluiu todas essas indicações, à excepção da menção a que se refere a indicada alínea a). Se não existisse fundamento para não admitir o recurso, haveria que convidar o recorrente, nos termos do n° 5 do artigo 75° da LTC, a suprir essa omissão. Verifica-se, porém, que uma das normas indicadas como constituindo o objecto de recurso não foi aplicada na decisão recorrida e a outra, tendo-o sido, não o foi com o sentido inconstitucional que se lhe atribui. De facto, foram indicadas como constituindo o objecto do recurso de constitucionalidade as normas que se extraem dos artigos 61º, nº 1, alínea c), e
204°, alínea c), do Código de Processo Penal, únicas mencionadas nas conclusões
5ª a 8ª da motivaçâo do recurso interposto do despacho proferido na 1ª instância. A primeira dessas normas tutela o direito ao silêncio do arguido, consagrando a segunda a exigência de que não se aplique qualquer medida de coacção, à excepção do termo de identidade e residência, sem que, em concreto, se verifique qualquer um dos perigos enunciado na indicada alínea. Ora, a primeira dessas normas, não foi, nem expressa, nem implicitamente, aplicada na decisão recorrida, com o sentido inconstitucional que se lhe assaca, para fundamentar a confirmação da decisão de sujeitar o arguido á prisão preventiva. Quanto ao direito ao silêncio, disse-se no acórdão recorrido que:
“10 - Por fim, alega o arguido que a imposição da prisão preventiva traduz uma sanção por ele, no exercido do direito ao silêncio, que se encontra consagrado no artigo 61º, n° 1, alínea c) do Código de Processo Penal, não ter prestado declarações. Embora o legislador processual penal não tenha utilizado em todas as disposições que consagram esse direito a mesma formulação, deve entender-se que o direito ao silêncio não envolve apenas a faculdade de prestar ou não declarações sobre o objecto da causa mas implica também e sempre a proibição da imposição de qualquer consequência desfavorável derivada do seu exercício. Isso não implica, no entanto, que o arguido que optou pelo exercício desse direito deva colher os benefícios que uma atitude diferente poderia acarretar, nem obsta a que as declarações prestadas por quem entendeu dever fazê-lo sejam valoradas, quer quando através delas se exerceu o direito de defesa e, assim, se contrariou os indícios até ao momento existentes, quer quando elas traduzem uma atitude e uma personalidade susceptíveis de ser consideradas relevantes tendo em conta a determinação da medida da pena e a aplicação de medidas de coacção.
É precisamente isso o que se passa nestes autos. A srª juíza considerou que os esclarecimentos de um arguido tinham contribuído para dissipar os indícios que existiam, enquanto que as declarações por outro prestadas, porque traduziam uma interiorização da sua culpa, atenuavam o perigo de continuação da actividade criminosa.”
No acórdão recorrido não se negou o direito ao silêncio, nem se fez decorrer do seu exercício qualquer consequência desfavorável ao recorrente. Por sua vez, quanto aos requisitos mencionados no artigo 204°, escreveu-se o seguinte:
“7 - O recorrente, não pondo em causa a existência dos perigos mencionados nas três alíneas do artigo 204° do Código de Processo Penal, invocados no despacho recorrido, alega que a decisão impugnada não contém, relativamente a si, factos concretos que consubstanciem as afirmações que, quanto a essa matéria, nele são feitas. Porém, se analisarmos o despacho recorrido verificamos que a srª juíza expressou de forma tanto quanto possível concreta e fundamentada as razões que a levavam a considerar existir, no caso, perigo de continuação da actividade criminosa, perigo para a aquisição da prova, perigo de perturbação da tranquilidade pública e perigo de fuga, fundamentação que, sendo mais pormenorizada quando ao primeiro dos indicados perigos, que é o mais premente e determinante, não deixa de ser suficiente quanto aos restantes. De qualquer modo, alguma insuficiência que nessa sede se verificasse, constituiria mera irregularidade que deveria ter sido arguida no próprio acto, nos termos do n° 1 do artigo 123° do Código de Processo Penal, o que não aconteceu.”
O artigo 204° do Código de Processo Penal, nomeadamente a sua alínea c), não foi portanto aplicado na decisão recorrida, nem com o sentido referido pelo arguido, nem com qualquer outro. No acórdão apenas se abordou, porque era esse o objecto da impugnação, a suficiência da fundamentação do despacho, fundamentação essa que é exigida pelos artigos 194°, n° 3, e 97°, n° 4, do Código de Processo Penal. Assim, porque uma das normas cuja inconstitucionalidade se invoca não foi aplicada na decisão recorrida e a outra não o foi na dimensão que se lhe atribui e se considera afrontosa da Constituição da República Portuguesa, a apreciação da sua conformidade com a lei fundamental não influía no sentido da decisão proferida, razão pela qual, nos termos do n° 2 do artigo 76° da LTC, não admito o recurso interposto.
3. A. vem agora reclamar, ao abrigo dos artigos 76º e 77º da Lei do Tribunal Constitucional, afirmando o seguinte:
A decisão ora sob reclamação decide rejeitar o recurso interposto para o TC por entender, em resumo, o seguinte: «Assim, porque uma das normas cuja inconstitucionalidade se invoca não foi aplicada na decisão recorrida e a outra não o foi na dimensão que se lhe atribui e se considera afrontosa da Constituição da República Portuguesa, a apreciação da sua conformidade com a lei fundamental não influia no sentido da decisão proferida, razão pela qual, nos termos do nº 2 do art. 76° da LTC, não admito o recurso interposto». Da leitura da norma do citado art° 76° da LTC constam os seguintes fundamentos para o indeferimento do recurso para o TC:
1. Quando o requerimento não satisfaça os requisitos do art° 75°-A, mesmo após o suprimento previsto no seu nº 5;
2. Quando a decisão o não admita;
3. Quando o recurso haja sido interposto fora de prazo;
4. Quando o requerente careça de legitimidade; ou, ainda,
5. Quando o recurso for manifestamente infundado, no caso dos recursos previstos nas al.s b) e f) do nº 1 do art° 70°. No caso vertente, a decisão reclamanda indefere o recurso do reclamante por considerar o mesmo manifestamente infundado, como se depreende daquela passagem onde se refere que, “se não existisse fundamento para não admitir o recurso, haveria que convidar o recorrente, nos termos do nº 5 do art. 75° da LTC, a suprir essa omissão”. Refira-se que esta omissão residiria na falta de indicação expressa da alínea do n° 1 do art° 70° ao abrigo da qual vinha interposto o recurso; omissão suprida “a priori”, de resto, pela própria decisão, quando esta reconhece que “embora não o diga expressamente, se trata de um recurso interposto ao abrigo da al. b) do nº 1 do art. 70° dessa lei”. Sucede que na douta decisão reclamanda, proferida na sequência do douto acórdão de fls. , se pretende fazer acreditar estarmos perante um recurso inadmisível, quando o motivo da rejeição do recurso em questão reside na discordância pura e simples com a tese do ora reclamante. Como também resulta do texto do douto acórdão de fls. Na verdade, por não se conformar com a tese veiculada no acórdão de fls. , a qual tem, na sua opinião, repercussão ao nível da sua desconformidade com a Constituição da República Portuguesa, veio o Requerente interpôr recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo de um direito legalmente concedido, com o intuito de tal questão ser definitivamente analisada por tão elevada instância.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
I Fundamentação
4. Sendo o recurso que o reclamante interpôs fundado nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, é necessário, para que o mesmo possa ser admitido, que a questão de constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
O Tribunal Constitucional tem entendido este requisito num sentido funcional. De acordo com tal entendimento, uma questão de constitucionalidade normativa só se pode considerar suscitada de modo processualmente adequado quando o recorrente identifica a norma que considera inconstitucional, indica o princípio ou a norma constitucional que considera violados e apresenta uma fundamentação, ainda que sucinta, da inconstitucionalidade arguida. Não se considera assim suscitada uma questão de constitucionalidade normativa quando o recorrente se limita a afirmar, em abstracto, que uma dada interpretação é inconstitucional, sem indicar a norma que enferma desse vício, ou quando imputa a inconstitucionalidade a uma decisão ou a um acto administrativo.
Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem igualmente entendido que a questão de constitucionalidade tem de ser suscitada antes da prolação da decisão recorrida, de modo a permitir ao juiz a quo pronunciar-se sobre ela. Não se considera assim suscitada durante o processo a questão de constitucionalidade normativa invocada somente no requerimento de aclaração, na arguição de nulidade ou no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade (cf., entre muitos outros, o Acórdão nº 155/95, D.R., II Série, de 20 de Junho de 1995). Constitui também pressuposto do recurso de constitucionalidade da alíena b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional a aplicação pelo tribunal a quo da norma ou dimensão normativa impugnada, pois, caso assim não aconteça, o juízo que o Tribunal Constitucional vier a formular não terá a virtualidade de alterar a decisão recorrida sendo, desse modo, inútil.
5. Na presente reclamação, o reclamante sustenta que o despacho de não admissão do recurso de constitucionalidade se fundamenta na circunstância de o recurso de constitucionalidade ser manifestamente infundado. Contudo, o fundamento do despacho que não admitiu o recurso de constitucionalidade consistiu na não verificação do pressuposto processual consistente na aplicação pela decisão recorrida de norma ou dimensão normativa impugnada. Assim, desde logo a argumentação desenvolvida pelo reclamante na presente reclamação não colide com a fundamentação do despacho reclamado. Mesmo assim, averiguar-se-á se o fundamento do despacho que não admitiu o recurso de constitucionalidade padecerá de qualquer deficiência.
