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Processo n.º 783/02
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
O A., impugnou judicialmente, junto do Tribunal do Trabalho de Tomar, o despacho da Subdelegada do IDICT – Instituto de Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho, de 19 de Dezembro de
2001, que lhe aplicou a coima de 2 300 000$00, por, ao não registar correctamente as horas de início e termo do trabalho suplementar, ter infringido o disposto no artigo 4.º e nos n.ºs 1 e 3 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 421/83, de 2 de Dezembro, com a nova redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 398/91, de 16 de Outubro, e pela Lei n.º 118/99, de 11 de Agosto, o que constitui “contra-ordenação muito grave”, nos termos do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 421/83, na aludida redacção, punível, por negligência, por força da alínea d) do n.º 4 do artigo 7.º, conjugada com a alínea d) do n.º 1 do artigo 9.º, ambos da Lei n.º 116/99, de 4 de Agosto, com coima de 1 400 000$00 a 4 900 000$00, considerando que a arguida empregava 3818 trabalhadores (segundo o Mapa de Quadro de Pessoal de 1999) e apresentou, no ano de 1998, um volume de negócios de 266 223 029 000$00.
Por sentença de 15 de Abril de 2002 foi o recurso julgado improcedente e totalmente confirmada a decisão recorrida.
Dessa sentença interpôs o recorrente recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, por acórdão de 30 de Outubro de 2002, negou provimento a esse recurso.
Deste acórdão interpôs o recorrente recurso para este Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), com a indicação de que pretendia que fosse apreciada a inconstitucionalidade do artigo 125.º do Código do Procedimento Administrativo, interpretado como aplicável ao processo contra-ordenacional, por pretensa violação dos artigos 32.º, n.º 10, e 165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição da República Portuguesa (doravante designada por CRP), e dos artigos 4.º, n.º 2, alínea c), 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º,
12.º e 13.º do Decreto-Lei n.º 102/2000, de 2 de Junho, “que estabelecem respectivamente a competência do Inspector-Geral do Trabalho para aplicar coimas correspondentes às contra-ordenações laborais e actividade sancionatória e inspectiva da Inspecção-Geral do Trabalho”, por pretensa violação do artigo
165.º, n.º 1, alínea d), da CRP.
Admitido o recurso, o recorrente apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“1. O artigo 125.° do Código de Procedimento Administrativo é inconstitucional se interpretado no sentido de que a sua previsão inclui matéria contra-ordenacional. Naquela interpretação, o artigo 125,°, concebido ao abrigo de uma autorização legislativa que não abrange o artigo 165.°, n.° 1, alínea d), da CRP, viola-o, porquanto a autorização legislativa ao abrigo da qual foi feito não abrange a alínea d) do citado n.° l do artigo 165.°, mas sim a alínea u) do mesmo número e artigo da Lei Fundamental.
2. Só uma interpretação restritiva do artigo 125.° do CPA, no sentido de que o mesmo se não aplica em processo de contra-ordenação, está conforme com a Constituição. O mesmo é dizer que o artigo 125.° do CPA, interpretado no sentido da sua aplicação em processo de contra-ordenação, na medida em que viola o direito de defesa do arguido, garantido pelo artigo 32.°, n.° 10, da Constituição, é materialmente inconstitucional.
3. O Decreto-Lei n.º 102/2000, de 2 de Junho, é material, orgânica e formalmente inconstitucional na parte em que atribui ao Senhor Inspector-Geral do Trabalho competência para aplicação de coimas, cf. artigo 4.°, n.° 2, alínea c), e à Inspecção-Geral do Trabalho o desenvolvimento da acção sancionatória, cf. artigos 6.° a 13.° do citado diploma.
4. Tais inconstitucionalidades advêm do facto de a matéria neles vertida integrar regime geral de actos ilícitos de ordenação social e respectivo processo, sendo que por isso teria que ser objecto de Lei da Assembleia da República ou de Decreto-Lei do Governo se este para tal estivesse autorizado, conforme resulta da conjugação dos artigos 165.°, n.° 1, alínea d), e 198.°, ambos da CRP.”
O Ministério Público apresentou contra-alegações, concluindo:
“1 – A reserva de competência legislativa da Assembleia da República em sede de contra-ordenações apenas envolve a definição do «regime geral» vigente, não implicando a tipificação de cada infracção ou a definição de quais as entidades administrativas competentes para intervir no processo contra-ordenacional.
2 – Não implica qualquer violação dos direitos de audiência e defesa do arguido em processo contra-ordenacional a interpretação normativa que considera subsidiariamente aplicável à fundamentação da decisão da autoridade administrativa o preceituado no artigo 125.° do Código do Procedimento Administrativo, não havendo razão para considerar, do ponto de vista jurídico-constitucional, obrigatória a aplicação subsidiária da norma constante do artigo 374.° do Código de Processo Penal, relativo ao dever de fundamentação das decisões judiciais tomadas no âmbito penal.
3 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
As normas cuja constitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada foram objecto de dois recentes acórdãos deste Tribunal Constitucional – Acórdão n.º 50/03, da 3.ª Secção (este relativo apenas à norma do artigo 125.º do Código do Procedimento Administrativo; publicado no Diário da República, II Série, n.º 90, de 16 de Abril de 2003, pág. 5930), e Acórdão n.º 62/03, da 1.ª Secção –, tendo ambos concluído no sentido da não inconstitucionalidade, solução que – adiante-se desde já – também será aqui acolhida, tal como a fundamentação nesses arestos desenvolvida.
2.1. Quanto à norma do artigo 125.º do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro (doravante designado por CPA), o que o recorrente, em rigor, impugna é tão-só o segmento do seu n.º 1 (do seguinte teor: “1. A fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, que constituirão neste caso parte integrante do respectivo acto”) que permite a fundamentação por remissão e na interpretação de que tal modo de fundamentação é aplicável às decisões sancionatórias no âmbito do ilícito de mera ordenação social.
Consome o recorrente grande parte das suas alegações com considerações sobre a natureza jurídica desse tipo de ilícito e com a sua proximidade com o direito penal, que justificaria, a seu ver, que a fundamentação das decisões que apliquem coimas por contra-ordenações, referidas no artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, deveria seguir os requisitos do artigo 374.º do Código de Processo Penal, com postergação da fundamentação por remissão consentida pelo n.º 1 do artigo 125.º do CPA. Não foi esse o entendimento do tribunal recorrido, entendimento cuja correcção, na perspectiva da interpretação do direito ordinário, não cabe a este Tribunal Constitucional sindicar, cumprindo-lhe tão-só controlar se esse entendimento é conforme com os princípios e normas constantes da Constituição da República Portuguesa (CRP).
O recorrente imputa à interpretação normativa questionada vícios de inconstitucionalidade orgânica, por o CPA não ter sido editado ao abrigo de autorização legislativa concedida com invocação da alínea d) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP (que reserva à Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, competência para legislar sobre “regime geral de punição
(...) dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo”), e de inconstitucionalidade material, por violação do n.º 10 do artigo 32.º da CRP, segundo o qual: “Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa”.
Nenhuma destas imputações procede.
2.1.1. Quanto à inconstitucionalidade orgânica, como se assinala na contra-alegação do Ministério Público, “não traduz obviamente violação da reserva de competência legislativa da Assembleia da República a circunstância de os tribunais, na sua actividade de interpretação, integração e aplicação do direito, quando se considerem confrontados com uma lacuna de regulamentação legal, a integrarem através de outras normas legais em vigor: carece, deste modo, de sentido a alegada violação do artigo 165°, n° 1, alínea d), da Constituição da República Portuguesa decorrente da aplicação subsidiária, no âmbito do processo contra-ordenacional, em caso nele não expressamente previsto, do regime constante do artigo 125.° do Código do Procedimento Administrativo – sendo óbvio que tal aplicação normativa, naturalmente de exclusiva responsabilidade do tribunal judicial que a efectivou, não pode representar a «violação» da reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República (e sendo certo que o próprio Código do Procedimento Administrativo foi aprovado na sequência de uma autorização legislativa!)”. E, por outro lado, o âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República em sede de contra-ordenações e respectivo processo apenas abrange o respectivo regime geral.
A propósito desta questão, expendeu-se no citado Acórdão n.º 50/03:
“5. Equacionada a questão de constitucionalidade objecto do presente recurso, pode desde já afirmar-se que a posição sustentada pela recorrente – e que significa que às decisões proferidas por uma autoridade administrativa no
âmbito de um processo contra-ordenacional só podem ser aplicadas normas editadas ao abrigo do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição, sob pena de inconstitucionalidade orgânica –, carece de fundamento.
Senão, vejamos a que conduziria tal entendimento.
O artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 433/82 prescreve que o processamento das contra-ordenações e a aplicação das coimas e das sanções acessórias competem às autoridades administrativas. Por seu turno, o artigo seguinte estabelece as regras que determinam a competência em razão da matéria das mesmas autoridades administrativas.
De acordo com essas regras, tal competência pertencerá às autoridades indicadas pela lei que prevê e sanciona as contra-ordenações; no seu silêncio, serão competentes os serviços designados pelo membro do Governo responsável pela tutela dos interesses que a contra-ordenação visa defender ou promover. Por último, o mesmo artigo 34.º permite que os dirigentes dos serviços aos quais tenha sido atribuída a competência a deleguem, nos termos gerais, nos dirigentes de grau hierarquicamente inferior.
Ora, poder-se-ia pensar que os aspectos de regime jurídico-administrativo aplicáveis no âmbito de um processo de contra-ordenação são-no apenas em virtude de uma norma remissiva para esse efeito contida em diploma credenciado por autorização parlamentar emitida ao abrigo do artigo
165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição, como sucedeu com o Decreto-Lei n.º
433/82.
Imagine-se, todavia, que uma lei que prevê e sanciona uma contra-ordenação determina que a competência em razão da matéria, para o processamento da contra-ordenação e da aplicação da coima e sanções acessórias que no caso caibam, pertence a um órgão colegial. Faz sentido admitir sequer a possibilidade de as regras de funcionamento desse órgão, no silêncio daquela lei, não se encontrarem sujeitas ao disposto nos artigos 14.º e seguintes do Código do Procedimento Administrativo? Ou sustentar que o funcionamento dos
órgãos administrativos colegiais deixa de estar sujeito às regras previstas no Código do Procedimento Administrativo, quando esses órgãos apliquem coimas, a não ser que exista uma norma emitida ao abrigo do disposto no artigo 165.º, n.º
1, alínea d), da Constituição, que remeta para o mesmo Código?
Parece evidente que a resposta a estas questões não pode deixar de ser negativa. Tal resposta negativa é, aliás, mera decorrência lógica da opção legislativa de atribuir competência às autoridades administrativas para o processamento do processo contra-ordenacional e aplicação de coimas, opção essa que o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 158/92 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21.º vol., págs. 713 e seguintes), considerou já isenta de censura constitucional, atendendo à diferença dos princípios jurídico-constitucionais que regem a legislação penal, por um lado, e aqueles a que se submetem as contra-ordenações, por outro (desde que esteja garantido, naturalmente, o direito de impugnação judicial das decisões de autoridades administrativas que hajam aplicado coimas, o que agora não está em causa).
6. O mesmo se pode dizer no caso dos autos, nos quais se coloca a questão da aplicação (directa) do artigo 125.º do Código do Procedimento Administrativo à fundamentação de uma decisão de imposição de uma coima por uma autoridade administrativa.
Também neste caso não é passível de censura, numa perspectiva jurídico-constitucional, o entendimento segundo o qual as autoridades administrativas, competentes, nos termos da lei, para o processamento das contra-ordenações e para a aplicação de coimas, não perdem a sua natureza jurídico-administrativa e, nessa medida, não deixam de estar submetidas às regras e princípios a que devem obedecer o funcionamento dos órgãos administrativos e a respectiva actividade, previstos no Código do Procedimento Administrativo, ressalvadas as especialidades previstas no regime geral das contra-ordenações ou em diplomas especiais.
Este entendimento é, aliás, aquele que de modo mais correcto harmoniza o disposto no artigo 2.º, n.ºs 6 e 7, do Código do Procedimento Administrativo com o artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 433/82, na redacção do Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro.
De acordo com o disposto no artigo 2.º, n.ºs 6 e 7, do Código do Procedimento Administrativo, as disposições do Código relativas à organização e
à actividade administrativa são aplicáveis a todas as actuações da Administração Pública no domínio da gestão pública, sendo as restantes disposições do mesmo Código aplicáveis supletivamente aos procedimentos especiais, no domínio da actividade de gestão pública, desde que não envolvam diminuição das garantias dos particulares (cf. Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim, Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2.ª edição, Coimbra, 1997, págs. 77 e 80).
Por seu turno, o artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 433/82 estabelece, como se viu, que o processamento das contra-ordenações e a aplicação das coimas e das sanções acessórias competem às actividades administrativas, ressalvadas as especialidades previstas no mesmo diploma.
Da leitura conjunta destes preceitos pode concluir-se, desde logo, que as disposições relativas a organização e actividade administrativas (as primeiras contidas na Parte II e as segundas na Parte IV do Código do Procedimento Administrativo) se aplicam directamente a todas as actuações da Administração Pública no domínio da gestão pública, e, nessa medida, também às autoridades administrativas competentes para o processamento das contra-ordenações e aplicação das coimas; mas que as disposições procedimentais
(aquelas que se encontram previstas na Parte III do Código), aplicáveis supletivamente aos procedimentos especiais, também só supletivamente valem para o processamento das contra-ordenações pelas autoridade administrativas competentes (embora apenas na medida em que não envolvam uma diminuição da garantia dos particulares).
A verdade, todavia, é que, no caso dos autos não é sequer necessário tomar posição sobre a questão de saber se o processo de contra-ordenação se configura, pelo menos até à fase de decisão de aplicação da coima pela autoridade administrativa, como um procedimento especial para efeitos do disposto no artigo 2.º, n.º 7, do Código do Procedimento Administrativo. É que não foi por efeito de qualquer remissão que a decisão recorrida aplicou o disposto no n.º 1 do artigo 125.º do Código do Procedimento Administrativo; aplicou-o directamente, considerando estar ainda em causa uma actividade de natureza administrativa.
É, aliás, muito duvidoso que a norma impugnada se possa considerar apenas uma norma procedimental ou apenas uma norma sobre trâmites processuais; a própria colocação do preceito, que o Código do Procedimento Administrativo inclui na sua Parte IV, respeitante à actividade administrativa, e não na Parte III, relativa ao procedimento administrativo, revela não ter sido assim considerada pelo legislador.”
Por seu turno, ainda sobre a questão ora em causa
(“inconstitucionalidade orgânica” da aplicação do artigo 125.º, n.º 1, do CPA), o Acórdão n.º 62/03 desenvolveu a seguinte argumentação para concluir pela improcedência desse vício:
“A tese do recorrente pode sintetizar-se assim: aos requisitos das decisões administrativas punitivas no âmbito de um processo contra-ordenacional só podem ser aplicadas normas editadas ao abrigo do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição, ou seja, aquele que inclui na reserva relativa de competência da Assembleia da República legislar em matéria de
«regime geral de punição das infracções disciplinares, bem como dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo», o que não seria o caso.
Sobre esta específica competência da Assembleia da República escreveu-se no Acórdão n.º 56/84, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3.º vol., págs. 153 e seguintes:
«12 – Salvo autorização ao Governo, igualmente pertence à Assembleia da República – artigo 168.º, n.º 1, alínea d) – a competência para legislar sobre o regime geral de punição dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo. A competência exclusiva do Parlamento limita-se, neste caso, ao regime geral. Razões de ordem histórica e razões de sistema confirmam esta interpretação, de imediato deduzível da letra do preceito.
Na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional discutiu-se a nova formulação proposta para a alínea c) do n.º 1 do artigo 168.º: “definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos e regime geral de punição das infracções disciplinares e dos actos ilícitos de mera ordenação social, bem como do processo criminal”. Como entremostra a discussão travada – Diário da Assembleia da República, 2.ª Sessão Legislativa, 2.ª Série, Suplemento ao n.º 44, págs. 904-(1) e 904-(2) – acabou por se assentar na sua desmultiplicação em duas alíneas, as actuais alíneas c) e d), ficando, segundo esta última alínea, no domínio da reserva legislativa da Assembleia da República o regime geral do ilícito de mera ordenação social e, pela mesma lógica, o regime geral do respectivo processo ou as suas grandes normas adjectivas.
Esta interpretação é ainda confirmada sistematicamente a dois níveis. Por um lado, é significativo que a alínea d) do n.º 1 do artigo 168.º, ao invés do que sucede com a alínea c) do mesmo n.º 1, se refira expressamente a regime geral. Por outro lado, o artigo 229.º, alínea m), da Constituição atribui às regiões autónomas o poder de definir actos ilícitos de mera ordenação social e respectiva punição, pelo que ao Governo, e com referência a todo o território do Estado, se não pode deixar de reconhecer igual competência. Mais exactamente, ao Governo, dentro da lei-quadro (Decreto-Lei n.º 433/82, emitido no uso da autorização conferida pela Lei n.º 24/82, de 23 de Agosto), pertence, no exercício de competência legislativa concorrente com a da Assembleia da República, delinear ilícitos contra-ordenacionais, estabelecer a concernente punição e moldar regras secundárias do processo contra-ordenacional.
Com tudo isto não se quer significar que ao Governo seja ilícito revogar parcialmente o Decreto-Lei n.º 433/82. Ponto é que estejam em equação normas desenquadradas do regime geral, substantivo ou adjectivo, do ilícito de mera ordenação social.»
Esta doutrina veio a ser seguida por uma orientação jurisprudencial sempre uniforme deste Tribunal (cf. Acórdão n.º 158/92 e outros aí citados, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21.º vol., págs. 713 e seguintes).
E dela resulta, como se viu, que, em matéria adjectiva, só a edição de normas ditas primárias, como fazendo parte do regime geral do ilícito de mera ordenação social, se insere na competência reservada da Assembleia da República.
O Decreto-Lei n.º 433/82, editado pelo Governo, sob autorização legislativa, contém essas normas primárias, substantivas e adjectivas; mas não estará obviamente excluído que nesse diploma se contenham outras normas que não comunguem daquela natureza.
Entende-se, porém, que os requisitos das decisões condenatórias constantes do artigo 58.º daquele decreto-lei, com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro (tal como do artigo 56.º do Decreto-Lei n.º 421/85, de 26 de Novembro, então vigente, que, aprovado pelo Governo no uso de competência própria, estabelecia disposições relativas às contra-ordenações laborais), traduzem uma exigência fundamental em matéria de processo contra-ordenacional.
Com efeito, os direitos de defesa dos acoimados ali tutelados determinam seguramente a qualificação da norma como norma primária do processamento das contra-ordenações, assim integrando o regime geral de punição dos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo.
Isto não obstante a Lei n.º 116/99, de 4 de Agosto, que aprova o regime geral das contra-ordenações laborais, nada dispor a este respeito, o que se deverá ao facto de, nos termos do artigo 2.º desse regime, ser subsidiariamente aplicável o regime geral das contra-ordenações.
A verdade, porém, é que se nesse regime geral se impõe que as decisões condenatórias obedeçam a determinados requisitos já nele se não exige a forma por que eles devam ser preenchidos.
E tal como a exigência constitucional de fundamentação expressa dos actos administrativos se não deixa de cumprir com a remissão para peça do processo (v. g. parecer ou proposta) que contenha tal fundamentação também se obedecerá ao disposto no artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 433/82 se a decisão condenatória remeter para proposta que contenha os requisitos ali previstos.
Nesta medida, nada impediria que o Governo, no exercício de competência própria, editasse norma que previsse a forma remissiva para se cumprir o disposto no citado artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 433/82.
Mas, assim sendo, não se inserindo na competência reservada da Assembleia da República ao abrigo do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição legislar em tal matéria, nada impede que se lance mão do disposto no artigo 125.º do Código do Procedimento Administrativo respeitante à admissibilidade da fundamentação dos actos administrativos por remissão, razão por que a norma do artigo 125.º do CPA, interpretada no sentido de ela ser aplicável às decisões condenatórias em processo contra-ordenacional, não a faz incorrer em violação do citado preceito constitucional.”
Por todas estas razões, conclui-se pela improcedência do primeiro vício invocado pelo recorrente.
2.1.2. Quanto à pretensa inconstitucionalidade material do mesmo artigo 125.º, já no Acórdão n.º 62/03, acabado de citar, se consignou que tal norma “não viola os direitos de defesa do arguido (artigo 32.º, n.º 10, da CRP), uma vez que a aludida forma de fundamentação da decisão condenatória não impede – como aliás se vê que, no caso, não impediu – o exercício daqueles direitos, bem sabendo o acoimado os factos por que lhe é imposta uma coima e o direito aplicado”.
Aliás, como se assinala nas contra-alegações do Ministério Público, “o regime consagrado no artigo 374.° do Código de Processo Penal é reflexo – não tanto do princípio constitucional das «garantias de defesa» – mas da imposição constitucional de fundamentação das decisões judiciais, expresso no artigo 205.°, n.° 1, da Constituição”, sendo “evidente e incontroverso que a decisão administrativa que aplica uma coima não se configura como decisão jurisdicional – o que implica que o respectivo (e indispensável) dever de fundamentação há-de ir buscar suporte e apoio ao artigo 268.°, n.° 3, da Lei Fundamental, carecendo, consequentemente, não da fundamentação legalmente imposta às sentenças penais, mas de uma «fundamentação expressa e acessível»”.
Por outro lado, decorre de jurisprudência constitucional reiterada que o próprio dever de fundamentação das decisões judiciais (assente directamente no citado artigo 205.°, n.° 1, da CRP) não tem de ter um regime estritamente idêntico quanto a todas elas, tendo o Tribunal Constitucional já entendido que, na área cível, a sua intensidade pode ser menor do que a imposta, em sede penal, pelo referido artigo 374.°, pelo que, perante a indiscutível autonomia estrutural entre direito penal e direito contra-ordenacional, não vemos por que razão a própria Lei Fundamental imporia a vigência obrigatória, na fase administrativa do processo contra-ordenacional, de um regime estritamente idêntico ao que vigora relativamente às decisões judiciais proferidas no domínio criminal.
Por último, reitera-se que o recorrente não conseguiu minimamente demonstrar em que medida é que a aplicabilidade do regime decorrente do artigo 125.° do CPA inviabiliza os direitos de audiência e defesa do arguido em processo contra-ordenacional, assegurados pelo n.° 10 do artigo
32.° da CRP: o arguido foi ouvido antes de ter sido administrativamente sancionado, e a fundamentação, ainda que por remissão, constante da decisão administrativa sancionatória, permitiu-lhe efectivamente exercer a sua defesa, nomeadamente através da interposição de recurso jurisdicional.
Improcede, assim, esta segunda arguição de inconstitucionalidade desenvolvida pelo recorrente.
2.2. Quanto à inconstitucionalidade orgânica das normas do Decreto-Lei n.º 102/2000, atrás identificadas, valem aqui as considerações expendidas supra, no ponto 2.1.1, quanto ao alcance da reserva de competência legislativa em causa.
Ora, como é óbvio, não respeita ao “regime geral” de punição dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo a definição das específicas e particulares competências do Inspector-Geral do Trabalho e dos respectivos serviços, realizada pelo Decreto-Lei n.° 102/2000.
Trata-se de questão igualmente tratada no citado Acórdão n.º 62/03, que concluiu pela inexistência das invocadas inconstitucionalidades, com a seguinte argumentação, que se acolhe:
“4 – Sustenta, ainda, o recorrente que o Decreto-Lei n.º 102/2000, de 2 de Junho, é inconstitucional material, orgânica e formalmente, considerando que
«tais inconstitucionalidades advêm do facto de a matéria neles vertida integrar regime geral de actos ilícitos de ordenação social e respectivo processo, sendo que por isso teria que ser objecto de Lei da Assembleia da República ou de Decreto-Lei do Governo se este para tal estivesse autorizado, conforme resulta da conjugação dos artigos 165.º, n.º 1, alínea d), e 198.º, ambos da CRP».
Sendo, para o recorrente, todo o diploma mencionado inconstitucional, não deixa ele de destacar as normas constantes dos artigos
4.º, n.º 2, alínea c), e 6.º a 13.º.
Subjaz, deste modo, ao entendimento do recorrente a ideia de que as matérias, todas as matérias, que respeitem à punição dos ilícitos de mera ordenação social são da competência legislativa da Assembleia da República
(salvo autorização ao Governo).
