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Processo n.º 163/03
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto
Acordam em conferência no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A., assistente no processo de instrução n.º 102/01 do 3º juízo do Tribunal Judicial de Águeda, não concordando com o despacho de não pronúncia do arguido B., melhor identificado nos autos, dele veio recorrer para o Tribunal da Relação de Coimbra, que por Acórdão de 11 de Janeiro de 2002, decidiu negar provimento ao recurso e confirmar o despacho recorrido. Inconformada, a assistente interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, alegando que “ao decidir nos termos do Douto Acórdão recorrido que confirmou integralmente a Sentença proferida em 1ª Instância, foram violados o disposto nos art.ºs 137º n.º 1 do C. Penal, 13º, 24º n.º 1 al. f) e 27º, do Cód. da Estrada, 286º n.º 1, 290º n.º 1; 292º n.º 1; 308º, 150º, 151º; 153º; 158º; 163º;
171º e 172º, todos do C.P.Penal, dos quais foi feita uma errada interpretação e aplicação.”. Por despacho do Desembargador Relator, o recurso não foi admitido, nos termos do artigo 400º, n.º1 , alínea f) do Código de Processo Penal, tendo a assistente reclamado para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, “sustentando que são recorríveis as decisões da Relação que ponham termo à causa, nos termos do art.º
400º, n.º 1 alínea c) do CPP, a contrario.” A reclamação foi indeferida por decisão de 21 de Janeiro de 2003.
2.A assistente veio então apresentar recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional,
“posto que o douto acórdão da Relação e as subsequentes decisões de indeferimento do Recurso para este Supremo Tribunal de Justiça violaram o disposto nos artºs. 12º; 13º; 18º; 26º n.ºs 1, 2 e 3; 27º n.º 1; 202º n.º 2 e
204º, todos da Constituição da República Portuguesa; como violaram também, por incorrecta interpretação e aplicação (o que determina a sua ilegalidade e inconstitucionalidade da decisão), o disposto nos artºs. 143º n.º 1 do C. Penal, no artº. 1º n.º 1 da Lei n.º 29/99 de 12 de Maio, nos artºs. 400º n.º 2 e 432º, ambos do C.P.Penal.” Inconformada com o despacho de não admissão do recurso para o Tribunal Constitucional, proferido em 31 de Janeiro de 2003 no Supremo Tribunal de Justiça, a assistente veio apresentar a presente reclamação, “nos termos e para os efeitos do art.º 688º do Cod. Proc. Civil”, com os seguintes fundamentos:
“I- O presente recurso não foi admitido por ter sido considerado que a Recorrente nunca até ao momento havia invocado a inconstitucionalidade daquelas normas, o que deveria ter feito face ao disposto nos artºs 70º, n.º 1 al. b) e
72º, n.º 2 da LTC. II- Não esteve bem o Supremo Tribunal de Justiça ao decidir nos termos em que o fez. III- É que, como do requerimento de interposição de recurso resulta, o mesmo funda-se, entre outras disposições legais, nos artºs 75º, n.º 2; 70º, n.º 2;
71º; 72º, n.º 1 al. b); 73º e 79º da Lei 28/82 de 15/11/82, com as alterações introduzidas pela lei 85/89 de 07/09/89 e pela Lei 13-A/98 de 26/02/98. IV- E foi intentado por se considerar que o Acórdão da Relação de Coimbra de fls., a douta Decisão proferida a fls. 470 do mesmo Tribunal, e a decisão proferida a fls. 42 e 43 pelo Supremo Tribunal de Justiça, que indeferiu a Reclamação do despacho de fls., violaram o disposto nos artºs. 12º; 13º; 18º;
26º n.ºs. 1, 2 e 3; 27º n.º 1; 202º n.º 2 e 204º, todos da Constituição da República Portuguesa; V- Assim como violaram igualmente, por incorrecta interpretação e aplicação (o que, também de per si determina a sua ilegalidade e inconstitucionalidade da decisão), o disposto nos artºs. 143º n.º 1 do C. Penal, no artº. 1º n.º 1 da Lei n.º 29/99 de 12 de Maio, nos artºs. 400º n.º 2 e 432º, ambos do C.P.Penal. VI- Daqui decorre que este Tribunal Constitucional é competente para apreciar o recurso interposto, e o mesmo não vai contra as suas funções e poderes de cognição previstas na lei processual civil.” O representante do Ministério Público neste Tribunal pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação, “já que o recorrente não suscitou, durante o processo e em termos procedimentalmente adequados – podendo perfeitamente tê-lo feito – qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para servir de base ao recurso de fiscalização concreta que interpõe para este Tribunal.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
