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Processo n.º 195/02
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por sentença do Tribunal Judicial da Comarca de ------------- foi julgada parcialmente procedente a acção de condenação proposta por A., B. e C. contra a companhia de seguros D.. A ré foi, então, condenada a pagar aos autores a quantia de Esc. 28.210.000$00, acrescida de juros à taxa legal desde a citação, a título de indemnização pelos danos, patrimoniais e não patrimoniais, decorrentes do atropelamento, ocorrido na E. N. n.º ---- e causado pelo veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula
--------------, segurado pela ré, do marido e pai dos autores, o qual veio a falecer em consequência do mesmo. Inconformadas, as partes recorreram para o Tribunal da Relação do Porto, Tribunal que, por acórdão de 3 de Abril de 2000, de fls. 735 e seguintes, atendeu parcialmente o recurso dos autores e negou a apelação interposta pela ré. Entendeu o Tribunal da Relação do Porto, que começou por observar que “Cumpre dizer que apenas se questiona o montante dos danos patrimoniais sofridos pelos autores, mulher e filhos do peão sinistrado, decorrentes da perda de ganho deste”, que, uma vez que o n.º 3 do artigo 495º do Código Civil “confere direito a indemnização às pessoas a quem o lesado directo prestava ou podia ser obrigado a prestar alimentos”, “para que alguém tenha direito a uma indemnização pela morte do cônjuge ou de ascendente não é necessário que já esteja a receber da vítima uma prestação de alimentos, por carência efectiva de alimentos; basta que tenha a qualidade de que depende a possibilidade legal do exercício do direito a alimentos”. Considerou, então, terem tal direito, quer a mulher, quer os filhos do lesado – artigo 2009º, n.º 1, als. a) e b); que o quantitativo da indemnização se aferia pelo prejuízo que “para essas pessoas se mede pela sua [do lesado] falta e, portanto, há-de equivaler ao montante que aquele estaria obrigado a prestar. Daí que o valor da indemnização por danos patrimoniais dos que podiam exigir alimentos ao lesado não possa exceder a medida dos que este, lesado, teria de dar, se vivo fosse (...)”; e que havia ainda a ter em conta “o postulado nos arts. 562º, 564º e 566º do C.C. pois que a indemnização tem por fim reconstituir a situação que existiria se não fosse o facto danoso e atender-se-á no seu cálculo não só aos prejuízos causados como aos benefícios perdidos em consequência da lesão, incluindo os danos futuros previsíveis”. Assim, e uma vez que “para o cálculo dos danos patrimoniais devidos aos autores por força do estipulado no artº 495º, n.º 3 será conveniente, aliás como se fez na sentença recorrida, tomar por referência as tabelas financeiras usadas na determinação do capital necessário à formação de uma renda periódica correspondente à perda de ganho, de tal forma que no final do período a considerar o próprio capital se esgote”, o Tribunal da Relação do Porto condenou a ré a pagar aos autores, “a título de indemnizações por perda de alimentos” (e porque havia sido atribuído ao lesado a percentagem de 30% na culpa pelo acidente) “ao filho 11.316.666$00; à filha 11.316.666$00 e à viúva
16.916.666$00”.
2. De novo inconformadas, as partes interpuseram recurso de revista. Por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Junho de 2001, constante de fls. 832 e seguintes, foi decidido “revogar o acórdão recorrido, na parte em que arbitrou à autora viúva uma indemnização a título de alimentos solicitados com base no disposto no artigo 495º, n.º 3, da Código Civil” e, ainda, “revogar o acórdão recorrido na parte em que arbitrou aos AA. a indemnização por danos patrimoniais futuros resultantes do decesso do peão, a qual se fixa agora em
70.000.000$00, operando-se, porém, se necessário, a respectiva redução de harmonia com o valor da respectiva parcela do pedido”. Para o que agora releva, o Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se nos seguintes termos:
«11. Recurso da Ré D. Insurge-se a Ré seguradora contra o acórdão revidendo em duas vertentes distintas: por um lado, não concorda com o arbitramento de indemnização à viúva da vítima a título de alimentos já que, atenta a respectiva situação económica e sócio-familiar, a mesma não carecia , nem era previsível que viesse a carecer de tal 'amparo'; por outro lado, considera exagerados os montantes indemnizatórios a esse mesmo título atribuídos aos filhos menores do lesado imediato
(11.500.000$00 para cada um deles, depois reduzidos em função do grau de culpa do lesado), o qual deveria cifrar-se em apenas 9.100.000$00 a dividir em partes iguais para cobertura das respectivas necessidades até perfazerem 24 anos de idade. Que dizer ? Vem aqui à colação o estatuído no n° 3 do artº 495° do CCIV , nos termos do qual
'têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado' e no n° 2 do artº 564° do mesmo diploma, segundo o qual 'na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação correspondente será remetida para decisão ulterior' Não vem controvertido o direito dos filhos a beneficiarem 'jure proprio' da indemnização por danos futuros, a título alimentar, e por mor de tais dispositivos legais (apenas se propugna a fixação de um valor inferior), sendo que o que vem totalmente questionado é a atribuição 'in concreto' de tal direito ao cônjuge supérstite, que não também da susceptibilidade abstracta desse mesmo benefício. Ora, não pode o tribunal prescindir do binómio possibilidade/necessidade e do critério da adequação e da proporcionalidade contemplados nos artº s 2003° e
2004º do CCIV, sendo pois de arredar a concessão de indemnização se se provar que o cônjuge sobrevivo, pelo seu desafogo económico, de todo em todo não necessita do dito 'amparo'. O cônjuge da vítima com rendimentos próprios terá pois sempre que alegar e provar que o respectivo quantitativo é insuficiente actualmente e/ou previsivelmente no futuro para prover às suas necessidades, por reporte aos parâmetros referenciais plasmados nos citados normativos. Neste domínio das indemnizações ou pensões alimentares, o julgador terá pois sempre de fazer um juízo de prognose prévia concreta, não só para impor ou não a prestação de alimentos como também para fixar o seu concreto cômputo, não podendo este basear-se em dados meramente conjecturais ou hipotéticos. Pois bem. Trata-se esse reconhecimento a terceiros, nos casos de morte do titular dos rendimentos – lesado directo e imediato – de um direito excepcional de beneficiarem «jure proprio» de indemnização por danos patrimoniais futuros; por isso a lei circunscreve tal benefício às pessoas que face à lei podiam exigir alimentos do lesado ou àqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural – conf. cit n° 3 do artº 495° do CCIV. Essa natureza excepcional foi, de resto, expressamente reconhecida nos recentes arestos deste Supremo Tribunal de 16-3-99, Proc 22/99-2ª Sec, in BMJ n° 485, pág
386, de 11-1-00, Proc 1052/99-6ª sec e de 11-1-00, Proc 1030/99-6ª Sec . E, como norma excepcional, é a mesma, em princípio, insusceptível de aplicação analógica – conf. artº 11° do C. Civil. Não bastará por isso, e de qualquer modo, a simples invocação da 'qualidade' ou
'status' de cônjuge sobrevivo para, de pronto e de modo automático, ser atribuída ao invocante uma indemnização a esse título; e desde logo se aquando da decisão – data mais recente que possa ser atendida pelo tribunal ( artº 566° n° 2 do CCIV)- nada fizer prever a 'necessidade' do vindicante em beneficiar (no futuro) de tal amparo.
(...) Procede, por conseguinte, a pretensão da recorrente no sentido do não arbitramento de qualquer indemnização à autora viúva do lesado directo, a título de pensão alimentar, por manifesta e comprovada desnecessidade da mesma, a qual havia sido fixada em 19.500.000$00x70% = 13.650.000$00. Já quanto à indemnização arbitrada a tal título aos dois filhos menores da vítima, não se descortina qualquer motivo que leve a reputar de desajustado ou desproporcionado o critério de equidade ( artº 566° n° 3 do C. Civil) adoptado pelo tribunal 'a quo', assim devendo permanecer incólumes os respectivos cômputos parcelares e global, nesta parte improcedendo a revista da Ré.
12. Revista dos AA.
(...) Já quanto aos quantitativos indemnizatórios arbitrados pela Relação, afastam-se os mesmos sensivelmente dos parâmetros e métodos de cálculo que vêm sendo geralmente seguidos nos tribunais em geral e particularmente por este Supremo tribunal (...). Tais métodos e critérios apontariam para a fixação de um montante indemnizatório, a título de danos patrimoniais futuros por morte da vítima, que rondaria os 99.000.000$00. Assim, e porque a indemnização a esse título parcelar
(lucros cessantes) deve também ser reduzida em 30% – grau de culpa do lesado – fixa-se a mesma, com recurso à equidade, em 70.000.000$00, verba essa a distribuir pelos AA. não já 'jure proprio' mas 'jure hereditario' e segundo as regras da sucessão legítima, tendo sempre, contudo, em atenção o valor parcelar e global do pedido, sendo pois, se necessário e em conformidade, reduzida
(conf., neste sentido, o Ac desta Secção de 30-11-00, in Proc 3016/00).
13. Decisão: Em face do exposto, decidem:
- conceder parcialmente a revista aos AA.;
- conceder parcialmente a revista à Ré seguradora;
- revogar o acórdão recorrido, na parte em que arbitrou à Autora viúva uma indemnização a título de alimentos solicitados com base no disposto no artº 495° n° 3 do C. Civil;
- revogar o acórdão recorrido na parte em que arbitrou aos AA. a indemnização por danos patrimoniais futuros resultantes do decesso do peão, a qual se fixa agora em 70.000.000$00, operando-se, porém, e se necessário, a respectiva redução de harmonia com o valor da respectiva parcela do pedido.
- confirmar, no mais, o decidido pela Relação.»
3. Notificada deste acórdão, a D., veio requerer a sua aclaração, pretendendo ser esclarecida sobre “qual o fundamento legal para a atribuição, numa espécie de decisão-surpresa, duma quantia como a que, no valor de 70.000 cts., foi agora fixada para os AA. mas com outra (e silente) base que não a consagrada no artigo 495º, n.º 3, do Código Civil, ao invés do que fizeram e propugnaram as instâncias, nessa parte, bem como devem vir a ser esclarecidos quais os concretos ‘quantitativos indemnizatórios arbitrados na relação’ que, no caso (citamos:) ‘afastam-se ... sensivelmente dos parâmetros e métodos de cálculo que vêm sendo geralmente seguidos nos tribunais’, como se diz no aresto aclarando (cf. págs. 28/29 do mesmo) mas não se consegue entender, dada a insuprível contradição que transparece dessa afirmação por contraponto com o facto das instâncias apenas terem concedido o dano patrimonial em causa com base no já citado artigo 495º, n.º 3, i. e. ‘jure proprio’ – e não ‘jure hereditario’, como ora se faz mas omitindo a respectiva fundamentação”. O pedido de esclarecimento foi indeferido por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Outubro de 2001, constante de fls. 878 e seguintes.
A D. veio igualmente arguir a nulidade do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça por, designadamente, a “parte final do aresto ora prolatado não conter nenhum fundamento de direito para a condenação da ré no pagamento da quantia de Esc. 70.000.000$00 aos AA., duplicando os danos (na parte relativa aos filhos menores do lesado) que já estão a ser pagos por via alimentar, como foi decidido de acordo com o disposto ainda no referido artigo 495º, n.º 3, do Código Civil'. Segundo a D. o vício de falta de fundamentação de direito, para além de inquinar a decisão do recurso de revista nos termos do disposto no artigo 668º, alíneas b) e c), do Código de Processo Civil, seria também “susceptível de censura segundo a jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, por violação do disposto nos artigos 2º, 202º e 205º da Constituição da República Portuguesa – inconstitucionalidade material que só agora pode ser arguida, face ao efeito novidade ou à surpresa da decisão”. Por acórdão de 7 de Fevereiro de 2002, constante de fls. 903 e seguintes, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu a arguição de nulidades.