Ora, como se disse e é jurisprudência firme deste Tribunal, só é da competência da Assembleia da República (ou do Governo com autorização legislativa) legislar em matéria de regime geral de punição de ilícitos de mera ordenação social e respectivo processo.
O Decreto-Lei n.º 102/2000, de 2 de Junho, respeita ao desenvolvimento e à protecção das condições de trabalho, em que a Inspecção-Geral do Trabalho «desempenha uma função indispensável na regularização de aspectos essenciais do mercado de trabalho e contribui para realizar a responsabilidade do Estado de assegurar a concorrência económica equilibrada entre as empresas» (cf. respectivo preâmbulo), não podendo assim afirmar-se que a matéria que ele (todo ele) regula se insira na competência da Assembleia da República, nos termos do artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição.
Mas ainda que centremos a nossa análise nas normas dos artigos 4.º, n.º 2, alínea c), e 6.º a 13.º do Decreto-Lei supra referido, também aí não assiste razão ao recorrente.
O artigo 4.º, n.º 2, alínea c), confere ao Inspector-Geral do Trabalho competência para aplicar coimas, multas e sanções acessórias correspondentes às contra-ordenações e contravenções laborais.
Ora, sobre a competência em razão da matéria para aplicar coimas, o artigo 34.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82 limita-se a dispor que ela
«pertencerá às autoridades determinadas pela lei que prevê e sanciona as contra-ordenações».
Remete-se, assim, para a lei que define um determinado tipo de contra-ordenação a [determinação da] competência para aplicar a respectiva coima, sendo certo que o Tribunal Constitucional, desde o seu citado Acórdão n.º
56/84 (cf., ainda, Acórdão n.º 110/95, in Acórdãos do Tribunal Constitucional,
30.º vol., págs. 627 e seguintes) firmou já doutrina no sentido de que a criação ex novo de contra-ordenações se insere na competência concorrente da Assembleia da República e do Governo.
Não faz, pois, parte do regime geral de punição do ilícito de mera ordenação social a definição das entidades competentes para punir esse ilícito.
Acresce que já a Lei n.º 116/99 atribuía, no seu artigo 17.º, à Inspecção-Geral do Trabalho a competência para o processamento das contra-ordenações laborais e ao Inspector-Geral do Trabalho a competência para aplicação das coimas correspondentes, competência esta que poderia ser delegada nos delegados ou subdelegados do IDICT.
Não se verifica, assim, qualquer inconstitucionalidade na norma do artigo 4.º, n.º 2, alínea c), do Decreto-Lei n.º 102/2000.
No que concerne às normas constantes dos artigos 6.º a 13.º do Decreto-Lei n.º 102/2000, de 2 de Junho, inseridas no Capítulo II, reportam-se elas à acção inspectiva, matéria que igualmente nada tem que ver com a definição do regime geral das contra-ordenações laborais.
É certo que algumas dessas normas (artigos 6.º a 9.º) se referem ao processamento das contra-ordenações.
A verdade, porém, é que nenhuma delas, que se possa considerar norma primária adjectiva, altera o que se dispõe no Decreto-Lei n.º 433/82, sendo ainda evidente que algumas correspondem mesmo ao disposto nos artigos 19.º e
20.º da citada Lei n.º 116/99 e a que consta do artigo 8.º, n.º 2, manda aplicar ao processamento iniciado com a participação «o regime geral das contra-ordenações».
Não se vislumbra, assim, qualquer inconstitucionalidade das citadas normas.”
É conclusão que ora se reitera.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucionais a norma do n.º 1 do artigo 125.º do Código do Procedimento Administrativo, interpretada no sentido de que a fundamentação por remissão nela consentida é aplicável à decisão sancionatória de acto ilícito de mera ordenação social, nem as normas dos artigos 4.º, n.º 2, alínea c), e 6.º a 13.º do Decreto-Lei n.º 102/2000, de 2 de Junho; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 20 de Maio de 2003.
Mário José de Araújo Torres (Relator)
Maria Fernanda Palma
Benjamim Silva Rodrigues
Paulo Mota Pinto
Rui Moura Ramos