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Proc. n.º 792/02
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que figuram como recorrente A. e como recorrido o Ministro das Obras Públicas, Transportes e Habitação, foi proferida decisão, em 15 de Outubro de 2002 (fls.
173 a 181), na qual se decidiu negar provimento ao recurso interposto de uma anterior decisão da 1ª Secção daquele Tribunal (de fls. 98 a 105) que, por sua vez, havia negado provimento ao recurso contencioso interposto pelo ora recorrente de um despacho do Ministro do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território, de 4 de Abril de 1997.
2. Inconformado com aquela decisão do Supremo Tribunal Administrativo, de 15 de Outubro de 2002, o ora recorrente interpôs o presente recurso de constitucionalidade, através de um requerimento que tem o seguinte teor:
“A., recorrente nos autos de processo supra referenciados, não se conformando com o douto acórdão proferido em 15-10-02, dele vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional com fundamento na aplicação de normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo, em conformidade com o disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 70º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 143/85, de 26 de Novembro pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, pela Lei n.º 88/95 de 9 de Setembro e pela Lei n.º 13-A/98 de 26 de Fevereiro. Em conformidade com o disposto no art. 75º-A do mesmo diploma pretende-se ver declarada materialmente inconstitucional a interpretação realizada pelo tribunal a quo do preceituado no art. 5º, n.º 8 do Código das Expropriações, por infringir o preceituado no art. 62º e 18º, n.º 1 e 2 da CRP e cuja questão de inconstitucionalidade o recorrente suscitou no recurso apresentado junto do Supremo Tribunal Administrativo. O recurso é interposto em tempo, não é manifestamente infundado e o recorrente tem legitimidade, razão porque preenchidos os requisitos legais, requer a V. Ex.ª se digne admitir o recurso, com efeito suspensivo, prosseguindo os demais termos até final”.
3. Já neste Tribunal foi o recorrente convidado, pelo despacho do Relator de fls. 191, “a dar cabal cumprimento ao disposto no artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, indicando qual a interpretação da norma que pretende ver apreciada”.
4. Em resposta a esta solicitação o recorrente apresentou o requerimento de fls.
192 a 198, do seguinte teor:
“Tendo sido notificado para no prazo contínuo de dez dias, responder, querendo, ao despacho proferido pelo Exmº Juiz Conselheiro Relator, nos autos, acima indicados, vem indicar a V.Exª qual a interpretação da norma que pretende ver apreciada. Desta forma, Entendendo o recorrente que face ao disposto no n° 8, do artº 5° do Código de Expropriações, aprovado pelo Dec. Lei n° 438/91 de 9 de Novembro, a entidade expropriante aquando da alienação das parcelas sobrantes, na qual se engloba a parcela n° 5, preteriu uma formalidade essencial, ao não comunicar a sua intenção ao expropriado. Requereu ao abrigo do disposto no artº 70° do Código de Expropriações que a venda das parcelas sobrantes fosse declarada nula e reconhecido ao recorrente o direito à reversão. Esse requerimento mereceu um despacho de indeferimento de Sua Excelência o Ministro do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território, conforme se comprova pelo documento que se junta. O despacho recorrido invoca as seguintes conclusões:
1 - A data sua apresentação do requerimento de A. já caducara, nos termos dos n.ºs 1 e 6 do artº 5° do Código das Expropriações, o eventual direito de reversão da parcela objecto de expropriação.
2 - Ainda que assim não fosse, a implantação do parque habitacional . previsto na declaração de utilidade pública da expropriação em grande parte das parcelas abrangidas e a projectada construção nas restantes fizeram cessar, em conformidade com os n.ºs 2 e 3 do mesmo artº 5, o direito de reversão, que porventura, se tivesse formado.
3 - Mantendo-se na alienação à Câmara Municipal de Paredes o fim do interesse público que determinou a expropriação e extinto o eventual direito de reversão, nos termos do º 2 do art. 5 do Código das Expropriações, é inaplicável o disposto no n.º 8 do mesmo preceito, pelo que não impede sobre a entidade expropriante o dever de fazer qualquer comunicação prévia ao expropriado. O despacho recorrido viola o disposto no n.º 8 do artº 5 do Código de Expropriações. Viola ainda o princípio do direito à propriedade privada consagrado no artº 62° da Constituição da República Portuguesa. Na verdade, O requerimento apresentado pelo ora recorrente à entidade que declarou a utilidade pública da expropriação não teve por fundamento a não aplicação do bem expropriado ao fim que determinou a expropriação ou a cessação da aplicação do bem a esse fim. Tal requerimento teve como fundamento o facto da entidade expropriante ter alienado parcelas sobrantes, sem ter comunicado a sua intenção ao expropriado. Contrariamente ao alegado pela autoridade recorrida a verificação dos factos previstos no n.º 2 do artº 5º do Código de Expropriações, que levam à cessação do direito de reversão, não impedem que tal direito renasça quando se estiver perante a situação prevista no n.º 8 da mesma norma legal. Aliás, Só existem parcelas sobrantes quando os terrenos inicialmente considerados necessários para a realização da obra não chegam a ser utilizados na sua totalidade aquando da execução da obra. O conceito de parcelas sobrantes previsto no n° 8 do art.º 5° do Código das Expropriações não compreende os imóveis que foram afectados ao fim da expropriação, mas os que por qualquer razão de interesse público não o foram. Assim, A entidade expropriante apenas poderá pretender alienar parcelas sobrantes após a realização de uma obra contínua que determinou a expropriação de imóveis distintos abrangidos pelo projecto, anteprojecto, estudos prévios, plano, anteplano ou esquemas preliminares das obras aprovadas. Acresce que, Não obsta ao exercício do direito de reversão, nem este se extingue pelo facto das parcelas sobrantes terem sido adquiridas por uma Autarquia Local, no caso, a Câmara Municipal de Paredes que os destina a habitação e equipamento social. O destino a dar às parcelas sobrantes, apesar de ter um fim de interesse público, é diferente do destino que determinou a expropriação – construção do Conjunto Habitacional “------------”. Tal facto só faria cessar o direito de reversão nos termos do disposto na al. b
), do n° 3°, do art.º 5° do Código de expropriações. No entanto, Teria de ser observado o disposto no n° 5 do art.º 5° do diploma legal citado. Assim, Deve o despacho recorrido ser anulado em virtude de violar o disposto no art.
5º, n.º 8 do Código de Expropriações. O direito à propriedade privada consagrado no art. 62º da Constituição da República Portuguesa é considerado um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdade e garantias Nos termos do disposto no art. 17º da Constituição da República Portuguesa o regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos direitos fundamentais de natureza análoga. Pelo que, Deve o despacho recorrido ser declarado nulo em virtude de violar o conteúdo essencial de um direito fundamental - artº 62° e artº 18º , nº s 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa (in Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo, Vol. III, p. 341). Em consequência deve o contrato de compra e venda celebrado entre a entidade expropriante e a Câmara Municipal de Paredes ser anulado por preterição de formalidades essenciais anteriores ao acto por prática manifestamente inconstitucional perpetrada pelo Ministro das Obras Públicas, Transportes e Habitação. Como é de Justiça!”
5. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão sumária no sentido do não conhecimento do recurso. É o seguinte, na parte decisória, o seu teor:
“[...] Nos termos do artigo 75º-A, nº 1 da LTC, o recorrente deve, logo no requerimento de interposição do recurso, indicar “a norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie”. Não o tendo feito, deve o juiz (no tribunal recorrido) ou o relator do processo no Tribunal Constitucional, ex vi dos nºs 5 e 6 do artigo 75º-A já referido, convidar o requerente a prestar a indicação em falta - o que, no caso dos autos, foi feito já no Tribunal Constitucional através do despacho de fls. 191. Porém, in casu, verifica-se que, mesmo após a resposta ao convite do Relator, continua o recorrente a não indicar, em termos que possam ser considerados minimamente suficientes, a norma cuja inconstitucionalidade pretende que o Tribunal aprecie. É que, como este Tribunal tem afirmado repetidamente, nada obsta a que seja questionada apenas uma certa interpretação ou dimensão normativa de um determinado preceito. Porém, nesses casos, tem o recorrente o
ónus de enunciar, de forma clara e perceptível, o exacto sentido normativo do preceito que considera inconstitucional. Como se disse, por exemplo, no Acórdão nº 178/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p.1118.) “tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e perceptível (cfr., entre outros, o Acórdão nº
269/94, Diário da República, II Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a Lei Fundamental”. Mas, como pode ver-se, nem no requerimento de interposição do recurso nem na resposta ao convite de fls. 191, que supra já transcrevemos integralmente, o recorrente identifica, da forma clara e perceptível que vem sendo exigida por este Tribunal, a exacta dimensão normativa do artigo 5º, nº 8 do Código das expropriações cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada, limitando-se, na primeira daquelas peças, a remeter para a “interpretação realizada pelo tribunal a quo”, sem especificar qual foi essa interpretação, e, na segunda, a descrever a sequência processual até ao presente recurso. Ora, a não indicação da exacta interpretação normativa do preceito referido cuja inconstitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada coloca ainda o Tribunal numa situação de verdadeira impossibilidade de verificar se se encontram preenchidos os demais pressupostos de admissibilidade do recurso que pretendeu interpor (o previsto na alínea b) do nº 1 do art. 70º da LTC), ou seja: (i) saber se o recorrente suscitou, durante o processo, a inconstitucionalidade dessa dimensão normativa; (ii) saber se a decisão recorrida utilizou, como ratio decidendi, a exacta dimensão normativa cuja inconstitucionalidade foi suscitada. Por tudo o exposto, não pode conhecer-se do objecto do recurso interposto pelo recorrente, por falta dos seus pressupostos legais de admissibilidade.”
