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Proc. n.º 172/03
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Por decisão do 2º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, de 29 de Outubro de
2002 (fls. 210 a 215), foi a ora recorrente, A., condenada pela prática de um crime de deserção, previsto e punido pelo artigo 142º, n.º1, alínea a) e 152º, n.º 1, alínea c), do Código de Justiça Militar, “na pena de 2 meses de prisão militar, a qual, nos termos dos artigos 44º e 47º do Código Penal, aplicáveis
“ex vi” do disposto nos arts. 4º do CJM e 8º do Cód. Penal, se substitui por igual tempo de multa à taxa diária de 3 (três) Euros, o que perfaz a multa global de 180 (cento e oitenta) Euros [...]”. Foi ainda ordenada a não transcrição da decisão, nos certificados a que se referem os artigos 11º e 12º da Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto.
2. Inconformada com esta decisão a arguida recorreu para o Supremo Tribunal Militar, onde concluiu a sua alegação da seguinte forma:
“a) Sendo a competência dos tribunais militares, nos termos do art. 213° da Constituição da República Portuguesa, exclusivamente direccionada para a apreciação e julgamento de um determinado e específico tipo de crimes, depende a mesma da verificação cumulativa de dois condicionalismos: o de estar vigente um estado de guerra; o de estarem em causa crimes de natureza estritamente militar, situação que, evidente não ocorre no caso em analise; b) tanto mais que os crimes essencialmente militares, únicos que podem ser objecto de julgamento em sede dos Tribunais Militares, têm de ser integrados à luz do n° 2 do art. 1° do Cod. de Justiça Militar, o qual dispõe que consideram-se crimes essencialmente militares os factos que violem algum dever militar ou ofendem a segurança e a disciplina das forças armadas, bem como os interesses militares da defesa nacional, e que como tal sejam qualificados pela lei militar; c) sendo evidente que, no caso, não estamos perante uma situação integrável naquela previsão legal; d) com efeito, o estar em causa crime de natureza estritamente militar não pode ser interpretado de outra forma que restringindo a competência dos tribunais militares aos casos em que uma dada actividade não é objecto de previsão no
âmbito da moldura penal geral e, complementarmente, que apenas pode ser praticada por militares por força de funções concretas e especificas que lhe estão cometidas, pelo que só, e tão só, em termos de exclusão, se poderá aferir e admitir a competência do Tribunal Militar nesses precisos termos, sob pena de se fazer letra morta do art. 213° da Constituição da República Portuguesa, sendo os tribunais militares, em consequência, incompetentes para o julgamento de outros crimes, o que expressamente se invoca e vem arguir atento o disposto nos arts. 458° e 457° do Cod. Just Militar e 119° e 32º ambos do Cod. Proc. Penal; e) sendo que, a contrario, e emergindo a atribuição de competência ao Tribunal Militar para apreciação e julgamento da questão em apreço nos presentes autos dos arts. 309° e 313° do Cod. Just. Militar, os mesmos são, em face do art. 213° da Constituição da República Portuguesa, notória e evidentemente inconstitucionais, não podendo a lei geral alargar o âmbito de competência dos
órgãos jurisdicionais, desde logo por coerência com o determinado pelo art. 165, nº1, al. p) da Constituição da República Portuguesa; f) tendo presente a autoria de dedução da acusação nos presentes autos, revela-se o Promotor de Justiça junto do Tribunal Militar incompetente para deduzir acusação nos presentes autos, sendo inconstitucional, em face do disposto no art. 219º da Constituição da República Portuguesa o art. 377º do Cod. Just. Militar na parte constante do seu n.º 1 em que confere e atribui competência ao mesma para deduzir o libelo acusatório (tanto mais que em relação a crime qualificáveis como essencialmente militares, que não é o caso, não obstante a tal se propender em sede acusatória, apenas é admissível a acusação pública); g) inconstitucionalidade do art. 377º, n.º 1, do Cod. Just. Militar que deriva, igualmente do art. 32º da Constituição da República Portuguesa, contrariando pela desjurisdicionalização do processo decorrente daquele preceito; h) com efeito, o conceito de funcionário constante no art. 386º do Cod. Penal é extremamente amplo, como decorre, designadamente, dos Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 3.5.1985 na Col. Jur., X, 3, p.182, do Tribunal da Relação de Coimbra de 31.10.1990 na Col. Jur., XV, 5, p.74 e do Supremo Tribunal de Justiça de 18.4.1991 em AJ, n.º 18, proc. n.º 41722 (este quando afirma que tal preceito consagra um conceito lato de funcionário, abrangente dos militares, sem curar da natureza do vínculo, que só interessará no âmbito disciplinar), abrangendo todos os que têm uma dependência funcional de qualquer entidade estadual, mas as instancias especiais cedem perante as instancias comuns em caso de conflito de jurisdição, situação que revela cabal aplicação ao caso em análise, como assinalam S. Villa Nova, Luciano Patrão, Cunha Lopes e Castel Branco Ferreira, Cod. De Justiça Militar Anotado, p. 253/254, elementos esses que têm necessariamente de ser conjugados com o art. 13º da Constituição da República Portuguesa, ao consignar o princípio da igualdade, determina que não possa haver uma desigualdade de tratamento em função de uma qualidade puramente laboral, em termos de estatuto desvinculação funcional; i) tais pressupostos levam necessariamente a concluir que conjugados os elementos acima vertidos com a circunstancia de o libelo acusatório ser absolutamente omisso no que concerne à indicação de quais os elementos que permitem integrar a competência do tribunal nos termos que derivam da sua dedução (coerentemente com o disposto no art. 378º, n.º 1, do Cod. Justiça Militar), o princípio do contraditório, objecto de consagração constitucional expressa designadamente à luz dos art. 32º, n.º 5 e 16º da Constituição Portuguesa, sem prejuízo da sua consagração como princípio geral e fundamental de direito, se revela igualmente violado pelos indicados preceitos legais, com a sua inerente inconstitucionalidade; j) os arts. 142º, n.º 1, al. a) e 152º, n.º 1, al. a do Cod. De Justiça Militar, ao criarem um tipo legal de crime diverso exclusivamente em função da qualidade de militar, violando o princípio da igualdade, determinando a sua inconstitucionalidade à luz do art. 13º da Constituição da República Portuguesa; k) tais questões não são resolvidas pelo art. 197º da Lei Constitucional n.º
1/97, que não excluiu a consideração efectiva de um facto como crime militar ou não, a incompetência do promotor, a existência de normas especiais e a incompetência do tribunal; l) não ocorrendo, pois, em relação às mesmas pronúncia pela sentença recorrida, que assim se revela nula à luz do art. 668º,nº 1, al. d) do Cod. Proc. Civil; m) da mesma forma que ocorre a violação do art. 204º da Constituição da República Portuguesa por via da abstenção de pronúncia quanto às inconstitucionalidades arguidas em sede de contestação; n) a sentença recorrida revela-se sem fundamentação na medida em que se limita a proceder a uma mera enunciação de depoimentos sem que proceda a qualquer indicação concreta de qual a fundamentação especifica dos factos dados por assentes, sem estabelecer qualquer nexo de causalidade entre a motivação que invoca genericamente e os factos dados por provados; o) situação que confronta os arts.374º, n.º 2, do Cod. Proc. Penal e 418º e 419º do Cod. Just. Militar e determina a nulidade da sentença recorrida, à luz, desde logo, do art. 379º, al. a) do mesmo Cod. Proc. Penal; p) de facto, inviável, em face dos elementos expressos constantes da sentença recorrida, se revela proceder à reconstituição do itinerário cognoscitivo do julgado, tal como é obrigação do mesmo, quer em face dos preceitos já indicados, quer em face do art. 205º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa; q) sendo a fundamentação um elemento absolutamente essencial do direito de recurso e do princípio do contraditório vide, respectivamente, o art. 32º, n.ºs
1 e 5 da Constituição da República Portuguesa), a alusão genérica aos depoimentos e a documentos juntos aos autos não permite definir, em relação aos factos dados por assentes, quais os meios de prova que estiverem na sua base, indicação essa que tem imperativamente de ser efectuada individualizadamente em relação a cada um dos factos dados por assentes, até porque cada facto configura, em si, uma decisão; r) sendo impossível determinar, por exemplo, e de forma mais crassa, qual a motivação subjacente aos factos imputados à recorrente de que a mesma sabia ser a sua conduta proibida por lei, da matéria de facto dada por assente e provada, tanto mais que a valoração dos meios de prova é absolutamente insusceptível de ser determinada e a mesma é omissa quanto à razão de ciência das diferentes testemunhas, para alem de não se revelar discriminado o alcance da alegada confissão pela recorrente; s) revelando-se inconstitucionais os arts. 374°, n° 2 do Cod. Proc. Penal e 418° e 419° do Cod. Just. Militar se interpretados no sentido de isentarem de fundamentação a fixação da matéria de facto com os requisitos supra vazados, atento os arts. 205º n° 1 e 32º n.ºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa; t) cabendo os Supremo Tribunal Militar a apreciação da impugnação da matéria de facto, não obstante o disposto no art. 418º n° 1 do Cod. Just. Militar, pois que o direito ao recurso, consagrado no art. 32º n° 1, da Constituição da República Portuguesa não permite a delimitação da possibilidade de recurso à matéria de direito; u) sendo que, a contrario, tal preceito do Cod. Just. Militar se revela inconstitucional; v) tanto mais que se revela evidente que não foi feita prova quanto a uma pretensa consciência de prática de conduta proibida por lei por parte da recorrente ao não se ter apresentado no seu posto de trabalho após haver tempestivamente rescindido o seu contrato de trabalho;
w) a tal não obsta o disposto no art. 171º, n ° 3, do EMFAR, facto e que tal preceito tem de ser necessariamente compulsado à luz dos arts. 58° e 59° da Constituição da República Portuguesa, quando estes permitem o efectivo direito ao trabalho, na vertente de rescisão do mesmo (negativa); x) não se podendo prender (utilizando tal termo na sua acepção física) uma pessoa a um local de trabalho contra a sua vontade, sob pena de se conferir ao art. 171º n.º 3 do EMFAR uma interpretação inconstitucional à luz dos arts. 58° e 59° da Constituição da República Portuguesa;
y) e a ligação funcional da recorrente era de natureza estritamente laboral; z) não ocorrendo qualquer situação tipificada como de deserção; aa) violados se revelam os preceitos legais supra invocados.
3. O Supremo Tribunal Militar, por acórdão de 20 de Fevereiro de 2003, decidiu negar provimento ao recurso e confirmar o acórdão recorrido “salvo quanto à pena aplicada à recorrente que é de dois (2) meses de prisão militar substituída, nos termos do artigo 46º, n.º 1, alínea d) do C.J.M., por igual tempo de multa à razão de três (3) Euros diários”. Decidiu ainda aquele Tribunal revogar a proibição de transcrição da decisão nos certificados do registo criminal.
Para decidir desta forma, o Supremo Tribunal Militar escudou-se na seguinte fundamentação:
“(...) Suscita a recorrente a questão da incompetência, ou até da existência, dos tribunais militares, bem como do Promotor de Justiça, este para deduzir a acusação, com fundamento na inconstitucionalidade que imputa aos art.ºs 309º,
313º e 377º do Código de Justiça Militar. A questão não é nova e tem sido decidida em vários arestos quer deste Supremo Tribunal, quer do Tribunal Constitucional. Escreveu-se no acórdão deste Supremo Tribunal de 14 de Novembro de 2002
(colecção de acórdãos de 2002, págs. 274 e seguintes): 'O recorrente suscita a questão da incompetência dos tribunais militares invocando o actual art.º 213º da Constituição e fundando-se nos factos de não vigorar um estado de guerra e de não estar em causa um crime estritamente militar. Ora, não procedem nem aquela invocação nem estes fundamentos. Com efeito, o art.º 197º da Lei Constitucional
1/97, de 20 de Setembro, dispõe: 'Os tribunais militares, aplicando as disposições legais vigentes, permanecem em funções até à data da entrada em vigor da legislação que regulamenta o disposto no nº.3 do artigo 211º da Constituição'. Inexistindo ainda esta legislação regulamentadora, tal implica necessariamente que continuem a ser exclusivamente aplicadas as disposições constitucionais e infraconstitucionais vigentes à data da entrada em vigor daquela citada Lei Constitucional, que procedeu à revisão constitucional de 1997.
É quanto basta para retirar toda a legitimidade de invocação, para os efeitos pretendidos, do art.º 213º da Constituição na redacção introduzida por esta revisão constitucional. O que faz ruir pela base os argumentos fundados na inexistência do estado de guerra e no apresentado conceito subjectivo criado pelo recorrente de crimes estritamente militares. Estes não são, como pretendido, os que não sejam previstos como crimes comuns mas sim e apenas os que, como tal, vierem a ser definidos por legislação futura. Nenhum intérprete pode, com violação do citado art.º 197º, antecipar-se e substituir-se à lei para proceder a tal definição pelo que actualmente, apenas é atendível o conceito de crimes essencialmente militares. Sendo certo que o crime de que a recorrente foi acusada é crime essencialmente militar, já que protege bens jurídicos militares tal como vêm referidos no n.º 2 do art.º 1, do Código de Justiça Militar, é manifesta a competência dos tribunais militares para o respectivo julgamento. Se não se escamotear o disposto no mesmo art.º 197º, resulta evidente a não inconstitucionalidade dos art.ºs 309º e 313º, do mesmo Código de Justiça Militar. Dentro da mesma linha de ideias, o art.º 197º da citada Lei Constitucional n.º
1/97 conferiu legitimidade constitucional, embora transitória, à organização judiciária militar existente, que deixou intocada, e da qual constituem parte fundamental as Promotorias de Justiça. O art.º 377º, do Código de Justiça Militar contém norma vigente e não violadora de qualquer preceito constitucional. Designadamente, não viola o art.º 219º, da Constituição, pois este não confere ao Ministério Público o exclusivo do exercício da acção penal. No apontado sentido é a jurisprudência pacífica e uniforme quer deste Supremo Tribunal (vidé acórdãos de 20/01/2000 e de 30/03/2000, in Col. e vol., págs. 1 e
109) quer do Tribunal Constitucional (cfr. Acórdão de 13/02/2001, in DR, II, de
27/03/2001). O Promotor de Justiça era, pois, competente para deduzir o libelo nos presentes autos, nos termos do disposto no citado art.º 377º, do Código Justiça Militar, não se verificando, neste aspecto, qualquer nulidade, contrariamente ao pretendido pelo recorrente'. Alega a recorrente que o aresto recorrido está ferido de duas nulidades: abstenção de pronúncia quanto às inconstitucionalidades invocadas na contestação e falta ou insuficiência de fundamentação. Mas sem razão. Quanto à questão das nulidades arguidas na contestação em consequência das inconstitucionalidades invocadas, o acórdão recorrido pronunciou-se sobre elas
(fls. 210v. e 211), concluindo pela sua improcedência. No que toca à fundamentação, a decisão recorrida diz que a matéria fáctica provada fundou-se na confissão espontânea da ré, nos depoimentos das testemunhas e nos documentos juntos aos autos, sendo certo que bastava aquela confissão e estes documentos para conduzirem necessariamente à. prova dos referidos factos. Não existem, assim, as invocadas nulidades. Também não se mostra violado o princípio do contraditório ao ser deduzida acusação com a descrição de todos os factos e a indicação da norma incriminadora relativos ao crime imputado à recorrente, a quem foram asseguradas em julgamento todas as garantias de defesa. Sendo assim e porque também não se verificam nulidades que o Tribunal deva conhecer oficiosamente, tem-se por definitivamente fixada a matéria de facto apurada pelo Tribunal recorrido, de harmonia com o disposto no art.º 418º, n.º 1 do C.J. Militar. A recorrente argúi a inconstitucionalidade desta disposição por, em seu entender, 'o direito ao recurso, consagrado no art.º 32º, n.º 1 da Constituição, não permite a delimitação da possibilidade de recurso à matéria de direito'. Este Supremo Tribunal e o Tribunal Constitucional têm, em jurisprudência uniforme entendido que o sistema de revista alargada fixado na lei para os recursos dirigidos aos Supremo Tribunais, é conforme à Constituição, sendo certo que o reconhecimento da validade e fixação da matéria de facto pelo Tribunal de instância só ocorre se não existirem nulidades que a afectem, incluindo o erro notório. Desta sorte, tem-se por constitucional o aludido art.º 418º, n.º 1, na interpretação dada e fixada definitivamente a matéria de facto apurada na instância. Em face desta é patente ter a recorrente cometido um crime de deserção previsto no art.º 142º, n.º 1, alínea a) e punido pelo art.º 152 º n.º 1, alínea c), artigos ambos do Código de Justiça Militar. Na verdade, provou-se que a recorrente, que era militar e oficial do Exército, não se apresentou no local onde devia comparecer para cumprir as suas obrigações militares e manteve-se consecutivamente ausente por mais de oito dias e até perder a condição militar. A recorrente alega ainda a inconstitucionalidade dos citados art.ºs 142º e 152º do C.J.M. 'ao criarem um tipo legal de crime, diverso exclusivamente em função da qualidade de militar, violando, o princípio da igualdade'. Os crimes essencialmente militares existem e foram criados para protegerem os bens jurídicos militares, que tutelam e asseguram os valores e princípios fundamentais da Instituição Militar, essenciais para a própria existência desta e das suas actividades fundamentais. Em todas as legislações do mundo que prevêem crimes militares, a deserção é considerada o crime padrão, o mais comum e 'militar' dos delitos castrenses, porque visa assegurar a presença e a submissão do militar à disciplina e à autoridade, que permitam impor o cumprimento das missões que cabem às Forças Armadas. Sem militares presentes e cumpridores não existem Forças Armadas, nem estas podem assegurar e cumprir as suas missões. Daí que o crime de deserção seja previsto como crime militar próprio, severamente punido pelos graves danos que pode causar à operacionalidade das Forças Amadas. Não tem este crime comparação ou semelhança com qualquer crime comum, que permita equacionar a eventual violação do princípio da igualdade e também não se vê que este princípio seja ofendido com a existência dos crimes militares próprios só praticáveis por militares quando eles resultam do incumprimento de deveres militares específicos da condição militar. Importa referir que o vínculo que liga um militar ao Estado não é um contrato laboral, até porque o direito do trabalho rege os contratos de direito privado, mas sim um vínculo administrativo, que, como é sabido, não pode ser rescindido unilateralmente pelo agente. E os militares, pela condição especial que assumem, pelos deveres que prometem cumprir no juramento de bandeira e que são constitucionalmente autorizados, têm um liame mais forte com a Instituição a que pertencem e que só podem quebrar nos termos e nos casos previstos na lei. A recorrente obteve o abate aos quadros permanentes, perdendo a condição militar e o vínculo que a ligava às Forças Armadas. Só que até então tinha de cumprir o seu dever de assiduidade, cuja violação por forma total e por período superior ao previsto na lei, a fez cometer o crime de deserção, cuja constitucionalidade
é patente. O Tribunal recorrido decidiu fazer uso da faculdade de atenuação extraordinária da pena, nos termos do art.º 39º do C.J.M. e fixar esta no mínimo legal abstracto - dois (2) meses de prisão militar. São decisões que não podem ser revogadas nem alteradas, por imposição do art.º
440º, n.º 1, alíneas a) e b) do C.J.M., posto que o próprio Tribunal a quo tenha reconhecido o excesso de benevolência usado. Mais decidiu o acórdão recorrido substituir por multa a pena de prisão militar aplicada, nos termos das disposições do C. Penal.
É decisão, no caso, duplamente errada. Em primeiro lugar, porque fixando o art.º 24º do Código de Justiça Militar as penas aplicáveis aos crimes essencialmente militares, que não incluem a pena de multa, não é possível, aplicar-se subsidiariamente esta ou outra não prevista no referido art.º 24º, não só por não haver lacuna a suprir, mas ainda porque tal aplicação subsidiária iria violar norma expressa do C.J.M.. Somente quando a lei expressamente o ordenar será legítima a utilização da pena de multa, não por recurso ao direito subsidiário, mas por aplicação dessa lei expressa. Ora, tendo a recorrente perdido a condição militar, cessado o serviço efectivo e excedido a idade limite (35 anos) de vinculação a obrigações militares (art.º1º, n.º 6 da Lei n.º 174/99, de 21 de Setembro), não era militar no momento do julgamento, pelo que, nos termos do art.º46º, n.º 1, alínea d) do C.J.M. a pena aplicada devia ser substituída por multa, substituição a operar não por imperativo de uma norma do C. Penal, mas de harmonia com o citado art.º 46º. Apesar do montante fixado no aresto recorrido para o quantitativo diário da multa a pagar seja manifestamente reduzido em face da condição económica da recorrente, entende-se que a proibição, da reformatio in pejus impõe a não elevação do aludido quantitativo. Tal proibição não abrange, porém, a ordem de não transcrição deste acórdão e do aresto recorrido no registo criminal, determinação que se entende injustificada.
[...]
4. Foi desta decisão que foi interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art.
70º da LTC, o presente recurso, que a recorrente delimita da seguinte forma
(fls. 275 e 276):
“(...) O presente recurso (...) tem por objecto: a) a inconstitucionalidade dos artigos 309º e 313º do Cód. Just. Militar por confronto com o disposto nos artigos 213º e 165º, n.º 1, al. p) da Constituição da República Portuguesa; b) do art. 377º, n.º 1, do Cód. Just. Militar por violação do disposto nos arts.
219º, n.º 1 e 32º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa; c) dos artigos 142º, n.º 1, al. a) e 152º, n.º 1, al. a) do Cód. Just. Militar em face do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, quando este consagra o princípio da igualdade; d) dos artigos 418º e 419º do Cód. Just. Militar, no que concerne aos requisitos da fundamentação da sentença (e subsidiariamente dos arts. 374º, n.º 2 e 379º, al. a) do Cód. Proc. Penal) tendo em vista o disposto nos arts. 205º, n.º 1, e
32º, n.ºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa; e) e do mesmo art. 418º, n.º 1 do Cód. Just. Militar, quando exclui o recurso em matéria de facto, em face do art. 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa; f) do art. 171º, n.º 3 do EMFAR, por violação dos arts. 58º e 59º da Constituição da República Portuguesa”.
5. Admitido o recurso foi a recorrente notificada para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
“a) os arts. 309° e 313° do Cod. Justiça Militar, ao atribuírem competência aos Tribunais Militares para julgarem crimes que se encontram igualmente previstos na jurisdição penal comum, revelam-se inconstitucionais, por violarem os arts.