4. A ora reclamante pretendeu interpor recurso de constitucionalidade ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Como é sabido, tal recurso exige, como requisitos cumulativos, a aplicação da norma impugnada como ratio decidendi na decisão recorrida, o esgotamento dos recursos ordinários que cabiam no caso e a suscitação da questão de constitucionalidade normativa durante o processo. Por outro lado, como resulta do texto constitucional e da Lei do Tribunal Constitucional (art.ºs 280º e 70º, respectivamente, para a fiscalização concreta), no direito constitucional português vigente, objecto de fiscalização judicial são apenas as normas, sendo tal de há muito repetido na jurisprudência deste Tribunal (cfr., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º
18/96, publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Maio de 1996) e na doutrina (v., por ex., Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 1998, p. 821). Ora, no requerimento de recurso a recorrente limitou-se a imputar a inconstitucionalidade a decisões judiciais – actos concretos cuja constitucionalidade não pode ser objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional –, e não a quaisquer normas. Disse, assim, como resulta da transcrição efectuada, que “o douto acórdão da Relação e as subsequentes decisões de indeferimento do Recurso” violaram disposições constitucionais e também normas do Código Penal, mas não chegou a pretender trazer ao Tribunal Constitucional a apreciação de uma questão de constitucionalidade de normas. Pelo requerimento de recurso não foi, pois, este Tribunal confrontado com qualquer imputação de inconstitucionalidade a norma(s), antes sendo a violação da Constituição referida a actos concretos de aplicação do Direito. Tal verificação é, aliás, confirmada pelo próprio teor da presente reclamação. Nela, mais uma vez, a reclamante reconhece que o recurso não visa a apreciação de uma questão de constitucionalidade de normas, antes sendo “intentado por se considerar que o Acórdão da Relação de Coimbra de fls., a douta Decisão proferida a fls. 470 do mesmo Tribunal, e a decisão proferida a fls. 42 e 43 pelo Supremo Tribunal de Justiça, que indeferiu a Reclamação do despacho de fls., violaram” normas constitucionais, e que “violaram igualmente, por incorrecta interpretação e aplicação (o que, também de per si determina a sua ilegalidade e inconstitucionalidade da decisão)”, o disposto em vários artigos do Código Penal. Ou seja: imputa-se sempre a inconstitucionalidade à decisão, referindo-se, apenas, que estas violaram, “por incorrecta interpretação e aplicação”, normas penais. E, ainda que se pretendesse assim trazer à apreciação deste Tribunal uma questão de constitucionalidade de tal interpretação “incorrecta” destas normas referidas como violadas – e não da decisão –, o certo é que esta interpretação não foi minimamente identificada, como teria de ser. Como se escreveu no Acórdão n.º 178/95 (in Diário da República, II Série, de 21 de Junho de 1995), também no presente caso se impunha que a recorrente tivesse
“[...] indicado – o que não [fez] – o segmento de cada norma, a dimensão normativa de cada preceito – o sentido ou interpretação, em suma – que [tem] por violador da Constituição. De facto, tendo a questão da constitucionalidade de ser suscitada de forma clara e perceptível (cf., entre outros, o Acórdão n.º 269/94, in Diário da República,
2ª Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos de que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a lei fundamental.” Não tendo sido minimamente individualizada a interpretação “incorrecta” referida na motivação de recurso, e sendo, antes, a violação da Constituição da República referida à decisão judicial, não podia, logo em face do respectivo requerimento, admitir-se o recurso de constitucionalidade. A presente reclamação tem, pois, de ser indeferida. III. Decisão Com estes fundamentos, indefere-se a reclamação apresentada e, em consequência, condena-se a reclamante em custas, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta. Lisboa, 20 de Maio de 2003 Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos