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Proc. n.º 728/02 Acórdão nº 257/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. participou criminalmente contra B. e mulher, requerendo também a sua constituição como assistente (fls. 18 e seguinte).
Na sequência de tal queixa, o Ministério Público veio a deduzir acusação contra B., imputando-lhe a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo artigo 143º, n.º 1, do Código Penal
(fls. 63 e seguinte).
Também A. deduziu acusação particular contra o arguido (fls. 70 e seguinte) e formulou pedido de indemnização civil (fls. 73 e seguintes).
O arguido ainda requereu a abertura de instrução (fls. 82 e seguinte), mas o juiz indeferiu o requerido, por despacho de fls. 93 e seguinte.
Foi apresentada contestação ao pedido de indemnização civil (fls.
104 e seguinte), bem como contestação-crime (fls. 106 e seguinte).
2. Por sentença de 10 de Fevereiro de 2001 do juiz do 1º Juízo Criminal do Tribunal de Coimbra, julgou-se, entre o mais, procedente a acusação, condenando-se B. pela autoria material de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo artigo 143º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 150 dias de multa (fls. 150 e seguintes).
3. B. interpôs recurso desta sentença para o Tribunal da Relação de Coimbra (fls. 167 e seguintes), tendo o Ministério Público respondido (fls. 193 e seguintes) e emitido parecer no sentido do improvimento do recurso (fls. 231 e seguintes).
4. Por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21 de Novembro de
2001, julgou-se parcialmente procedente o recurso, reduzindo-se a pena aplicada ao arguido para 90 dias de multa (fls. 247 e seguintes).
5. Notificado da conta de custas, veio o arguido B. dela reclamar, requerendo a sua reforma (fls. 269 e seguintes).
O Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da reforma pedida (fls. 281)
Em 6 de Março de 2002 foi proferido despacho do seguinte teor (fls.
283):
“Reclamação da conta de fls. 269 e segs.: O reclamante sabe bem que a conta se encontra correctamente elaborada e de acordo com o nosso despacho de fls. 192, justificado a fls. 228, 2ª parte (art.
514º, 1 do Cód. Proc. Penal). Porque lhe foi rejeitado o recurso, nessa matéria respeitante, pelo tribunal superior, vem agora utilizar este meio para levantar novamente a questão. Pois bem, indefere-se a reclamação porquanto a conta se encontra correctamente elaborada de acordo com a lei (preceito legal citado) e com o nosso entendimento plasmado nos despachos referidos.
[...].”
B. requereu a reforma deste despacho (fls. 285 e seguinte), tendo tal requerimento sido indeferido por despacho de fls. 287.
Do despacho que lhe indeferiu a reclamação da conta, interpôs B. recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo nas conclusões da motivação respectiva sustentado o seguinte (fls. 289 e seguintes):
“1ª. Os custos das transcrições são da responsabilidade do Estado.
2ª. No caso dos Autos, o Tribunal da Relação rejeitou já o recurso interposto pelo ora recorrente quanto a esta matéria com a fundamentação de que ele não havia sido condenado em custas e que por isso não tinha legitimidade para recorrer.
3ª. O Juiz «a quo» perante a reclamação da conta mal elaborada, deveria tê-la mandado reformar e elaborar de acordo com o Acórdão da Relação, o que não faz.
4ª. As custas em que, por outro lado, condenou o reclamante ao ter deduzido tal reclamação, não são devidas, porquanto assim se julga, assiste total razão ao reclamante.
5ª. Ao recorrente não deve ser exigido o pagamento dos custos da transcrição porque, para além de ter sido declarado não responsável por eles, pelo Tribunal da Relação, seria uma tal decisão ilegal e inconstitucional.
6ª. Ao recorrente não deve ser «cobrada», mediante o pagamento de custas que não deve suportar, a falta de funcionários ou a má organização do Ministério da Justiça que não dispõe de condições e/ou recursos humanos para efectuar as transcrições.
7ª. Este Venerando Tribunal, deve, claramente – a fim de ser entendido pelo Sr. Juiz «a quo» e pelo Sr. Funcionário Judicial que elaborar a conta – prolatar Acórdão onde declare que os custos da transcrição não deverão ser suportados pelo recorrente.
8ª. Do mesmo modo, deverá o Acórdão a proferir isentar o recorrente das custas processuais com o presente recurso e requerimentos anteriores que lhes deram lugar, por para eles não ter contribuído.
9ª. Só assim não haverá contradição de julgados – o do Tribunal da Relação por um lado e o da 1ª instância, a prevalecer, por outro.”
Na sua resposta ao recurso, sustentou o Ministério Público, para o que aqui releva, o seguinte (fls. 304 a 306):
“[...] Resulta claro, quer do art. 410º do Código de Processo Penal, quer do art. 690º do Código de Processo Civil, aplicável in casu atenta a matéria e despacho sobre que versa o recurso, que sempre que o recurso versa sobre matéria de direito, as conclusões indicam, além do mais, as normas jurídicas violadas. Ora, apesar de o presente recurso versar sobre matéria de direito, o recorrente não indicou nas conclusões as normas jurídicas violadas. Face ao exposto, visto o estatuído no art. 690º nº 4 do Cód. de Proc. Civil, e caso não se decida rejeitar o recurso por inadmissibilidade, deveria o arguido ser convidado a completar as conclusões, sob pena de não se conhecer o recurso.
[...].”
O representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra emitiu parecer do seguinte teor (fls. 315 e seguinte):
“Acompanha-se, integralmente, o contido na resposta à motivação de fls. 304. E porque a rejeição dum recurso implica, necessariamente, a não apreciação e a não emissão de juízo decisório sobre o tema proposto, somos de parecer se declare a sua inadmissibilidade ou quando não o pertinente improvimento.”
O recorrente respondeu ao parecer do Ministério Público, não se tendo porém pronunciado sobre a questão da falta de indicação, nas conclusões, das normas jurídicas violadas (fls. 319 e seguintes).
6. Por acórdão de 2 de Outubro de 2002, o Tribunal da Relação de Coimbra rejeitou o recurso, pelos seguintes fundamentos (fls. 324 e seguintes):
“[...]
1- Na liquidação das custas a cargo do arguido foi incluído o custo de €1628,23 da transcrição dos depoimentos prestados oralmente em audiência, transcrição esta efectuada por firma especializada e determinada pelos termos em que o recurso da sentença foi interposto pelo arguido.
2- Reclamou o arguido por entender não dever entrar tal custo em regra de custas a seu cargo. A reclamação foi-lhe indeferida nos seguintes termos – «o reclamante sabe bem que a conta se encontra correctamente elaborada e de acordo com o nosso despacho de fls. 192, justificado a fls. 228, 2ª parte (art. 514°/1 do Cód. Proc. Penal). Porque lhe foi rejeitado o recurso, nessa matéria respeitante, pelo tribunal superior, vem agora utilizar este meio para levantar novamente a questão. Pois bem, indefere-se a reclamação porquanto a conta se encontra correctamente elaborada de acordo com a lei (preceito legal citado) e com o nosso entendimento plasmado nos despachos referidos (...)».
3- Sobre este despacho o reclamante pediu esclarecimento, tendo-se-lhe respondido (despacho a fls. 287) ser o mesmo de manifesta clareza, não carecendo de aclaração.
4- O presente recurso – interposto e processado nos termos do Código de Processo Penal –, cinge-se tão só à questão de se saber se o custo da transcrição dos depoimentos prestados oralmente em julgamento e efectuada por firma especializada, fica a cargo do recorrente que a ela deu, infundadamente, azo ou se fica sempre, em qualquer caso, a cargo do tribunal, ou seja, do Estado. Estatui o nº 2 do art. 412° do Código de Processo Penal que versando o recurso matéria de direito, as suas conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada. Como se vê das conclusões do recorrente, acima totalmente transcritas, elas são omissas no cumprimento do transcrito segmento legal, ou seja, nas conclusões que apresenta o recorrente não refere qualquer norma jurídica que haja sido violada pela decisão recorrida. Impõe-se, assim, a rejeição do recurso.
[...].”
7. B. interpôs então recurso para o Tribunal Constitucional nos seguintes termos (fls. 330):
“[...] notificado do Acórdão de fls. mas com ele inconformado, vem, desde já e à cautela, interpor o competente Recurso para o Tribunal Constitucional, atento o Acórdão deste Tribunal Superior n° 320/2002 proferido no Processo n° 754/01, publicado no Diário da República I Série A n° 231 de 7 de Outubro de 2002 que declara «com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do art. 32° n° 1 da Constituição da República Portuguesa, da norma constante do art. 412° n° 2, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas alíneas a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência».”
O recurso foi admitido por despacho de fls. 331.
Já no Tribunal Constitucional, foi proferido despacho do seguinte teor (fls. 332 e v.º):
“Nos termos do artigo 75º-A, n.º 6, da Lei do Tribunal Constitucional, notifique o recorrente para completar o requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, indicando a alínea do nº 1 do artigo 70º da LTC ao abrigo da qual interpõe o recurso e, consoante o caso, os elementos referidos nos nºs 2, 3 ou 4 do mesmo artigo 75º-A da LTC.”
O recorrente respondeu a este despacho dizendo o seguinte (fls. 344 e v.º):
“[...]
1 - Que o recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n° 1 do art. 70° da Lei 28/82 de 15 de Novembro, porquanto no decurso ou durante o processo o Tribunal Constitucional por Acórdão n° 320/2002, proferido no processo 754/2001
[por lapso, indica-se o processo 757/2001] publicado no D.R. n° 231 de 7 de Outubro de 2002 I Série A, declarou, «com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do art. 32° n° 1 da Constituição da República Portuguesa, da norma constante do art. 412° n° 2, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas alíneas a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência».