213° e 165°, n° 1, al. p) da Constituição da República Portuguesa, chamando para a jurisdição militar situação dela excluídas constitucionalmente; b) de facto, aos tribunais militares cabe, exclusivamente, o julgamento dos crimes estritamente militares, ou seja, daqueles próprios e que apenas em sede militar têm previsão legal em função da especificidade das situações
(nomeadamente, a vigência de estado de guerra), o que se compreende em virtude de, sendo a lei penal militar especial, a mesma cede lugar à lei penal comum; c) ao ponto da própria da Lei Constitucional n° 1/97, de 20 de Setembro, no seu art. 197°, falar em crimes estritamente militares e não essencialmente militares; d) aplicando-se a lei penal geral aos funcionários, logo, também aos militares, que o são em termos legalmente uniformes; e) do mesmo modo, o art. 377°, n° 1, do Cod. Justiça Militar, ao atribuir competência ao promotor publico, sob ordem superior, para deduzir a acusação, viola o princípio da exclusividade do Ministério Publico para a dedução de acusação, consagrado no art. 219°, n°1, da Constituição da República Portuguesa; f) constituindo a autonomia do Ministério Publico uma componente essencial das garantias de defesa dos arguidos, evitando o exercício da justiça penal privada e de interesse, não se pode conceber que um subalterno hierárquico, sem autonomia e com completa dependência, se veja constrangido (coagido) a deduzir uma acusação que, de imediato, determina o julgamento criminal do arguido, à revelia dos ditames mais elementares componentes do Estado de Direito democrático; g) os arts. 142°, n° 1, al. a) e 152°, n° 1, al. a) do Cod. de Justiça Militar, ao criarem um tipo legal de crime diverso exclusivamente em função da qualidade de militar, violando o princípio da igualdade, determinando a sua inconstitucionalidade à luz do art. 13° da Constituição da República Portuguesa; h) tais questões não são resolvidas pelo art. 197° da Lei Constitucional n.°
1/97, que não excluiu a consideração efectiva de um facto como crime militar ou não, a incompetência do promotor, a existência de normas especiais e a incompetência do tribunal; i) a sentença recorrida revela-se sem fundamentação na medida em que se limita a proceder a uma mera enunciação de depoimentos sem que proceda a qualquer indicação concreta de qual a fundamentação especifica dos factos dados por assentes, sem estabelecer qualquer nexo de causalidade entre a motivação que invoca genericamente e os factos dados por provados; j) situação que confronta os arts. 374°, n° 2, do Cod. Proc. Penal e 418° e 419° do Cod. Just. Militar e determina a nulidade da sentença recorrida, à luz, desde logo, do art. 379°, al. a) do mesmo Cod. Proc. Penal; k) de facto, inviável, em face dos elementos expressos constantes da sentença recorrida, se revela proceder à reconstituição do itinerário cognoscitivo do julgador, tal como é obrigação do mesmo, quer em face dos preceitos já indicados, quer em face do art. 205°, n° 1 da Constituição da República Portuguesa; I) sendo a fundamentação um elemento absolutamente essencial do direito de recurso e do princípio do contraditório vide, respectivamente, o art. 32°, n.ºs
1 e 5 da Constituição da República Portuguesa), a alusão genérica aos depoimentos e a documentos juntos aos autos não permite definir, em relação aos factos dados por assentes, quais os meios de prova que estiveram na sua base, indicação essa que tem imperativamente de ser efectuada individualizadamente em relação a cada um dos factos dados por assentes, até porque cada facto configura, em si, uma decisão; m) sendo impossível determinar, por exemplo, e de forma mais crassa, qual a motivação subjacente aos factos imputados à recorrente de que a mesma sabia ser a sua conduta proibida por lei, da matéria de facto dada por assente e provada, tanto mais que a valoração dos meios de prova é absolutamente insusceptível de ser determinada e a mesma é omissa quanto à razão de ciência das diferentes testemunhas, para alem de não se revelar discriminado o alcance da alegada confissão pela recorrente; n) revelando-se inconstitucionais os arts. 374°, n° 2 do Cod. Proc. Penal e 418° e 419° do Cod. Just. Militar se interpretados no sentido de isentarem de fundamentação a fixação da matéria de facto com os requisitos supra vazados, atento os arts. 205°, n.º 1 e 32º, n.ºs 1 e5 da Constituição da República Portuguesa; o) cabendo os Supremo Tribunal Militar a apreciação da impugnação da matéria de facto, não obstante o disposto no art. 418º, n.º 1 do Cod. Just. Militar, pois que o direito ao recurso, consagrado no art. 32°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa não permite a delimitação da possibilidade de recurso à matéria de direito; p) o disposto no art. 171°, n.º 3, do EMFAR tem de ser necessariamente compulsado à luz dos arts. 58° e 59° da Constituição da República Portuguesa, quando estes permitem o efectivo direito ao trabalho, na vertente de rescisão do mesmo (negativa); q) não se podendo prender (utilizando tal termo na sua acepção física) uma pessoa a um local de trabalho contra a sua vontade, sob pena de se conferir ao art. 171º, n° 3 do EMFAR uma interpretação inconstitucional à luz dos arts. 58° e 59° da Constituição da República Portuguesa [...]”.
6. Notificado para responder, querendo, às alegações da recorrente, disse o Ministério Público a concluir:
“1º - Face ao disposto no artigo 197º da Lei Constitucional n.º 1/97, o regime emergente do Código de Justiça Militar mantém-se em vigor até que seja editada a nova regulação do direito penal e processual penal militar, em conformidade com o novo figurino emergente da revisão constitucional de 1997.
2º - Não viola qualquer princípio constitucional o estabelecimento de um regime laboral específico para os militares, bem como a deserção como crime essencialmente militar.
3º - A decisão recorrida não interpretou nem aplicou as normas que regem sobre o dever de fundamentação da decisão condenatória, proferida em processo penal no sentido apontado pela recorrente, em termos de usar como critério normativo a isenção de fundamentação do decidido sobre a matéria de facto.
4º - Não viola o direito ao recurso, ínsito nas garantias de defesa do arguido, a interpretação normativa que aplica o artigo 418º, n.º 1, do Código de Justiça Militar em estrita articulação com as normas da versão originária do Código de Processo Penal de 1987 que regulam a revista ampliada”.
5º - Termos em que improcede manifestamente o presente recurso”.
7. Notificada para se pronunciar, querendo, sobre a questão suscitada pelo Ministério Público no ponto 3º da conclusões das contra-alegações, a recorrida nada disse.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
8. Delimitação do objecto do recurso
8.1. O Tribunal Constitucional tem afirmado, repetidamente, que o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do art. 70º da LTC pressupõe, designadamente, que a decisão recorrida tenha efectivamente aplicado, como ratio decidendi, as normas cuja inconstitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada por este Tribunal.
Ora, in casu, é manifesto que tal não aconteceu em relação ao disposto no artigo
171º, n.º 3, do Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFAR), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 236/99, de 25 de Junho, referido pela recorrente na alínea f) do requerimento de interposição do recurso, preceito que se refere aos critérios a considerar na fixação da indemnização a que se refere a alínea c) do n.º 1 do mesmo preceito, matéria que, claramente, não foi objecto da decisão recorrida.
Não pode, por isso, nesta parte, conhecer-se do objecto do recurso.
8.2 Sustenta ainda o representante do Ministério Público que não pode conhecer-se da questão colocada pela recorrente na alínea d) do requerimento de interposição do recurso, relativa aos requisitos de fundamentação da sentença condenatória proferida em processo penal militar. Com efeito, refere aquele Magistrado, a concluir a sua alegação, que “a decisão recorrida não interpretou nem aplicou as normas que regem sobre o dever de fundamentação da decisão condenatória, proferida em processo penal militar, no sentido apontado pela recorrente, em termos de usar como «critério normativo» a isenção de fundamentação do decidido sobre a matéria de facto”.
Mas, quanto a este ponto, não tem razão o Ministério Público, como se verá já de seguida.
A interpretação normativa dos artigos 418º e 419º do Código de Justiça Militar e, subsidiariamente, do artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal, cuja inconstitucionalidade a ora recorrente suscitou, durante o processo, designadamente nas alíneas n) a s) das conclusões da alegação do recurso que apresentou perante o Supremo Tribunal Militar e, agora, pretende ver apreciada, não é a que dispensa, sem mais, a necessidade de fundamentação da matéria de facto, mas sim a que isenta essa fundamentação do cumprimento de determinadas exigências, que a recorrente expressamente identifica naquelas conclusões.
Efectivamente, a concluir, quer a alegação de recurso que apresentou junto do Supremo Tribunal Militar, quer a alegação que ofereceu já no Tribunal Constitucional, sustentou a recorrente que são inconstitucionais os artigos 418° e 419° do Código de Justiça Militar e, subsidiariamente, o artigo 374°, n° 2 do Código de Processo Penal, “se interpretados no sentido de isentarem de fundamentação a fixação da matéria de facto, com os requisitos supra vazados
(...)”. Ora, imediatamente antes, a recorrente havia sustentado que a sentença recorrida se revela sem fundamentação “na medida em que se limita a proceder a uma mera enunciação de depoimentos sem que proceda a qualquer indicação concreta de qual a fundamentação especifica dos factos dados por assentes, sem estabelecer qualquer nexo de causalidade entre a motivação que invoca genericamente e os factos dados por provados”, o que, na sua perspectiva, tornaria “inviável, em face dos elementos expressos constantes da sentença recorrida, (...) proceder à reconstituição do itinerário cognoscitivo do julgador, tal como é obrigação do mesmo, quer em face dos preceitos já indicados, quer em face do art. 205º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa”. Acrescentou, ainda, que “sendo a fundamentação um elemento absolutamente essencial do direito de recurso e do princípio do contraditório
(vide, respectivamente, o art. 32º, n.ºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa), a alusão genérica aos depoimentos e a documentos juntos aos autos não permite definir, em relação aos factos dados por assentes, quais os meios de prova que estiverem na sua base, indicação essa que tem imperativamente de ser efectuada individualizadamente em relação a cada um dos factos dados por assentes [...]”. [Sublinhados nossos].
Em síntese: colocou, pois, a recorrente - durante o processo e já perante o Tribunal Constitucional - a questão da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 418° e 419° do Código Justiça Militar e, subsidiariamente, do artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos factos provados e dos meios de prova utilizados, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, por violação do disposto nos artigos 32º, n.ºs 1 e 5, e 205º da Constituição.
E, ao contrário do que também sustenta o Ministério Público, esta interpretação normativa, embora referida apenas ao artigo 418º, n.º 1 do CJM (cfr. fls 269), foi efectivamente aplicada pela decisão recorrida para, nesta parte, julgar improcedente o recurso.
Com efeito, para negar provimento à alegada nulidade da decisão proferida em primeira instância, por insuficiência da fundamentação, o Supremo Tribunal Militar sufragou inteiramente o critério normativo que, quanto a esta questão, havia sido adoptado naquela decisão. Ora, na decisão proferida em primeira instância, o 2º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, tinha-se limitado a, depois de elencar os factos provados e não provados, referir que “o Tribunal, para fixar a matéria de facto dada como assente, fundou-se na confissão espontânea da ré, nos depoimentos das testemunhas prestados em audiência, nos documentos de fls. 2, 4 a 7, 22, 39 a 76, 79 e 80, 105, 107, 160 e 161, e 191 a
194, nas folhas de matrícula de fls. 8 a 18, 131 a 134, 162 a 165, e na folha de alterações de fls. 27 a 30”, o que, evidentemente, considerou suficiente para que se mostrasse cumprido o imposto pelos preceitos aplicáveis em matéria de fundamentação da sentença.
Nessa medida, a primeira instância e a decisão recorrida utilizaram, efectivamente, o sentido normativo do n.º 1 do artigo 418º do Código de Justiça Militar, cuja inconstitucionalidade a recorrente suscitou, desde logo, nas suas alegações de recurso da decisão da primeira instância e pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, a saber: o que se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados e dispensa a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal.
9. Julgamento do objecto do recurso.
Delimitado o objecto do recurso, passemos então, ao conhecimento das questões a decidir, que são as seguintes:
a) a de saber se são inconstitucionais os artigos 309º e 313º do Código de Justiça Militar, ao atribuírem competência aos Tribunais Militares para julgarem crimes essencialmente militares, por alegada violação dos artigos 213º e 165º, n.º 1, al. p) da Constituição.
b) a de saber se é inconstitucional o artigo 377º do Código de Justiça Militar, que prevê a dedução do libelo acusatório por um oficial superior do Exército, na qualidade de promotor de justiça, e não por um magistrado do Ministério Público, por alegada violação dos artigos 219º, n.º 1 e 32º, n.º 5 da Constituição;
c) a de saber se são inconstitucionais os artigos 142º, n.º 1, al. a) e 152º, n.º 1, al. a) do Código de Justiça Militar, que tipificam e punem o crime de deserção, por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição;
d) a de saber se é inconstitucional a norma constante do n.º 1 do artigo 418° do Código de Justiça Militar, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, por violação do disposto nos artigos 32º, n.ºs 1 e 5 e
205º da Constituição;
e) a de saber se é inconstitucional o mesmo n.º 1 do artigo 418º do Código de Justiça Militar, na parte em que exclui o recurso em matéria de facto, por violação do disposto no artigo 32º, n.º 1, da Constituição;
9.1 Da alegada inconstitucionalidade dos artigos 309º e 313º do Código de Justiça Militar, por violação dos artigos 213º e 165º, n.º 1, al. p) da Constituição.
É o seguinte o teor dos artigos 309º e 313º do Código de Justiça Militar:
“Artigo 309º Aos tribunais militares compete, além de quaisquer outras funções determinadas na lei, o conhecimento dos crimes essencialmente militares e dos crimes dolosos que, por lei, vierem a ser equiparados àqueles”.
“Artigo 313º Aos tribunais militares territoriais compete conhecer dos crimes essencialmente militares ou equiparados cometidos na área da respectiva jurisdição por pessoal militar ou civil pertencente ao Exército e às forças militarizadas bem como quaisquer outras pessoas integradas ou não nas forças armadas, com excepção do pessoal mencionado no artigo seguinte”.
A questão de constitucionalidade que, em relação a estas normas, vem colocada pela recorrente não é nova na jurisprudência do Tribunal Constitucional. Com efeito, este Tribunal teve já oportunidade de, por diversas vezes, sobre ela se pronunciar, sempre tendo concluído pela não inconstitucionalidade das referidas normas (cfr., designadamente, os Acórdãos n.ºs 47/99, 392/99, 64/01, publicados no Diário da República, II Série, de 26 de Março e 9 de Novembro de 1999 e de 27 de Março de 2001, respectivamente, e o acórdão n.º 194/02, apenas disponível na página Internet do Tribunal Constitucional, em
www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm). Nesse sentido, escreveu-se no Acórdão n.º 392/99:
' [...] 8. Passando a analisar a questão de inconstitucionalidade relativa às normas constantes dos artigos 309º e 313º do CJM, cumpre reconhecer que a competência dos tribunais militares se encontra, depois da última revisão constitucional, restringida no artigo 213º da Constituição da República, ao julgamento de crimes estritamente militares e apenas durante a vigência do estado de guerra. No entanto, nos termos do artigo 197º da Lei Constitucional nº 1/97, «os tribunais militares, aplicando as disposições legais vigentes, permanecem em funções até à data da entrada em vigor da legislação que regulamenta o disposto no nº 3 do artigo 211º da Constituição», pelo que se mantém transitoriamente inalterada a competência daqueles tribunais até à data da entrada em vigor da legislação que vier regulamentar a composição dos tribunais judiciais que julguem crimes de natureza estritamente militar. Esse o sentido da permanência em funções dos tribunais militares, aplicando as disposições legais vigentes, o que só pode significar a manutenção do Código de Justiça Militar (em tudo o que não fosse já inconstitucional, face à versão anterior da Lei Fundamental). Não sofrem, assim, os artigos 309º e 313º do CJM de qualquer inconstitucionalidade. [...]”
É, pois, esta jurisprudência, para cuja fundamentação expressamente se remete, uma vez que mantém inteira validade, que agora há que reiterar, não considerando inconstitucionais as normas contidas nos artigos 309º e 313º do CJM.
9.2 Da alegada inconstitucionalidade do artigo 377º do Código de Justiça Militar, na parte em que prevê que a dedução do libelo seja feita por um oficial superior do Exército, na qualidade de promotor de justiça, e não por um magistrado do Ministério Público, por alegada violação dos artigos 219º, n.º 1 e
32º, n.º 5 da Constituição.
Também esta questão foi já objecto de apreciação por este Tribunal que, mais recentemente, no Acórdão n.º 64/01 (já citado), concluiu pela não inconstitucionalidade da norma que vem questionada pela recorrente. Com especial interesse para os presentes autos, ponderou, então, o Tribunal Constitucional:
“[...] Assim, quando no artigo 197º da Lei Constitucional n.º 1/97 se refere que os tribunais militares permanecem em funções até à data da entrada em vigor da legislação que regulamenta o disposto no n.º 3 do artigo 211º da Constituição, pretendeu-se salvaguardar, não só a competência dos tribunais militares, mas a própria organização judiciária militar. Com efeito, sem a manutenção da organização judiciária até à data existente, seria necessária a criação de um regime transitório de organização judiciária militar, ao qual aquela Lei Constitucional não alude e que certamente não pretende, dado que a natural demora na sua aprovação provocaria a imediata paralisação dos tribunais militares. Não quer com isto evidentemente dizer-se que o artigo 197º da Lei Constitucional n.º 1/97 tenha o alcance de sancionar todos os preceitos do Código de Justiça Militar. Todavia, sob pena de os tribunais militares não se poderem manter transitoriamente em funcionamento, aplicando o Código de Justiça Militar, forçoso é concluir que aquele preceito ressalvou as especificidades da organização judiciária militar.
15.5. Problema que se pode colocar é o de saber se uma dessas especificidades é a promotoria de justiça, isto é, se a intenção de manutenção transitória da organização judiciária militar, expressa no artigo 197º da Lei Constitucional n.º 1/97, significa também a intenção de manutenção transitória da promotoria de justiça. Para responder a esta questão é necessário ter em conta a inserção sistemática das normas relativas à promotoria de justiça no Código de Justiça Militar e diplomas avulsos anteriores à data da aprovação daquela Lei Constitucional, ou seja, é necessário verificar se esse Código e esses diplomas tratavam da promotoria de justiça a propósito da organização judiciária militar. Se se concluir afirmativamente, existem razões para supor que o artigo 197º da Lei Constitucional n.º 1/97, ao manter transitoriamente a organização judiciária militar, manteve transitoriamente também a promotoria de justiça. Ora, nos termos dos artigos 210º e 213º do Código de Justiça Militar, a organização judiciária militar em tempo de paz compreende, designadamente, a existência de tribunais militares, que são os tribunais militares de instância e o Supremo Tribunal Militar. E quando regula, nos artigos 214º a 216º, o exercício de funções nos tribunais militares, estabelecendo incompatibilidades e impedimentos para o efeito, esse Código trata em simultâneo dos juízes militares e dos promotores de justiça. Por outro lado, o artigo 232º do Código de Justiça Militar, depois de regular a constituição dos tribunais militares (n.º 1), estabelece que junto de cada um desses tribunais funciona uma promotoria de justiça (n.º 2). Os artigos 251º a 257º, 272º e 282º a 287º reafirmam a ligação orgânica das promotorias de justiça aos tribunais militares. O panorama nos diplomas avulsos não é muito diverso, no que toca à inserção das promotorias de justiça na organização judiciária militar. Assim, o Decreto-Lei n.º 145-A/77, de 9 de Abril, que regula a constituição dos tribunais militares territoriais, trata simultaneamente dos cargos de juiz militar e de promotor de justiça. Também o Decreto-Lei n.º 319-A/77, de 5 de Agosto, que regula em simultâneo o desempenho de funções de juiz militar e de promotor de justiça, considera que tais funções são exercidas nos tribunais militares. O Decreto-Lei n.º 28/78, de 27 de Janeiro, a propósito do funcionamento dos tribunais militares de instância, autoriza a criação de juízes e promotores auxiliares, implicitamente considerando, portanto, que estas pessoas exercem as suas funções nos tribunais militares. Finalmente, o Decreto-Lei n.º 224/78, de 4 de Agosto, a propósito do Tribunal Territorial de Macau, trata simultaneamente das funções e nomeação dos juízes militares e promotor de justiça.
15.6. Pode, pois, concluir-se com segurança que o artigo 197º da Lei Constitucional n.º 1/97, ao referir a permanência em funções dos tribunais militares, pretendeu salvaguardar transitoriamente, não apenas a competência dos tribunais militares, mas também os vários serviços e entidades que exerciam, até
à data, funções junto dos tribunais militares. Todos eles eram necessários para o funcionamento dos tribunais militares, que se pretendeu manter transitoriamente. Tal não significa, obviamente, que o tribunal militar e o promotor de justiça não sejam sujeitos processuais distintos. Mas desta diferenciação não pode retirar-se a inaplicabilidade do artigo 197º daquela Lei Constitucional às promotorias de justiça: esta inferência (que o recorrente parece fazer, nas suas alegações para este Tribunal) parte do errado pressuposto de que bastaria a manutenção da competência e da composição (no que se refere aos juízes) dos tribunais militares, para manter em funcionamento os tribunais militares. Ora não é assim, já que a abolição das outras especificidades da organização judiciária militar existente redundaria na criação de uma nova forma de funcionamento dos tribunais militares, situação não querida pelo referido artigo
197º. O artigo 219º, n.º 1, da Constituição, ao cometer o exercício da acção penal ao Ministério Público, não significa assim a atribuição a esta entidade do monopólio da acção penal junto dos tribunais militares, enquanto estes permaneçam em funcionamento. Efectivamente, mantendo o artigo 197º da Lei Constitucional n.º 1/97 transitoriamente em funções as promotorias de justiça – na medida em que, como se disse, mantém em funções os próprios tribunais militares –, forçoso é concluir que, no campo da justiça militar, a legitimidade de tais promotorias para o exercício da acção penal tem de continuar a ser reconhecida. Os artigos 251º a 257º, 283º a 287º e 377º do Código de Justiça Militar – ao preverem a intervenção do promotor de justiça nas audiências de julgamento e em demais diligências processuais previstas no Código de Justiça Militar, e ao preverem a dedução do libelo pelo promotor de justiça – não violam, pois, o artigo 219º da Constituição, que tem de ser interpretado em conjugação com o artigo 197º da Lei Constitucional n.º 1/97. [...]”
Também quanto a esta questão nada mais resta do que, confirmando a jurisprudência citada, que mantém inteira validade e é aplicável no caso concreto, concluir pela improcedência do recurso.
9.3. Da alegada inconstitucionalidade dos artigos 142º, n.º 1, alínea a) e 152º, n.º 1, alínea a) do Código de Justiça Militar, que tipificam e punem o crime de deserção, por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.
Entende ainda a recorrente que os artigos 142º, n.º 1, al. a) e 152º, n.º 1, al. a) do Código de Justiça Militar, “ao criarem um tipo legal de crime diverso exclusivamente em função da qualidade de militar, violam o princípio da igualdade, determinando a sua inconstitucionalidade à luz do art. 13º da Constituição da República Portuguesa”.
Vejamos.
O Tribunal Constitucional tem tido frequentemente ocasião de se pronunciar sobre o sentido e o alcance do princípio constitucional da igualdade. Ainda recentemente, no Acórdão n.º 232/03, tirado em Plenário, em autos de fiscalização preventiva, se procedeu a uma síntese da abundante jurisprudência constitucional nesta matéria. Dessa jurisprudência ressalta que o princípio da igualdade obriga que se trate como igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente, não impedindo a diferenciação de tratamento, mas apenas a discriminação arbitrária, a irrazoabilidade, ou seja, as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante.
Assim, como se escreveu no Acórdão n.º 187/01 (Diário da República, II série, de
26 de Junho de 2001), “como princípio de proibição do arbítrio no estabelecimento da distinção, tolera, pois, o princípio da igualdade a previsão de diferenciações no tratamento jurídico de situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista, idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou fundamento razoável, sob um ponto de vista que possa ser considerado relevante”.
Decorre, assim, da jurisprudência do Tribunal quanto ao sentido e alcance do princípio constitucional da igualdade que a questão decisiva é a de saber se tem fundamento material bastante ou se, pelo contrário, é violadora do princípio da igualdade, a distinção entre “médico militar” e “médico não militar”, para efeitos de valoração, como crime de “deserção”, do facto de o agente se ausentar, sem licença, do seu local de serviço, conservando-se na situação de ausência ilegítima por mais de oito dias consecutivos. A perspectiva da recorrente é a de que tal distinção viola o princípio da igualdade, porque “ [...] de específico, concreto e diferenciador no tipo legal de deserção está o facto (apenas o facto) de alguém integrar um serviço das forças armadas”, o que, mais uma vez na perspectiva da recorrente, “por si só, nunca pode determinar que alguém esteja submetido a uma moldura sancionatória diversa, mais grave, e à integração de competência de um tribunal diferente”. Conclui, pois, a recorrente, que “não existe em relação ao médico militar qualquer dever acrescido ou específico em relação a um funcionário médico, nem este exerce funções de menor dignidade ou interesse público, especialmente se tivermos presente que estamos perante a prática de actos médicos, os quais não são diferenciados em função do seu destinatário e beneficiário ser ou não militar”.
Por sua vez, na perspectiva da decisão recorrida, a distinção é perfeitamente justificada. Sobre esta questão, ponderou a decisão recorrida que “os crimes essencialmente militares existem e foram criados para protegerem os bens jurídicos militares, que tutelam e asseguram valores e princípios fundamentais da Instituição Militar, essenciais para a própria existência desta e das suas actividades fundamentais”. É precisamente por isso que, acrescenta-se naquele aresto, “em todas as legislações do mundo que prevêem crimes militares, a deserção é considerada o crime padrão, o mais comum e «militar» dos delitos castrenses, porque visa assegurar a presença e a submissão do militar à disciplina e à autoridade, que permitem impor o cumprimento das missões que cabem às forças armadas. Sem militares presentes e cumpridores não existem forças armadas, nem estas podem cumprir as suas missões”. Daí que, em conclusão, se refira que “não tem este crime comparação ou semelhança com qualquer crime comum, que permita equacionar a eventual violação do princípio da igualdade e também não se vê que este princípio seja ofendido com a existência dos crimes militares próprios só praticáveis por militares quando eles resultam do incumprimento de deveres militares específicos da condição de militar”.
Ora, sobre este ponto, tem efectivamente razão a decisão recorrida.
Com efeito, a diferenciação de tratamento que aqui se constata não pode considerar-se destituída de fundamento razoável ou arbitrária, em termos de consubstanciar uma violação do princípio constitucional da igualdade.
Na verdade, trata-se aqui (nas hipóteses em que em causa está a falta de comparência no seu posto de serviço de um militar) de preservar um interesse fundamental e específico da instituição militar - a disciplina e a coesão essenciais ao funcionamento eficaz da própria instituição militar - que, obviamente, não está em causa quando o comportamento descrito seja realizado por um não militar. Como, bem, se pondera na decisão recorrida, “ [...] a [punição da] deserção [...] visa assegurar a presença e a submissão do militar à disciplina e à autoridade própria das forças armadas [...],” condições sem as quais “não existem forças armadas, nem estas podem cumprir as suas missões”.
Assim, sendo diferentes os valores jurídicos violados na hipótese em que a conduta é praticada por um militar e na hipótese em que o não é, não faz sentido apelar para o princípio da igualdade. Não há, dados os valores em presença, arbítrio ou diferença de tratamento materialmente infundada e que, por isso mesmo, se mostre irrazoável e arbitrária.
Como se demonstrou, tal diverso tratamento jurídico não pode, portanto, considerar-se destituído de fundamento constitucionalmente relevante – a preservação da disciplina militar -, não podendo divisar-se nos artigos 142º, n.º 1, al. a) e 152º, n.º 1, al. a) do Código de Justiça Militar violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Lei Fundamental.
9.4. Da alegada inconstitucionalidade das norma constante do artigo 418°, n.º 1, do Código de Justiça Militar, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, por violação do disposto nos artigos 32º, n.ºs 1 e 5 e
205º da Constituição.
É o seguinte o teor do n.º1 do artigo 418º do Código de Justiça Militar:
“Artigo 418º
1. O tribunal julgará de facto definitivamente, segundo a sua consciência, com plena liberdade de apreciação, e de direito.
[...]”
Sobre as exigências constitucionais de fundamentação das decisões condenatórias em processo penal, o Tribunal Constitucional decidiu já, nos Acórdãos n.ºs
680/98 (Diário da República, II Série, de 5 de Março de 1999) e 636/99
(disponível na página Internet do Tribunal Constitucional, em
www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm) “julgar inconstitucional a norma constante do n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal de 1987, na redacção anterior à Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no n.º 1 do artigo
205º da Constituição [...] ”.
Ponderou, então, o Tribunal, logo no primeiro daqueles arestos:
“ [...] 7. Dispõe a Constituição, no nº 1 do artigo 205º, que 'as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei'. Este texto, resultante da Revisão Constitucional de 1997, veio substituir o nº 1 do artigo 208º, que determinava que 'as decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei'. A Constituição revista deixa perceber uma intenção de alargamento do âmbito da obrigação constitucionalmente imposta de fundamentação das decisões judiciais, que passa a ser uma obrigação verdadeiramente geral, comum a todas as decisões que não sejam de mero expediente, e de intensificação do respectivo conteúdo, já que as decisões deixam de ser fundamentadas 'nos termos previstos na lei' para o serem
'na forma prevista na lei'. A alteração inculca, manifestamente, uma menor margem de liberdade legislativa na conformação concreta do dever de fundamentação.
[...] Ora, tal como se afirma no mesmo Acórdão 310/94, a determinação do alcance que o legislador ordinário há-de conferir à obrigação de fundamentar as decisões judiciais obriga a indagar quais as funções desempenhadas pela fundamentação, tendo em conta que, diferentemente do caso ali em análise, nos encontramos perante uma decisão condenatória proferida em processo penal. Assim, desde logo, a fundamentação de uma sentença contribui para a sua eficácia, já que esta depende da persuasão dos respectivos destinatários e da comunidade jurídica em geral. Escreve EDUARDO CORREIA: 'só assim racionalizada, motivada, a decisão judicial realiza aquela altíssima função de procurar, ao menos, 'convencer' as partes e a sociedade da sua justiça, função que em matéria penal a própria designação do condenado por 'convencido' sugere' (Parecer da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra sobre o artigo 653º do Projecto, em 1ª Revisão Ministerial, de alteração do Código de Processo Civil, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. XXXVII (1961), pág. 184). A fundamentação permite, ainda, quer pelas próprias partes, quer, o que é de realçar, pelos tribunais de recurso (v. MICHELE TARUFFO, Note sulla garanzia costituzionale della motivazione in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LV (1979), págs. 31-32), fazer, como escreve MARQUES FERREIRA, “intraprocessualmente, o reexame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via do recurso (...)' ('Meios de prova, in Jornadas de Direito Processual Penal - o novo Código de Processo Penal, Coimbra,
1992, pág. 230). Mais importante, todavia, é a circunstância de a obrigação de fundamentar as decisões judiciais constituir um verdadeiro factor de legitimação do poder jurisdicional, contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a base sobre a qual repousa: o dever de dizer o direito no caso concreto (iuris dicere). E, nessa medida, é garantia de respeito pelos princípios da legalidade, da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões (v. MICHELE TARUFFO, op. cit., págs. 34-35, que escreve: 'a garantia constitucional do dever de fundamentação ocupa um lugar central no sistema de valores nos quais deve inspirar-se a administração da justiça no Estado democrático moderno').
É indiscutível que 'o princípio da motivação das decisões judiciais constitui uma das garantias fundamentais do cidadão no Estado de Direito e no Estado Social de Direito contra o arbítrio do poder judiciário', v. PESSOA VAZ, Direito Processual Civil - do antigo ao novo Código, Coimbra, 1998, pág. 211. Embora não venha ao caso fazer a história, nem sequer para o direito português, da obrigação de fundamentar as decisões judiciais, não podemos, a concluir este ponto, deixar de citar BENTHAM: “In legislation, in judicature, in every line of human action in which the agent is or ought to be accountable to the public or any part of it, – giving reasons is, in relation to rectitude of conduct, a test, a standard, a security, a source of interpretation. Good laws are such laws for which good reasons can be given: good decisions are such decisions for
which good reasons can be given” (An Introductory view of the Rationale of Evidence, in The Works of Jeremy Bentham, ed. de 1962, Nova Iorque, vol. VI, pág. 357), e de repetir que a motivação das decisões judiciais é uma garantia da possibilidade de controlo democrático do exercício do poder judicial em face dos cidadãos e do próprio Estado, exigência do princípio do Estado de Direito
(artigo 2º da Constituição).
