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Proc. nº 577/02
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nestes autos, em que é recorrente o Ministério Público e são recorridos o Fundo de Garantia Automóvel e outros, o Tribunal de Família e de Menores e de Comarca do Barreiro, por decisão de 24 de Abril de 2002, recusou aplicar, com fundamento na sua inconstitucionalidade, a norma do artigo 7º do Decreto-Lei n.º
218/99, de 15 de Junho.
Fê-lo escudando-se na seguinte fundamentação:
“[...] Da inconstitucionalidade orgânica
[...] Assim, segundo as regras gerais e se não existisse o artigo 7º em análise, as acções como estas seriam instauradas no tribunal do local onde o facto ocorreu e não no tribunal onde deve ser cumprida a obrigação. De acordo com o preceituado no artigo 7º do DL 218/99, o tribunal competente é o do local da sede da entidade credora que coincide como o local onde deve ser cumprida a obrigação. Conclui-se, pois, que esta norma (artigo 7º) introduziu uma inovação em matéria de competência territorial dos tribunais. Como já se frisou, as normas que visem modificar a competência dos tribunais
(onde se inclui a competência em razão do território) são da competência relativa da Assembleia da República (artigo 165°, n.º 1 al. p) C.R.P). O Governo pode legislar sobre esta matéria desde que munido de autorização legislativa, sob pena de inconstitucionalidade orgânica. A norma constante do artigo 7º DL n°
218/99 de 15-6 consagra, como resulta do que ficou exposto, uma alteração das regras de competência territorial dos tribunais e foi emitida pelo Governo sem precedência de autorização legislativa. Por inobservância da reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República estabelecida no artigo 165°, n.º 2 al. p) da Constituição é necessariamente inconstitucional quando interpretada no sentido de que incumbe ao tribunal do local onde se situa a sede dos hospitais, e que coincide com o local onde deve ser cumprida a obrigação de pagamento decorrente do contrato de prestação de cuidados de saúde, o processamento e o conhecimento das acções de cobrança de dívidas hospitalares em que é demandado o terceiro responsável pelo facto ilícito ou pelo risco que determinou a assistência médica-hospitalar. Da inconstitucionalidade material: Do que ficou exposto, conclui-se ainda que a norma constante do artigo 7º DL n°
218/99 impede a boa administração da justiça, a produção de prova pelas partes, precludindo assim o direito de defesa dos RR. Torna-se ainda impossível a realização de diligências que o tribunal possa considerar fundamentais, tais como a inspecção judicial ao local com reconstituição dos factos, como muitas vezes acontece neste tipo de acções. O exposto implica a inexistência de um processo equitativo a que as partes têm direito, pelo que, por inobservância do preceituado no artigo 20°, n.º 1 e 4 da Constituição, o citado artigo 7º padece ainda de inconstitucionalidade material. Com fundamento na inconstitucionalidade orgânica e material da norma constante do artigo 7º do DL n.º 218/99 de 15-6, impõe-se a recusa da sua aplicação, recorrendo-se, na falta de regra especial à regra geral prevista no artigo 74°,
2 CPC.
[...].”
2. Desta decisão foi interposto pelo representante do Ministério Público junto daquele Tribunal, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso obrigatório de constitucionalidade, para apreciação da conformidade com a Constituição da norma desaplicada.
3. Já neste Tribunal foi o Ministério Público, recorrente, notificado para alegar, o que fez, tendo concluído nos seguintes termos:
“1 – Não colide com o artigo 20º da Constituição da República Portuguesa a norma que, em sede de determinação do elemento de conexão relevante para fixação da competência territorial, opta por local diverso daquele em que ocorreu o facto gerador dos danos invocados como base da pretensão, já que as regras procedimentais em vigor facultam às partes e ao tribunal a realização das diligências probatórias necessárias à justa composição do litígio.
2 – Situa-se no âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República a matéria atinente à «competência dos tribunais», não sendo constitucionalmente admissível que norma inserida em diploma não credenciado por autorização legislativa disponha inovatoriamente nesta sede, nomeadamente derrogando a regra de competência territorial imperativa estabelecida no n.º 2 do artigo 74º do Código de Processo Civil.
3 – Configura-se como acção destinada a efectivar a responsabilidade civil extra-contratual, para os efeitos de tal preceito legal, aquela em que certo estabelecimento hospitalar exige do Fundo de Garantia Automóvel o ressarcimento das despesas decorrentes do tratamento ou assistência à vítima de acidente de viação, invocando – como núcleo essencial da causa de pedir complexa em que se funda a pretensão – a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual do desconhecido autor do acidente.
4 – Termos em que – face a tal configuração da acção declaratória – é inovatória, relativamente ao disposto imperativamente no n.º 2 do artigo 74º do Código de Processo Civil, a interpretação normativa que – fundando-se na norma desaplicada – considera territorialmente competente o tribunal da sede da entidade credora.
5 – Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade orgânica, formulado pela decisão recorrida.”
4. Notificado das alegações do Ministério Público, o primeiro recorrido respondeu, concluindo deste modo as suas alegações:
“1. O art. 7º DL 218/99, de 15 de Junho padece de inconstitucionalidade orgânica, com os fundamentos das doutas alegações/conclusões do MP;
2. Note-se, ainda, a disparidade de critério do legislador no que à competência territorial concerne, pondo em confronto o art. 6º e o art. 7º do DL 218/99: aqui é o lugar da sede da instituição, ali é o da comarca onde ocorreu o sinistro![...]”
Corridos os vistos legais, cumpre decidir
II. Fundamentação
5. O presente recurso, interposto ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, tem por objecto a apreciação da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 7º do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, a que o Tribunal de Família e de Menores e de Comarca do Barreiro recusou aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade. Tendo o referido diploma sido emitido ao abrigo do disposto no artigo 198º, n.º 1, alínea a), da Constituição, coloca-se, nomeadamente, a questão de saber se o Governo carecia de autorização da Assembleia da República para decretar o preceito em causa, atento o disposto na primeira parte da alínea p) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição. É o seguinte o teor desse preceito:
“Artigo 7º Competência territorial
As acções previstas no presente diploma devem ser propostas no tribunal da sede da entidade credora.”
6. Ora, esta questão, relativa à constitucionalidade da norma que define o tribunal competente para as acções de cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Sistema Nacional de Saúde em virtude dos cuidados de saúde prestados, não é nova na jurisprudência do Tribunal Constitucional, que teve já oportunidade - no Acórdão n.º 58/03 (publicado no Diário da Republica, II Série, de 19 de Abril de 2003, pgs. 6024 e sgs.) - de com ela se confrontar, tendo concluído pela inconstitucionalidade orgânica da referida norma. Começando por esta questão de inconstitucionalidade orgânica, ponderou, naquele aresto, este Tribunal:
“[...]
7. A resposta à questão da eventual violação do preceito da primeira parte da alínea p) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição pela norma que constitui o objecto do presente recurso implica a análise do carácter inovatório desta mesma norma face à norma do Código de Processo Civil que seria potencialmente aplicável na determinação do foro territorialmente competente para a acção de que emergiram os presentes autos. Tal carácter inovatório corresponde ao critério de aferição da conformidade constitucional seguido no acórdão deste Tribunal n.º 376/96, de 6 de Março
(publicado no Diário da República, II Série, n.º 160, de 12 de Julho de 1996, p.
9416) [...].
8. No caso da norma que constitui o objecto do presente recurso, considerou o tribunal recorrido que ela inova relativamente à norma que, na sua falta, se aplicaria à acção [...]: a norma do artigo 74º, n.º 2, do Código de Processo Civil (reguladora da competência territorial para a acção destinada a efectivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito ou fundada no risco). E inova, porque a norma que constitui o objecto do presente recurso estabelece como territorialmente competente o tribunal da sede da entidade credora e a norma do artigo 74º, n.º 2, do Código de Processo Civil estabelece como territorialmente competente o tribunal do lugar onde o facto ocorreu.
[...] afigura-se que, independentemente da posição que se adopte acerca da precisa natureza da acção dos autos e dos concretos elementos constitutivos da respectiva causa de pedir, a circunstância de se tratar de uma acção destinada a exigir o pagamento de uma indemnização por serviços prestados a uma vítima de acidente de viação, sem que entre o autor e o réu tivesse sido previamente celebrado qualquer contrato e sem que o réu se tivesse, de algum modo, obrigado em virtude de negócio jurídico [...], sempre redundaria na impossibilidade de aplicação do disposto no artigo 74º, n.º 1, do Código de Processo Civil, dado que este preceito tem em vista a responsabilidade contratual ou, eventualmente, a responsabilidade emergente de negócio jurídico em sentido amplo. Portanto, se a norma que constitui o objecto do presente recurso não estivesse em vigor, ao intérprete apenas restaria a opção entre o critério estabelecido no já mencionado artigo 74º, n.º 2, do Código de Processo Civil (lugar onde o facto ocorreu) – que foi aquele que na decisão recorrida se considerou potencialmente aplicável – e, caso se considerasse que a responsabilidade do réu dos presentes autos não deriva de facto ilícito nem se funda no risco, o critério geral consagrado no artigo 85º, n.º 1, do mesmo Código (domicílio do réu). Ora, optando-se por um ou por outro destes critérios, a solução seria sempre diversa daquela a que se chega pela aplicação do artigo 7º do Decreto-Lei n.º
218/99, de 15 de Junho, pois que este preceito estabelece como critério de aferição da competência em razão do território o da sede da entidade credora. Conclui-se, assim, que este preceito inova relativamente à norma do Código de Processo Civil que seria potencialmente aplicável na determinação do foro territorialmente competente para a acção de que emergiram os presentes autos, pelo que infringe o disposto no artigo 165º, n.º 1, alínea p), da Constituição.
9.Atingida esta conclusão, desnecessário se torna analisar a questão da inconstitucionalidade material, também colocada na decisão recorrida [...].”
É esta jurisprudência, cuja inteira validade se mantém e é aplicável ao caso, que, uma vez mais, há que reiterar.
III. Decisão
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 165º, n.º 1, alínea p), da Constituição, a norma do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, negando provimento ao presente recurso.
Lisboa, 14 de Maio de 2003 Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Luís Nunes de Almeida