6. Do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade e das alegações apresentadas no recurso perante o Tribunal da Relação de Lisboa depreende-se que o reclamante pretendeu impugnar uma dada dimensão normativa retirada dos artigos 61º, nº 1, alínea c), e 204º, alínea c), do Código de Processo Penal, segundo a qual o arguido terá alegadamente sido discriminado por exercer o direito ao silêncio, assumindo a prisão preventiva aplicada a natureza de “sanção” pelo exercício de tal direito, o que consubstanciaria uma violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição. Contudo, o tribunal a quo não só rejeitou que a prisão preventiva tenha sido aplicada como sanção pelo exercício do direito ao silêncio, como considerou que das decisões proferidas nos autos resulta que a prisão preventiva foi aplicada ao arguido em virtude de se verificarem os respectivos pressupostos e de existirem elementos que legitimaram a sua aplicação, na perspectiva da sua necessidade em concreto. Também, segundo o acórdão recorrido, a circunstância de um outro arguido não ter sido sujeito a tal medida não indicia qualquer discriminação, ao contrário do que parece pretender o reclamante, por considerar ser manifesto que essa diferença de tratamento está justificada no caso, em face das referências feitas no despacho recorrido ao conteúdo das declarações prestadas.
É portanto patente que a ratio decidendi do acórdão recorrido que remete para a fundamentação do despacho que decretou a prisão preventiva, não foi o exercício do direito ao silêncio. Deste modo, pode concluir-se que a dimensão normativa impugnada não foi aplicada pela decisão recorrida. E a esta conclusão se chega, mesmo não deixando de considerar a lógica material da fundamentação do próprio despacho recorrido, confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação, não remetendo para um puro domínio de fundamentação formal, mas considerando sempre a fundamentação num sentido lógico-material.
7. O reclamante pretende, por outro lado, submeter à apreciação do Tribunal Constitucional autonomamente o artigo 204º do Código de Processo Penal. O recorrente não identifica, porém, a dimensão normativa de tal preceito que considera inconstitucional. No entanto, uma vez que afirma no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade que suscitou as questões nas conclusões 5ª e 8ª das alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, parece que o recorrente pretende associar a interpretação de tal preceito a uma alegada falta de fundamentação fáctica da decisão que aplicou a prisão preventiva. Mas se o recorrente tem a intenção de suscitar uma questão de constitucionalidade normativa, o certo é que, nas alegações de recurso perante o Tribunal da Relação de Lisboa, não chegou a suscitar, objectivamente, qualquer questão com essa natureza reportada ao artigo 204º do Código de Processo Penal ou a qualquer outro preceito e relativa ao modo de fundamentação do despacho então recorrido. Na verdade, foi apenas alegada a inconstitucionalidade de uma decisão que consiste em prescindir de fundamentar os requisitos legais da prisão preventiva “sem necessidade de os fundamentar com referências a cada caso concreto”, a qual implicaria a “consagração de um tipo de crimes incaucionáveis
– ou do princípio da obrigatoriedade da prisão preventiva, absolutamente vedados pela Constituição”. E, assim, foi só à decisão que o ora reclamante imputou o vício de inconstitucionalidade e não expressamente a uma norma ou a uma interpretação normativa. Deste modo, o reclamante não cumpriu o ónus que sobre si impendia de suscitação durante o processo de uma questão de constitucionalidade normativa. Ora o Tribunal Constitucional só pode pronunciar-se sobre questões com a referida natureza, isto é questões de constitucionalidade de normas, cabendo apenas às outras instâncias a pronúncia sobre a constitucionalidade de decisões. Consequentemente, nem sequer é pertinente questionar uma eventual falta de coincidência entre uma qualquer questão de constitucionalidade normativa que pudesse ter sido suscitada pelo recorrente relativa à fundamentação do despacho e a ratio decidendi do acórdão recorrido (a qual foi a de que o despacho que aplicou a prisão preventiva contém a fundamentação das razões que permitiram considerar existir “continuação da actividade criminosa, perigo para a aquisição da prova, perigo de perturbação da tranquilidade pública e perigo de fuga”). Por outro lado, o acórdão recorrido contém uma fundamentação alternativa, assente na circunstância de “alguma insuficiência que nessa sede se verificasse constituiria mera irregularidade” sanada nos termos do nº 1 do artigo 123º do Código de Processo Penal. Como tal norma processual não foi impugnada na perspectiva da constitucionalidade, também sempre se tornaria inútil a apreciação da questão reportada à falta de fundamentação, ainda que a mesma tivesse sido suscitada durante o processo como questão de constitucionalidade normativa.
É, pois, manifesta a ausência dos pressupostos do recurso interposto. Nessa medida, a presente reclamação deve ser indeferida.
III Decisão
8. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando o despacho reclamado.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 20 de Maio de 2003- Maria Fernanda Palma Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos