Imprimir acórdão
Processo n.º 480/98
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
J... intentou, em 11 de Janeiro de 1990, no Tribunal Judicial de Setúbal, contra E... e mulher, acção pedindo a condenação dos réus a pagar-lhe, por incumprimento de contrato-promessa de compra e venda da fracção autónoma designada pela letra “P”, correspondente ao 4.º andar, “A”, do prédio urbano sito em ..., Setúbal, a indemnização de 4 000 000$00 com juros compensatórios desde a citação, e o reconhecimento, para garantia de tal crédito, do direito de retenção sobre a fracção em causa. Aduziu, em suma, que:
(i) por contrato-promessa celebrado em 4 de Abril de 1986, os réus prometeram vender-lhe e ele comprar-lhes a dita fracção, pelo preço de 3 850 000$00, tendo entregue de sinal a quantia de 850 000$00; (ii) na sequência da celebração desse contrato, os réus facultaram-lhe o gozo desse andar, onde o autor habita, desde há anos, com a sua família, tendo-o mobilado, requisitado água, luz e gás e suportado as despesas do condomínio, tendo, assim, ocorrido a tradição do andar para o autor; (iii) apesar de várias insistência do autor, os réus protelaram a outorga da escritura, tendo aquele tomado a iniciativa de a marcar para 27 de Dezembro de 1989, no 2.º Cartório Notarial de Setúbal, convocando os réus, que não compareceram; (iv) esta não comparência será devida ao facto de o prédio estar hipotecado à C..., que moveu execução contra os réus, na qual o imóvel foi penhorado; (v) tendo os réus violado culposamente o contrato e tendo o autor perdido interesse na execução específica, tem este direito a indemnização correspondente ao valor do andar ao tempo do incumprimento (7 000 000$00, em Dezembro de 1989), deduzido do preço convencionado (3 850 000$00) e acrescido do sinal (850 000$00), ou seja, de 4 000 000$00.
Citados pessoalmente a ré mulher e editalmente o réu marido, ausente em parte incerta, e o Ministério Público, nos termos do artigo
15.º do Código de Processo Civil, não foram apresentadas contestações.
O autor veio requerer a intervenção principal de C..., nos termos do artigo 869.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, por, sem dispor de título executivo, ter requerido a sustação da graduação de créditos na execução movida por C... contra os réus, na qual foi penhorada a fracção negociada.
Admitida a intervenção e apresentada contestação pelo C..., o processo seguiu seus regulares termos, tendo, por sentença de 24 de Outubro de 1994, sido a acção julgada procedente e os réus condenados a pagarem ao autor a quantia de 4 000 000$00 e juros legais vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento, reconhecendo-se ao autor o direito de retenção sobre o imóvel como garantia do seu crédito.
Contra esta sentença interpôs C... recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, sustentando, em suma, que em 11 de Janeiro de 1990 ainda não existia incumprimento definitivo por parte dos promitentes-vendedores, pelo que não podia o autor intentar a presente acção nem ser-lhe reconhecido direito de retenção.
Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10 de Julho de 1997, foi a apelação julgada improcedente. Para tanto, entendeu-se que a mora dos promitentes-vendedores, acompanhada de justificada e razoável perda de interesse do promitente-comprador, equivale a não cumprimento definitivo
(artigo 808.º do Código Civil), imputável àqueles e gerador do direito deste a resolver o contrato e a reclamar a devida indemnização (artigo 801.º do mesmo Código), para além de que, tendo havido tradição do imóvel, como garantia do pagamento do crédito do autor, assiste a este direito de retenção (artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do citado Código).
Contra este acórdão interpôs o C... recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, insistindo na inexistência de incumprimento definitivo gerador dos direitos de resolução, indemnização e retenção reconhecidos pelas instâncias, e suscitando, pela primeira vez nos autos, a questão da inconstitucionalidade material e orgânica das normas constantes do n.º 3 do artigo 442.º e da alínea f) do n.º 1 do artigo 755.º do Código Civil, na redacção que lhes foi dada pelos Decretos-Leis n.ºs 236/80, de 18 de Julho, e
379/86, de 11 de Novembro, “que vieram conceder o direito de retenção ao promitente-comprador de prédio urbano ou de uma sua fracção autónoma, no caso de ter havido tradição da coisa objecto do contrato promessa (...), porquanto tal direito ofende os direitos e interesses patrimoniais legitimamente constituídos
(no caso presente – o direito de hipoteca), em data anterior ao aparecimento de tal direito” (sublinhado acrescentado). A inconstitucionalidade material radicaria na violação do princípio da segurança do comércio jurídico imobiliário, que poria em causa o princípio constitucional da confiança, ínsito no artigo 2.º da CRP, pois as normas questionadas ofenderiam “direitos patrimoniais do credor, titular de uma hipoteca existente anteriormente ao reconhecimento de tal direito de retenção” (sublinhado acrescentado). A inconstitucionalidade orgânica resultaria de a matéria em causa, regulada por decretos-leis emitidos pelo Governo sem autorização legislativa, respeitar a direitos e garantias patrimoniais, integrada na reserva de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 168.º, n.º 1, alínea b), da CRP, na versão então vigente).
Por acórdão de 16 de Abril de 1998, o Supremo Tribunal de Justiça negou a revista, tendo, a propósito das questões de constitucionalidade suscitadas, expendido o seguinte:
“III – Inconstitucionalidade
A) Inconstitucionalidade orgânica
Há matéria cuja competência para legislar pertence exclusivamente à Assembleia da República, constituindo a chamada reserva exclusiva de competência legislativa – artigo 164.º, este e os mais que se indicarem neste número III sem indicação especial são da Constituição da República Portuguesa; e há outras matérias que a Assembleia da República pode autorizar o Governo a legislar, ou seja, a chamada reserva relativa de competência legislativa – artigo 165.º
Invoca a recorrente como violado o artigo 168.º, n.º 1, alínea b), mas que na data das alegações já era, por força da revisão constitucional
(artigo 198.º da Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro), o artigo
165.º, n.º 1, alínea b), o qual diz assim: «1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização do Governo: b) Direitos, liberdades e garantias».
Mas é evidente que tal alínea não contempla a totalidade dos direitos, liberdades e garantias, mas apenas aqueles que se revestirem de natureza fundamental para a generalidade dos cidadãos.
Se fosse de outro modo, então acabava por ser letra morta o artigo
198.º, que em certos casos atribui competência legislativa ao Governo.
Ora, é claro que a simples criação de um direito de retenção não assume por si só relevo suficiente para que se possa considerar que interfere com algum interesse fundamental enquadrável na alínea b) transcrita.
Por isso, o Governo podia legislar nesse sentido. O que significa que não se considerem organicamente inconstitucionais as normas dos artigos
442.º, n.º 3 (na redacção do Decreto-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho), e 755.º, n.º 1, alínea f) (na sua actual redacção – Decreto-Lei n.º 179/86, de 11 de Novembro).
B) Inconstitucionalidade material
E serão tais normas do Código Civil materialmente inconstitucionais?
Para já, não podemos deixar de expressar a nossa opinião de que se mostra efectivamente injusto que quem é titular activo de uma hipoteca tenha posteriormente de se confrontar com um direito desta origem, com o qual não contava e que lhe diminuiu a sua garantia patrimonial, podendo, inclusivamente, ir até ao ponto de a anular completamente (já será diferente se o direito de retenção resultar de despesas feitas por causa da coisa ou de danos por ela causados – artigos 754.º e 759.º do Código Civil).
Todo o cidadão tem a legítima confiança em que o Estado respeite e garanta os seus direitos fundamentais. Assim, impunha-se que de seguida verificássemos se o invocado prejuízo resultante para a recorrente era qualificável naquele tipo de direitos.
Porém, não é necessário entrar nessa fase.
Efectivamente, e como é obvio, a eventual inconstitucionalidade só ocorreria se a hipoteca em causa fosse anterior à situação de que derivou o direito de retenção. Na verdade, nada obsta que uma qualquer disposição legal se considere inconstitucional quando aplicada a uma determinada situação concreta, mas já o não seja relativamente à generalidade das situações.
A hipoteca adquiriu relevância para com terceiros a partir da data do seu registo; o direito de retenção nasceu quando ocorreu a tradição para o autor da fracção autónoma prometida vender.
Acontece, todavia, que não está devidamente provado nos autos tal registo e a respectiva data.
Era, naturalmente, à recorrente que competia o ónus de fazer essa prova, na medida em que se trata de um facto impeditivo do direito do autor – artigo 342.º, n.º 2, do Código citado.
Mas, estranhamente, a recorrente nada disse sobre o assunto na sua contestação; continuou a olvidá-lo nas alegações para a Relação, onde ainda podia provar o dito registo – artigo 706.º do Código de Processo Civil; para só agora, nas alegações para este Tribunal, se limitar a alegar o facto.
Falhando esta premissa, consequentemente que prejudicada fica logo, e irremediavelmente, a eventual conclusão da pretendida inconstitucionalidade.”
(sublinhados acrescentados).
Notificado deste acórdão, veio o interveniente C... do mesmo interpor recurso para este Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro
(doravante designada por LTC), “com fundamento na inconstitucionalidade material do n.º 3 do artigo 442.º e da alínea f) do n.º 1 do artigo 755.º, ambos do Código Civil, por violadores dos direitos patrimoniais do credor, titular de uma hipoteca existente anteriormente ao reconhecimento de tal direito de retenção, e ainda com o fundamento em igual inconstitucionalidade, agora orgânica, porquanto os diplomas legais que alteraram e introduziram o quanto consta nas retro indicadas disposições do Código Civil, nomeadamente os Decretos-Leis n.ºs 236/80, de 18 de Julho, e 379/86, de 11 de Novembro, onde, pese embora se trate de matéria contida na área dos direitos e garantias patrimoniais, não foram os mesmos precedidos da necessária lei de autorização legislativa, atenta a competência legislativa relativa ao Governo”, e acrescentando que “por seu turno, a alínea f) do n.º 1 do artigo 755.º do Código Civil, na parte em que ele estende o regime de retenção prevalente sobre a hipoteca a todos os contratos-promessa, não pode ser aplicado às hipotecas constituídas antes de 16 de Novembro de 1986, o que é do conhecimento oficioso dos tribunais”, sendo que “o contrário viola o princípio constitucional da confiança, consagrado no artigo 2.º da CRP, inconstitucionalidade esta que igualmente aqui se invoca”.
Neste Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou alegações, nas quais omite qualquer referência à questão da inconstitucionalidade material, cingindo-as à questão da inconstitucionalidade orgânica e formulando, em conformidade, as seguintes conclusões:
“1.ª – As normas constantes do n.º 3 do artigo 442.º do Código Civil e alínea f) do n.º 1 do artigo 755.º do Código Civil, nas alterações que lhes foram dadas pelo Decreto-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho, e Decreto-Lei n.º
379/86, de 11 de Novembro, são de manifesta inconstitucionalidade orgânica, na medida em que a matéria tratada naqueles diplomas legais (Decretos-Leis n.ºs
236/80 e 379/86) encontra-se contida na área dos direitos e garantias patrimoniais;
2.ª – Isto porque, diz o n.º 1, alínea b), do artigo 165.º da CRP que é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre tal matéria, salvo autorização legislativa concedida ao Governo;
3.ª – Não foi concedida ao Governo qualquer autorização legislativa nesse sentido;
4.ª – Encontra-se, assim, violada a norma constante do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP;
5.ª – Sendo inconstitucionais as referidas normas, bem como os próprios diplomas donde emanam, não podem as mesmas ser invocadas e aplicadas em qualquer procedimento judicial (artigo 277.º, n.º 1, da CRP).”
O recorrido J... contra-alegou (pg. 216 e 217), levantando as questões da tardia suscitação da questão de inconstitucionalidade
(apenas perante o Supremo Tribunal de Justiça) e da inutilidade do recurso (por o C... já ter recebido do devedor todo o crédito mutuado) e sustentando, se essas questões não procederem, a falta de fundamentação do recurso.
Posteriormente o C... juntou cópia de parecer da autoria de José Joaquim Gomes Canotilho e Joaquim José de Sousa Ribeiro, cujo original foi entregue no processo n.º 475/00 da 1.ª Secção deste Tribunal, e que termina com a formulação das seguintes conclusões:
“1. O direito de retenção do beneficiário da promessa de transmissão ou constituição do direito real, tal como se encontra consagrado no artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil, transporta um regime jurídico-legal perturbador de princípios básicos do Estado de direito, designadamente os princípios da confiança e segurança jurídicos plasmados no artigo 2.º da CRP.
2. A interpretação normativa dada ao artigo 410.º, n.º 3, do Código Civil pelo Assento n.° 15/94, de 28 de Junho, além de não ter arrimo teleológico e textual, acaba na neutralização dos direitos de terceiros jurídica e directamente interessados, violando o direito de acesso ao direito e aos tribunais consagrado no artigo 20.° da Constituição.
3. O conceito constitucional de propriedade abrange direitos obrigacionais de crédito.
4. O direito fundamental da propriedade garantido pelo artigo 62.º, n.º 1, da Constituição da República beneficia do regime específico de direitos, liberdades e garantias por se tratar reconhecidamente de um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias.
5. Uma significativa parte da doutrina e jurisprudência considera que o regime específico dos direitos, liberdades e garantias vale em toda a sua extensão, incluindo o regime respeitante às dimensões orgânicas e formais.
6. Consequentemente, tem razão de ser a dúvida do nosso consulente, ao questionar-se se os Decretos-Leis n.°s 236/80, de 18 de Julho, e 379/86, de 11 de Novembro, não serão organicamente inconstitucionais por violação do disposto no n.° l, alínea b), do artigo 165.° da CRP.”
Ainda posteriormente, o recorrido veio juntar certidão emitida pela 4.ª Vara Cível de Lisboa, que demonstraria que o C... já recebera todo o crédito hipotecário que havia concedido aos réus, tendo todo o produto da venda (162 951 000$00) revertido para o C..., com excepção das custas e dos valores correspondentes a direitos de retenção de três promitentes-compradores, entre eles o autor, ora recorrido, o que implicaria a inutilidade superveniente da lide. Em resposta, o recorrente C... veio propugnar o desentranhamento dos documentos apresentados e sustentar que, em todo o caso, ainda se não encontra integralmente pago do seu crédito. Por despacho do relator, de 16 de Maio de
2003, foi indeferido o pedido de desentranhamento dos documentos, mas entendido que dos mesmos não resultava, com a necessária segurança, a integral satisfação do interesse do recorrente, sendo certo que se mantinha ressalvado o direito de retenção do recorrido, cuja constitucionalidade vem questionada. Contra esta
última decisão reclamou o recorrido, mas entende o Tribunal que, não lhe competindo apreciar a questão da inutilidade superveniente da acção principal, questão que é controvertida entre as partes, e encontrando-se o presente recurso em condições de ser julgado, se justifica que se passe de imediato ao seu conhecimento.
Assim, tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Como resulta do precedente relatório, o recorrente abandonou nas suas alegações do presente recurso para o Tribunal Constitucional a questão da inconstitucionalidade material, referida nas alegações do recurso de revista e ainda no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, ao que não terá sido estranha a constatação de que tal questão tinha por pressuposto a anterioridade da hipoteca relativamente ao direito de retenção e de que essa anterioridade não fora reconhecida pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.
Resta assim a questão da inconstitucionalidade orgânica dos Decretos-Leis n.ºs 236/80, de 18 de Julho, e 379/86, de 11 de Novembro, na parte em que alteraram as redacções dos artigos 442.º e 755.º do Código Civil. Para compreensão do alcance destas alterações legislativas, convirá recordar os motivos apontados pelos autores das mesmas e os termos em que se processaram.
2.2. O artigo 442.º – integrado na Subsecção VIII
(Antecipação do cumprimento. Sinal) da Secção I (Contratos) do Capítulo II
(Fontes das obrigações) do Título I (Das obrigações em geral) do Livro II
(Direito das obrigações) do Código Civil – dispunha, na sua redacção originária:
Artigo 442.º (Sinal)
1. Quando haja sinal, a coisa entregue deve ser imputada na prestação devida, ou restituída quando a imputação não for possível.
2. Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente o direito de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele o direito de exigir o dobro do que houver prestado.
3. Salvo estipulação em contrário, a existência de sinal impede os contraentes de exigirem qualquer outra indemnização pelo não comprimento, além da fixada no numero anterior.
Por seu turno, o artigo 755.º – integrado na Secção VII
(Direito de retenção) do Capítulo VI (Garantias especiais das obrigações) do mesmo Título I do Livro II do Código Civil – dispunha:
Artigo 755.º (Casos especiais)
1. Gozam ainda do direito de retenção:
a) O transportador, sobre as coisas transportadas, pelo crédito resultante do transporte;
b) O albergueiro, sobre as coisas que as pessoas albergadas hajam trazido para a pousada ou acessórios dela, pelo crédito da hospedagem;
c) O mandatário, sobre as coisas que lhe tiverem sido entregues para execução do mandato, pelo crédito resultante da sua actividade;
d) O gestor de negócios, sobre as coisas que tenha em seu poder para execução da gestão, pelo crédito proveniente desta;
e) O depositário e o comodatário, sobre as coisas que lhes tiverem sido entregues em consequência dos respectivos contratos, pelos créditos deles resultantes.
2. Quando haja transportes sucessivos, mas todos os transportadores se tenham obrigado em comum, entende-se que o último detém as coisas em nome próprio e em nome dos outros.
Lê-se no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 236/80, de 16 de Julho:
“1. O contrato-promessa tem sido a via através da qual os interessados em habitação própria têm procurado garantir a aquisição da desejada unidade habitacional, nos casos em que, por qualquer motivo – designadamente o inacabamento da respectiva construção ou a inexistência imediata dos requisitos indispensáveis ao registo do direito de propriedade do transmitente –, não é possível a imediata celebração do contrato de compra e venda.
Sucede, porém, que, por efeito do regime legal do contrato-promessa
– adequado a épocas de estabilidade social e económica, mas que não responde na justa medida a situações de rápida mutação da conjuntura económica e financeira em que avulta, como factor preponderante, a desvalorização da moeda –, inúmeros promitentes-compradores encontram-se em situação que justifica diversa tutela normativa. Com efeito, ou vêem frustradas as suas aspirações face à resolução do contrato pelo outro outorgante, com uma indemnização (o dobro do sinal passado) que nem sequer equivale já à importância inicialmente desembolsada, não cobrindo o dano emergente da resolução, ou acham-se coagidos, pela força das circunstâncias e para alcançarem o direito de propriedade da casa, que, muitas vezes, já habitam e pagaram integralmente, a satisfazer exigências inesperadas que incomportavelmente agravam o preço inicialmente fixado.
Importa, assim, reajustar o regime legal do contrato-promessa, por forma a adequá-lo às realidades actuais, estabelecendo verdadeiro equilíbrio entre os outorgantes (o que passa pela mais eficiente tutela do promitente-comprador) e desmotivando a sua resolução com intuitos meramente especulativos. Prevê-se, para tal, a actualização da indemnização em certos casos e a criação de condições adequadas ao exacto cumprimento da promessa em qualquer caso, mesmo pelo recurso à sua execução específica, embora sem prejuízo da adequada modificação do negócio, por alteração anormal das circunstâncias, nos termos que a lei já prevê.
2. Nesta conformidade, e como primeira medida destinada não só a dar mais solenidade ao contrato mas também a impedir que, sem conhecimento do promitente-comprador, possam ser objecto de promessa de venda prédios de construção clandestina, exige-se o reconhecimento presencial das assinaturas dos promitentes no respectivo documento e que neste o notário certifique a existência da licença de construção do prédio, sem que, todavia, o promitente-vendedor possa tirar qualquer efeito da omissão desses requisitos, na hipótese de o promitente-comprador para ela não ter contribuído. Relativamente à resolução do contrato, mantém-se, em princípio, a regra actual – havendo sinal passado – da perda deste ou da sua restituição em dobro, conforme o outorgante causador da resolução. Estabelece-se, porém, que, no caso de ter havido tradição da coisa para o promitente-comprador, em que se criou forte expectativa de estabilização do negócio e uma situação de facto socialmente atendível, a indemnização devida por causa da resolução do contrato pelo promitente-vendedor seja o valor que a coisa tiver ao tempo do incumprimento – medida do dano efectivamente sofrido –, conferindo-se ao promitente-comprador o direito de retenção da mesma coisa por tal crédito. E, por outro lado, atribui-se ao mesmo promitente, em alternativa e em qualquer dos casos, o direito de requerer a execução específica do contrato.
(...).”
Em conformidade com estes objectivos, foi dada ao referido artigo 442.º a seguinte redacção:
“1 – Quando haja sinal, a coisa entregue deve ser imputada na prestação devida, ou restituída quando a imputação não for possível.
2 – Se quem constituiu o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente o direito de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele o direito de exigir o dobro do que houver prestado ou, tendo havido tradição da coisa, o valor que esta tiver ao tempo do incumprimento ou, em alternativa, o de requerer a execução específica do contrato, nos termos do artigo 830.°.
3 – No caso de ter havido tradição da coisa objecto do contrato-promessa, o promitente-comprador goza, nos termos gerais, do direito de retenção sobre ela, pelo crédito resultante do incumprimento pelo promitente-vendedor.
4 – Salvo estipulação em contrário, não há lugar, pelo não cumprimento do contrato, a qualquer outra indemnização nos casos de perda do sinal ou de pagamento do dobro deste ou do valor da coisa ao tempo do incumprimento.”
Por seu turno, lê-se no preâmbulo do Decreto-Lei n.º
379/86, de 11 de Novembro:
“1. O Código Civil em vigor teve uma elaboração competente e cuidadosa. Trata-se de um diploma básico onde os vários institutos e princípios formam um conjunto harmonioso. Daí que as alterações naturais que o tempo imponha não devam perder de vista essa coerência interna, sob risco de se criarem graves dúvidas e perplexidades ao intérprete, comprometendo a correcta e expedita administração da justiça.
Decorre claramente do Decreto-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho, que o seu objectivo precípuo foi acautelar a posição do promitente-comprador de edifícios, ou de fracções autónomas destes, sobretudo quando destinados a fins habitacionais. Manifestas anomalias da prática justificaram a disciplina então consagrada.
A urgência da intervenção legislativa não permitiu, todavia, uma reflexão acabada sobre o problema. Reconhece-se que resultou pouco feliz a redacção de alguns dos seus preceitos, designadamente enquanto se integraram no regime geral do contrato-promessa sem uma delimitação precisa do âmbito de aplicação.
Mostrando-se necessário rever o disposto pelo referido diploma, aproveita-se a oportunidade para eliminar certas dúvidas que o primitivo texto do Código Civil já suscitava. Acolhem-se reflexões pertinentes da doutrina e da jurisprudência.
2. (...)
3. Maiores aperfeiçoamentos reclamavam as soluções introduzidas pela reforma de 1980 no regime geral do contrato-promessa, consoante a doutrina e a jurisprudência, aliás, bem denotaram. Desde logo, importava superar a falta de precisão da referência ao valor da coisa, objecto do contrato prometido, à data do incumprimento, que a parte não faltosa pode preferir, como indemnização, em vez do sinal dobrado, se houve tradição daquela (artigo 442.°, n.° 2, in fine).
Afastam-se as dúvidas que se levantavam sobre se, existindo sinal passado, a execução específica só seria possível quando ocorresse a aludida tradição antecipada da coisa (artigo 442.º, n.° 3, primeira parte). Não deve, por outro lado, considerar-se supérflua a remissão para o artigo 830.°, a propósito da execução específica, pois esta nem sempre é admitida. Acrescenta-se a faculdade de o contraente faltoso obstar à opção da contraparte pelo aumento do valor da coisa a que respeita o contrato definitivo, ou do direito a transmitir ou constituir sobre ela, oferecendo-se para cumprir a promessa, mas com a ressalva do princípio consagrado no artigo 808.° do Código Civil, relativo
à mora debitória (artigo 442.°, n.º 3, segunda parte). Só em face da opção por esse termo da alternativa faz sentido uma tal possibilidade do promitente faltoso.
4. O legislador de 1980, para o caso de tradição antecipada da coisa objecto do contrato definitivo, concedeu ao beneficiário da promessa o direito de retenção sobre a mesma, pelo crédito resultante do não cumprimento (artigo
442.°, n.° 3). Pensou-se directamente no contrato-promessa de compra e venda de edifícios ou de fracções autónomas deles. Nenhum motivo justifica, todavia, que o instituto se confine a tão estreitos limites.
A existência do direito de retenção nesse quadro não repugna à sua
índole. Repare-se que, em diversas previsões do artigo 755.°, n.° 1, do Código Civil, desaparece ou dilui-se a conexão objectiva que o precedente artigo 754.° pressupõe, em termos gerais, entre a coisa e o crédito. Mas será uma garantia oportuna no contrato-promessa e, por isso, de conservar? A análise da questão conduziu a uma resposta afirmativa.
Tem de reconhecer-se que, na maioria dos casos, a entrega da coisa ao adquirente apenas se verifica com o contrato definitivo. E, quando se produza antes, não há dúvida de que se cria legitimamente, ao beneficiário da promessa, uma confiança mais forte na estabilidade ou concretização do negócio. A boa fé sugere, portanto, que lhe corresponda um acréscimo de segurança.
O problema só levanta particulares motivos de reflexão precisamente em face da realidade que levou a conceder essa garantia: a da promessa de venda de edifícios ou de fracções autónomas destes, sobretudo destinados a habitação, por empresas construtoras, que, via de regra, recorrem a empréstimos, maxime tomados de instituições de crédito. Ora, o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que anteriormente registada (artigo 759.°, n.° 2, do Código Civil). Logo, não faltarão situações em que a preferência dos beneficiários de promessas de venda prejudique o reembolso de tais empréstimos.
Neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor. Não que se desconheçam ou esqueçam a protecção devida aos legítimos direitos das instituições de crédito e o estímulo que merecem como elementos de enorme importância na dinamização da actividade económico-financeira. Porém, no caso, estas instituições, como profissionais, podem precaver-se, por exemplo, através de critérios ponderados de selectividade do crédito, mais facilmente do que o comum dos particulares a respeito das deficiências e da solvência das empresas construtoras.
Persiste, em suma, o direito de retenção que funciona desde 1980. No entanto, corrigem-se inadvertências terminológicas e desloca-se essa norma para lugar mais adequado, incluindo-a entre os restantes casos de direito de retenção
(artigo 755.°, n.° 1, alínea f)).
(...)”
O diploma em causa deu aos artigos 442.º e 755.º do Código Civil a seguinte redacção:
“Artigo 442.° (Sinal)
1 – Quando haja sinal, a coisa entregue deve ser imputada na prestação devida, ou restituída quando a imputação não for possível.
2 – Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou, ou, se houve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o seu valor, ou o do direito a transmitir ou a constituir sobre ela, determinado objectivamente, à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado, devendo ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tenha pago.
3 – Em qualquer dos casos previstos no número anterior, o contraente não faltoso pode, em alternativa, requerer a execução específica do contrato, nos termos do artigo 830.°; se o contraente não faltoso optar pelo aumento do valor da coisa ou do direito, como se estabelece no número anterior, pode a outra parte opor-se ao exercício dessa faculdade, oferecendo-se para cumprir a promessa, salvo o disposto no artigo 808.°
4 – Na ausência de estipulação em contrário, não há lugar, pelo não cumprimento do contrato, a qualquer outra indemnização, nos casos de perda do sinal ou de pagamento do dobro deste, ou do aumento do valor da coisa ou do direito à data do não cumprimento.
Artigo 755.° (Casos especiais)
1 – Gozam ainda do direito de retenção:
a) (...);
b) (...);
c) (...);
d) (...);
e) (...);
f) O beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º
2. (...).”
2.3. A apreciação da inconstitucionalidade orgânica suscitada passa pela ponderação das três seguintes questões: (i) se o direito de crédito em causa pode considerar-se englobado na protecção constitucional do direito de propriedade privada; (ii) se ao direito de propriedade, como direito fundamental análogo aos direitos, liberdades e garantias, é aplicável o regime orgânico, ou apenas o regime material, próprio destes; e (iii) na primeira hipótese, qual o âmbito e extensão da pertinente reserva de competência legislativa da Assembleia da República.
2.3.1. Assinalam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira
(Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, pág. 331) que “o espaço semântico-constitucional do direito de propriedade não se limita ao universo das coisas”, não coincidindo “com o conceito civilístico tradicional, abrangendo, não apenas a propriedade de coisas
(mobiliárias e imobiliárias) mas também a propriedade científica, literária ou artística (artigo 42.º, n.º 2) e outros direitos de valor patrimonial (direitos de autor, direitos de crédito, direitos sociais), etc.”.
Também este Tribunal Constitucional tem, por diversas vezes, adoptado uma concepção ampla do direito de propriedade privada referido no artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), designadamente a propósito dos juízos de inconstitucionalidade da norma do artigo 300.º, n.º 1, do Código de Processo Tributário, na parte em que estabelecia o regime de impenhorabilidade total dos bens anteriormente penhorados pelas repartições de finanças em execuções fiscais, e que culminaram com a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade dessa norma, constante do Acórdão n.º 451/95 (Diário da República, I Série-A, n.º 178, de 3 de Agosto de 1995, pág. 4928; Boletim do Ministério da Justiça, Suplemento ao n.º 451, pág. 303; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31.º vol., pág. 129), no qual se reconheceu que da garantia constitucional do direito de propriedade há-de, seguramente, extrair-se a garantia do direito do credor à satisfação do seu crédito e este direito há-de, naturalmente, conglobar a possibilidade da sua realização coactiva, à custa do património do devedor.
Responde-se, assim, afirmativamente, sem necessidade de maiores considerações, à primeira questão colocada.
2.3.2. Apurado que os direitos de crédito, em certas situações, podem considerar-se englobados na protecção constitucional do direito de propriedade privada, o qual, na dimensão em que é de considerar como direito fundamental análogo aos direitos, liberdades e garantias, beneficia do regime próprio desta última categoria de direitos, coloca-se em seguida a questão de saber se deste regime é aplicável apenas o “regime material” ou também o “regime orgânico”.
É conhecida a posição restritiva defendida, a este propósito, por Jorge Miranda, que, no entanto, conheceu uma evolução entre a 1.ª edição do volume (ou tomo) IV do seu Manual de Direito Constitucional (Coimbra Editora, Coimbra, 1988, págs. 144 e 145), na qual sustentava que só o regime material dos direitos, liberdades e garantias é que, por força do artigo 17.º da CRP, se aplicava a todos os direitos enunciados no Título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga, e as 2.ª e 3.ª edições do mesmo volume ou tomo
(Coimbra Editora, Coimbra, 1993 e 2000, págs. 143-145 e 153-155), em que passou a distinguir entre os direitos de natureza análoga constantes do Título I da Parte I (direitos de acesso a tribunal, de resistência, a indemnização do Estado e de queixa ao Provedor de Justiça) e os demais direitos: quanto aos primeiros, porque incindíveis de princípios gerais com imediata projecção nos direitos, liberdades e garantias, aplicar-se-iam todas as regras constitucionais pertinentes; quanto aos segundos, continuou a sustentar que o artigo 17.º não se reporta senão ao regime material. E isto por duas ordens de razões: por um lado, atenta a inserção sistemática desse artigo 17.º numa parte do direito constitucional substantivo, precedendo imediatamente regras dessa índole, não se vê como pudesse cobrir também regras orgânicas e de revisão constitucional; depois, se esses direitos estivessem compreendidos na reserva de competência legislativa da alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º (anteriormente 168.º) da CRP, não se compreenderia que no mesmo preceito se previssem especificamente certas reservas que já caberiam naquela “cláusula geral”.
Não tem sido essa a orientação seguida por este Tribunal Constitucional, designadamente nos Acórdãos n.ºs 78/86 (Diário da República, II Série, n.º 134, de 14 de Junho de 1986, pág. 5423; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7.º vol., tomo II, pág. 687) e 373/91 (Diário da República, I Série-A, n.º 255, de 6 de Novembro de 1991, pág. 5657; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 410, pág. 165; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 20.º vol., pág. 111), nem a sustentada por José Carlos Vieira de Andrade, que entende não haver razões “para concluir que o artigo 17.º não se refere, em princípio, à globalidade do regime, e, pelo contrário, (...) a analogia substancial com os direitos, liberdades e garantias justifica que também os direitos abrangidos gozem dos diversos aspectos desse regime, incluindo as garantias da irrevisibilidade e da protecção resultante da reserva de lei formal”, mas acrescentando que “a reserva orgânica do Parlamento não é, em si, uma exigência decorrente da determinabilidade dos direitos, mas sim da sua maior proximidade valorativa ao núcleo essencial da dignidade da pessoa humana” (Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2.ª edição, Almedina, Coimbra,
2001, págs. 194 e 195).
2.3.3. Aceitando que, em princípio, ao direito de propriedade consagrado no artigo 62.º da CRP, com a amplitude assinalada, é extensiva, como direito fundamental análogo aos direitos, liberdades e garantias, a reserva de competência legislativa da Assembleia da República, resta apurar qual a amplitude desta reserva e, concretamente, se nela se deve incluir a alteração legislativa consistente no reforço da posição do promitente-comprador para o qual ocorrera a tradição da coisa prometida, através da concessão de nova garantia – o direito de retenção dessa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte –, com possível enfraquecimento da posição de terceiro, no caso, a entidade financeira que concedera empréstimo ao promitente-vendedor.
Ora, quer a doutrina, quer a jurisprudência constitucional, que consideram extensível o regime orgânico dos direitos, liberdades e garantias aos direitos fundamentais análogos têm tido o cuidado de salientar que essa extensão só se justifica quando estejam em causa
“intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos «direitos análogos», por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a actividade legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias” (formulação do citado Acórdão n.º 373/91).
Especificamente sobre o direito de propriedade, afirmou-se no Acórdão n.º 517/99 (Diário da República, II Série, n.º 263, de 11 de Novembro de 1999, pág. 17 054; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 44.º vol., pág. 89) que “apesar de o direito de propriedade ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, nem toda a legislação que lhe diga respeito se inscreve na reserva parlamentar atinente a esses direitos, liberdades e garantias”, apenas fazendo parte dessa reserva “as normas relativas
à dimensão do direito de propriedade que tiver essa natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias”, pelo que então se concluiu que já não se incluíam “nessa dimensão essencial os direitos de urbanizar, lotear e edificar, pois, ainda quando estes direitos assumam a natureza de faculdades inerentes ao direito de propriedade do solo, não se trata de faculdades que façam sempre parte da essência do direito de propriedade, tal como ele é garantido pela Constituição: é que essas faculdades, salvo, porventura, quando esteja em causa a salvaguarda do direito a habitação própria, já não são essenciais à realização do Homem como pessoa”. [Sobre a necessidade (e as dificuldades) de distinção, no direito de propriedade, da parcela que merece a equiparação a “direito, liberdade e garantia” da parcela que consagra um mero “direito económico”, cfr. Maria Lúcia da Conceição Abrantes Amaral Pinto Correia, Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, págs. 540 a 561].
Recordada esta orientação, impõe-se a conclusão de que as intervenções legislativas questionadas nestes autos, limitadas à introdução de uma nova garantia do promitente-comprador beneficiário da tradição do prédio ou fracção, embora com eventual reflexo na posição de outros credores do promitente-vendedor, não podem ser consideradas como atingindo o núcleo essencial do direito de propriedade privada, na dimensão que o torna análogo aos direitos, liberdades e garantias, em termos tais que justifique a extensão do regime orgânico típico destes. O direito de propriedade, no sentido amplo que abarca os direitos de crédito, está aqui em causa numa dimensão que não é indispensável à sua concepção como garantia de “espaço de autonomia pessoal”
(Maria Lúcia Amaral, obra citada, pág. 542) ou “essencial à realização do Homem como pessoa” (Acórdão n.º 517/99), e a reserva orgânica do Parlamento quanto aos direitos fundamentais análogos é uma exigência decorrente “da sua maior proximidade valorativa ao núcleo essencial da dignidade da pessoa humana”
(Vieira de Andrade, obra citada, pág. 194, nota 60) e da garantia da sua autonomia pessoal.
Conclui-se, assim, pela improcedência da tese do recorrente.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar organicamente inconstitucionais os Decretos-Leis n.ºs 236/80, de 18 de Julho, e 379/86, de 11 de Novembro, na parte em que alteraram a redacção dos artigos 442.º e 755.º do Código Civil, atribuindo ao promitente-comprador, no caso de ter havido tradição da coisa objecto do contrato, direito de retenção sobre ela, pelo crédito resultante do incumprimento do promitente-vendedor; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 15 de Julho de 2003.
Mário José de Araújo Torres (Relator)
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma
Benjamim Silva Rodrigues (Com a declaração de voto anexa)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Procedeu o Acórdão à transcrição das sucessivas redacções que tiveram os artigos 442.º e 755.º do Código Civil, bem como a uma longa reprodução dos preâmbulos dos Decretos-Leis n.ºs 236/80, de 16 de Julho, e
379/86, de 11 de Novembro, que introduziram as versões aplicadas.
Ora, não se tendo retirado de tais elementos históricos quaisquer contributos jurídicos para aferir se o direito de crédito comungava de qualquer dimensão constitucional dos direitos cuja regulação está abrangida pela analisada regra de reserva legislativa parlamentar, entendemos que, para clareza do acórdão (cf. artigo 137.º do Código de Processo Civil), devia aquela reprodução ter sido omitida e a transcrição dois preceitos limitar-se à versão aplicada.
Benjamim Silva Rodrigues