8. Não sendo naturalmente uniformes as exigências constitucionais de fundamentação relativamente a todo o tipo de decisões judiciais, como já se referiu, algumas destas hão-de ser objecto de um dever de fundamentar de especial intensidade. Entre elas, facilmente se convirá estarem as decisões finais em matéria penal, mormente as condenatórias, na primeira linha. Atentos os fundamentos encontrados para o dever de fundamentação, é inelutável que abrange a decisão em matéria de facto e a decisão em matéria de direito. Ora a fundamentação das sentenças penais – especialmente das sentenças condenatórias, pela repercussão que podem ter na esfera dos direitos, liberdades e garantias das pessoas – deve ser susceptível de revelar os motivos que levaram a dar como provados certos factos e não outros, sobretudo tendo em conta que o princípio geral em matéria de avaliação das provas é o da sua livre apreciação pelo julgador, devendo também indicar as razões de direito que conduziram à decisão concretamente proferida. Afigura-se ser este o núcleo central da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais.
9. Vistas as coisas a esta luz, parece impossível compatibilizar o nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal de 1987, na interpretação adoptada pelo Tribunal recorrido quanto à fundamentação da decisão em matéria de facto, com as exigências constitucionais de fundamentação decorrentes da Constituição. Na verdade, o Supremo Tribunal de Justiça interpretou e aplicou a referida disposição do Código de Processo Penal no sentido de a fundamentação das decisões em matéria de facto se bastar com a 'simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância ', acrescentando, com citação de decisões anteriores do mesmo Tribunal, que 'só a ausência total, na sentença, da referência às provas que constituíram a fonte da convicção do tribunal constitui violação do artigo 374º, nº 2, do CPP, o que acarreta a nulidade da decisão por força do artigo 379º do mesmo Código'. Tal interpretação é coerente com o entendimento, também adoptado no acórdão recorrido, de que a função da fundamentação neste âmbito reside tão-só em possibilitar 'o controle da legalidade dos meios de prova produzidos em audiência', mas contradiz as bases em que assenta teleologicamente o dever constitucional de fundamentar.
10. A norma em apreciação, isoladamente considerada, contraria, portanto, o disposto na Constituição sobre fundamentação das decisões judiciais. Mas falta ainda apurar se, tomada no contexto em que se insere, designadamente na sua relação com as alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal de 1987, o nº 2 do artigo 374º viola os direitos da defesa, previstos no nº 1 do artigo 32º da Constituição.
[...] Julgou, portanto, o Tribunal Constitucional, em plenário [Acórdão 573/98 - D.R. II, 13.11.98], não enfermarem de inconstitucionalidade o nº 2 do artigo 410º e o nº 2 do artigo 433º do Código de Processo Penal de 1987 no pressuposto - que se afigura inelutável - de que o nº 2 do artigo 374º do mesmo Código impõe uma obrigação de fundamentação 'completa', permitindo a 'transparência do processo e da decisão'. Como se afirma no Acórdão 172/94 (e se reafirma, por exemplo, no Acórdão nº 504/94), 'a fundamentação da decisão do tribunal colectivo, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório'. Do exposto cabe concluir que, num sistema que circunscreve do modo indicado os poderes de apreciação da matéria de facto pelo Supremo Tribunal de Justiça, o aspecto central do qual depende a possibilidade efectiva – embora limitada – de reapreciação da matéria de facto é a imposição de um dever de fundamentação da decisão em matéria de facto com intensidade suficiente. Pode, pois, afirmar-se que a interpretação do nº 2 do artigo 374º adoptada pelo acórdão recorrido vem na prática inviabilizar o direito ao recurso ou a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, consagrados no nº 1 do artigo
32º da Constituição, ainda que se conceba esta garantia e aquele direito como tendo um âmbito e uma dimensão reduzidos por comparação com a matéria de direito. Razão pela qual se deve também considerar inconstitucional a norma em apreciação, na interpretação consagrada no acórdão recorrido, em conjugação com a norma do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal de 1987, por violação do direito ao recurso previsto no nº 1 do artigo 32º da Constituição. [...]”.
Esta jurisprudência, que aqui se reitera, é não só inteiramente transponível para uma sentença proferida em processo penal militar, mas também integralmente aplicável ao caso concreto em análise, conduzindo a que, do mesmo modo, se considere agora inconstitucional a norma contida no artigo 418°, n.º 1 do Código de Justiça Militar, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no n.º 1 do artigo 205º e do direito ao recurso consagrado no n.ºs 1 do artigo 32º da Constituição.
9.5. Da alegada inconstitucionalidade do artigo 418º, n.º 1, do Código de Justiça Militar, por alegada violação do artigo 32º, n.º 1, da Constituição.
Entende a recorrente que a norma contida no artigo 418°, n.º 1 do Código de Justiça Militar é, ainda, inconstitucional porquanto, em seu entender, “o direito ao recurso, consagrado no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, não permite a delimitação da possibilidade do recurso à matéria de direito”. Considera, em suma, a recorrente, que o n.º 1 do artigo 418º do Código de Justiça Militar, impedindo a reapreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso, viola as garantias de defesa consagradas pelo artigo 32º, n.º 1, da Constituição, nas quais se inclui o direito a um duplo grau de jurisdição em matéria de facto e não apenas em matéria de direito.
Diferentemente, o Supremo Tribunal Militar aplicou a norma do n.º1 do artigo
418º, que considerou conforme à Constituição, fazendo apelo à jurisprudência
«uniforme e constante» do Tribunal Constitucional, que tem entendido que o sistema de revista alargada fixado na lei para os recursos dirigidos aos Supremos Tribunais é conforme à Constituição, sendo certo que o reconhecimento da validade e fixação da matéria de facto pelo tribunal de 1ª instância só ocorre se não existirem nulidades que a afectem, incluindo o erro notório”.
Ora, também esta questão foi já objecto de apreciação no Tribunal Constitucional. Com efeito, no Acórdão 573/98 (publicado no Diário da República, II Série, de 13 de Novembro de 1998), em Plenário, o Tribunal decidiu não julgar inconstitucionais as normas resultantes da conjugação do artigo 433º do Código de Processo Penal com o corpo do n.º 2 do artigo 410º do mesmo Código, na medida em que limitam os fundamentos do recurso aos casos em que “o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum”.
Assim sendo, e à semelhança do que se decidiu no Acórdão n.º 126/00, também neste caso, foi nesse sentido que o Supremo Tribunal Militar interpretou a norma em sindicância, ao apoiar-se expressamente na interpretação feita pelo Tribunal Constitucional que é, afinal, a do Acórdão nº 573/98. Assim, o Supremo deu ao artigo 418º, nº 1, do Código de Justiça Militar um sentido que o compagina com a interpretação acolhida naquele aresto relativamente às normas dos artigos 433º e
410º, nº 2, citados”.
Portanto, tal como no referido Acórdão 126/00, mais não resta do que aplicar ao caso vertente a doutrina do Plenário .
10. Em conclusão: por tudo o exposto, há que concluir pela não inconstitucionalidade das normas do Código de Justiça Militar contidas, respectivamente, nos artigos 309º e 313º, ao atribuírem competência aos Tribunais Militares para julgarem crimes essencialmente militares, no artigo
377º, na parte em que prevê que a dedução do libelo acusatório seja feita por um oficial superior do Exército, na qualidade de promotor de justiça, e não por um magistrado do Ministério Público, nos artigos 142º, n.º 1, al. a) e 152º, n.º 1, al. a), na parte em que tipificam e punem o crime de deserção, e no artigo 418º, na parte em que exclui recurso em matéria de facto.
Ao invés, há que considerar inconstitucional a norma constante do n.º 1 do artigo 418° do Código de Justiça Militar, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no n.º 1 do artigo 205º e do direito ao recurso consagrado no n.º 1 do artigo 32º da Constituição.
III. Decisão.
Nestes termos, decide-se:
i) não conhecer do objecto do recurso, na parte em que a recorrente pretendia ver apreciada a inconstitucionalidade do artigo 171º, n.º 3 do EMFAR; ii) julgar inconstitucional a norma constante do n.º 1 do artigo 418° do Código de Justiça Militar, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais, previsto no n.º 1 do artigo 205º, e do direito ao recurso, consagrado no n.º 1 do artigo 32º, ambos da Constituição; iii) em consequência, ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade formulado; iv) quanto ao mais, negar provimento ao recurso.
Lisboa, 14 de Julho de 2003 Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Luís Nunes de Almeida