6. Inconformado com esta decisão o recorrente apresentou, ao abrigo do disposto no art. 78º-A, nº 3 da LTC, a presente reclamação para a Conferência, em que reproduziu ipsis verbis o requerimento de fls. 192 a 198, já integralmente transcrito no ponto 4., apenas lhe aditando, a seguir a “deve o despacho recorrido ser anulado em virtude de violar o disposto no art. 5º, n.º 8 do Código de Expropriações”, a frase “Assim, aquele despacho, faz interpretação materialmente inconstitucional desta norma do Código das Expropriações.”
6. Por parte do recorrido foi sustentada a improcedência da reclamação.
Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação
7. Na decisão reclamada decidiu o Relator não conhecer do objecto do recurso por o recorrente não ter sido capaz, no requerimento de interposição do recurso ou na resposta ao convite formulado ao abrigo do disposto no art. 75º-A, n.º 6 da LTC, de identificar, de forma clara e perceptível, a exacta interpretação normativa (ou interpretações normativas) do artigo 5º, nº 8 do Código das Expropriações, cuja inconstitucionalidade pretendia ver apreciada.
A reclamação deduzida, reproduzindo um requerimento cujo teor já foi apreciado na decisão sumária, nada adianta ao anteriormente alegado nem se revela idónea para alterar o decidido.Com efeito, basta ler o seu texto para verificar que se mantém incólume o fundamento da decisão reclamada.
Afirma agora o ora reclamante que o despacho recorrido, “faz interpretação materialmente inconstitucional desta norma [artigo 5º, nº 8] do Código das Expropriações”. Não revela, contudo, uma qualquer interpretação normativa do artigo 5º, nº 8 do Código das Expropriações, susceptível de ser objecto de um recurso de fiscalização concreta de inconstitucionalidade. Ao invés, o que, efectivamente, questiona, como se pode comprovar das transcrições acima efectuadas, é a decisão recorrida.
Ora, o contencioso da constitucionalidade respeita, entre nós, onde não existe recurso de amparo, às normas em que se fundam as decisões recorridas e não a estas, em si mesmo consideradas. Ao Tribunal Constitucional compete julgar a norma (ou interpretação normativa) aplicada na decisão e não a ponderação casuística do caso e a decisão daí decorrente. Aliás, a conclusão da reclamação, em que o reclamante entende dever o despacho recorrido “ser declarado nulo em virtude de violar o conteúdo essencial de um direito fundamental - art.º 62° e art.º 18°, nos 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa [...]” e, em consequência, dever “o contrato de compra e venda celebrado entre a entidade expropriante e a Câmara Municipal de Paredes ser anulado por preterição de formalidades essenciais anteriores ao acto por prática manifestamente inconstitucional perpetrada pelo Ministro das Obras Públicas, Transportes e Habitação”, visa obter algo que está indubitavelmente fora dos poderes cognitivos deste Tribunal Constitucional
Assim, pelas razões constantes da decisão reclamada, que mais uma vez agora se reiteram porquanto em nada são abaladas pela reclamação apresentada, é efectivamente de não conhecer do objecto do recurso que o recorrente pretendeu interpor.
III - Decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 6 de Maio de 2003 Gil Galvão Bravo Serra Luís Nunes de Almeida