2 - Por outro lado, o presente recurso justifica-se por ter havido violação do princípio constitucional das garantias de defesa, consagrado no n° 1 do art. 32° da Constituição da República Portuguesa, sendo certo que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade nas suas Motivações de Recurso sob o nº 4 ao citar o Senhor Procurador Geral Adjunto, sob o n.º 19 e nas Conclusões, sob o n.º 5.”
8. Nas alegações, concluiu assim o recorrente B. (fls. 351 e seguintes):
“1ª. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso (n° 1 do art. 32° do C.R.P.)
2ª. O recorrente nas conclusões da motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra não indicou as menções contidas nas alíneas a) b) c) do n° 2 do art. 412° do C.P.P.
3ª. Impunha-se ao Tribunal da Relação de Coimbra facultar ao arguido a oportunidade de suprir aquela falta ou deficiência.
4ª. Não o fazendo violou o disposto no referido n° 1 do art. 32° do C.R.P.
5ª. Violando do mesmo modo, a Jurisprudência do Acórdão deste Venerando Tribunal, n° 754/01 publicada no D.R. de 7 de Outubro de 2002, fixada com força obrigatória geral [o recorrente pretende referir-se ao acórdão nº 320/02, proferido no processo nº 754/01, publicado no identificado Diário da República].
6ª. Ao interpretar a norma do n° 2 do art. 412° do C.P.P. no sentido diferente da obrigatoriedade geral imposta por aquele Acórdão, violou o Tribunal da Relação de Coimbra – Tribunal «a quo» – a norma contida no n° 1 do art. 32° da C.R.P., tornando, «ipso facto», a decisão por si proferida, também contrária aos ditames da Constituição da República Portuguesa.
7ª. Devendo, pois, ser revogado e/ou reformado o Acórdão proferido no processo n° 1743/02-5 da 5ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra.
8ª. E facultada ao arguido a possibilidade de suprir as deficiências verificadas.”
Nas contra-alegações, sustentou, em síntese, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional (fls. 355 e seguintes):
“[...] Não nos parece [...] que releve o facto de o recorrente – em vez de fundar o recurso na alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n° 28/82, como pareceria mais directo e adequado, face à invocada colisão entre a decisão recorrida e a jurisprudência do Tribunal Constitucional – haja optado pela via do tipo de recurso previsto na alínea b): é que – não tendo embora suscitado «durante o processo» a questão da inconstitucionalidade da norma que integra o objecto do presente recurso – consideramos que (perante o que vinha sendo decidido pelo Tribunal Constitucional) o acórdão da Relação de Coimbra se poderá perspectivar como «decisão-surpresa», susceptível de conduzir à dispensa do ónus de suscitação antecipada da questão da inconstitucionalidade da referida norma.
2. Conclusão Nestes termos e pelo exposto conclui-se:
1º- Face à jurisprudência reiterada deste Tribunal Constitucional, é violador do princípio das garantias de defesa a interpretação normativa do n° 2 do artigo
412° do Código de Processo Penal que atribui efeito irremediavelmente preclusivo
à omissão de indicação dos requisitos formais aí previstos, nomeadamente a falta de indicação da norma violada pela decisão recorrida impondo-se a prolação de convite ao aperfeiçoamento de tal deficiência formal, e não a imediata e liminar rejeição do recurso
2º- Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
Cumpre apreciar.
II
9. Na resposta ao despacho de aperfeiçoamento (supra, 7.), esclareceu o recorrente que o presente recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, não obstante a referência que nela fez ao acórdão do Tribunal Constitucional n.º 320/2002 dar a entender que efectivamente se trata de um recurso interposto ao abrigo da alínea g) do mesmo preceito.
Nas contra-alegações (supra, 8.), entendeu o Ministério Público que tal contradição irrelevava, e tal entendimento afigura-se de acolher. Com efeito, mesmo que se entendesse que o presente recurso foi efectivamente interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, haveria que concluir no sentido da sua admissibilidade. Na verdade, a norma do artigo 412º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na interpretação ora censurada, foi aplicada pela primeira vez na decisão recorrida
(supra, 6.), não sendo consequentemente exigível ao recorrente o cumprimento do
ónus previsto no artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional. Acresce que, previamente a tal decisão, o Ministério Público não havia invocado a aplicabilidade de tal norma , mas apenas a do artigo 690º, n.º 4, do Código de Processo Civil (supra, 5.): não era, portanto, exigível que o recorrente previsse a aplicação, na decisão recorrida, da norma do artigo 412º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
10. No acórdão n.º 320/02, de 9 de Julho (publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 231, de 7 de Outubro de 2002, p. 6715), o Tribunal Constitucional declarou, “com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do artigo 32º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, da norma constante do artigo 412º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas alíneas a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência”.
Não se restringindo esta jurisprudência do Tribunal Constitucional aos recursos de decisões penais condenatórias, cumpre apenas aplicá-la. Há, consequentemente, que conceder provimento ao presente recurso.
III
11. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao presente recurso.
Lisboa, 21 de Maio de 2003 Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício Luís Nunes de Almeida