4. Entretanto, a D. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional,
“recurso esse que é interposto ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da LTC, e que tem por objecto a norma constante do artigo 495º, n.º
3, do Código Civil, na interpretação de que basta a mera qualidade referida nessa norma protectora para que lesados terceiros familiares adquiram o direito de indemnização por lucros cessantes derivados da perda dos normais rendimentos que lhes eram proporcionados pelo lesado directo falecido com a eclosão do evento ilícito danosos, com violação do disposto nos princípios que estão consignados nos artigos 2º e 13º da Constituição da República Portuguesa, conforme se alegou na minuta de alegações de revista da ré recorrente (cfr. as suas conclusões 10ª a 14ª, entre o mais), bem como face à violação cometida pelo aresto em crise do disposto nos artigos 202º, n.º 2, e 205º, n.º 1, da Constituição, como se alegou nos requerimentos de aclaração e de arguição de nulidades do acórdão proferido no tribunal a quo, com postergação do princípio da confiança e das legítimas expectativas jurídicas tuteladas, também, pelo artigo 2º da Constituição”.
5. Notificadas para o efeito, as partes apresentaram as respectivas alegações, que a recorrente concluiu da seguinte forma:
“1ª) O Supremo Tribunal de Justiça, no aresto recorrido, interpretou a norma constante do artigo 495º, n.º 3, do Código Civil como conferindo aos terceiros familiares do lesado (e vítima mortal do sinistro que é causa da responsabilidade civil dos autos) o direito a auferir para si, jure hereditario e em medida proporcionalmente equitativa, dos proventos que aquele lesado direito poderia vir a auferir ao longo da sua vida laboral futura, não fora o evento danoso;
2ª) Tal direito, nesse douto aresto, foi tido como sendo parte integrante do ressarcimento do dano patrimonial futuro que os lesados mediatos – i. e. os AA. da acção, viúva e filhos da vítima – teriam sofrido, independentemente das eventuais perdas alimentares sofridas (conferidas por acréscimo, aos descendentes menores, mas excluídas à viúva, por não carecer de tais elementos);
3ª) Essa interpretação do disposto no citado artigo 495º, n.º 3, se fosse válida, torná-lo-ia materialmente inconstitucional, por ofensa directa do disposto nos artigos 2º e 13º da Constituição, bem como dos princípios da confiança e da legítima expectativa jurídicas atinentes ao estado de Direito democrático e, ainda, da estabilidade e certeza jurídicas inerentes ao princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei;
4ª) Rectius, a norma constante do artigo 495º, n.º 3, do Código Civil, se interpretada conforme o foi no aresto recorrido e no sentido acima aludido, é materialmente inconstitucional, pelo que não poderia ser aplicada pelo tribunal recorrido, pelo menos nessa interpretação ilegal e ofensiva dos princípios constitucionais inerentes às duas normas da Constituição acima citadas, as quais foram directamente violadas no aresto recorrido;
5ª) Deve, pois, ser declarada a inconstitucionalidade material da norma constante do n.º 3 do citado artigo 495º do Código Civil, quando interpretada no sentido em que o foi no douto aresto recorrido e se acha referido nas antecedentes conclusões 1ª e 2ª supra, fazendo-se a sindicância que é imposta pelo disposto no artigo 204º da Constituição.”
Quanto aos recorridos, formularam as seguintes conclusões:
“1ª A recorrente só podia recorrer quanto à inconstitucionalidade da norma do artigo
495º, n.º 3, do Código Civil.
2ª Mas afigura-se-nos que ela recorreu da decisão proferida pelo S.T.J.
3ª Daí que, cremos, nem tampouco se possa conhecer do recurso.
4ª E se a recorrente pretendia ver discutida a inconstitucionalidade do disposto no artigo 495º, n.º 3, do Código Civil devia tê-lo feito de forma clara e perceptível, invocando as suas razões, conducentes ao conhecimento dessa inconstitucionalidade.
5ª Em vez disso, ela disse, em síntese: - o meu entendimento sobre o disposto no artigo 495º, n.º 3, do Código Civil é este. Se o vosso for diferente, então estão a aplicar uma norma materialmente inconstitucional.
6ª A recorrente não apresentou uma questão objectiva, clara e perceptível de inconstitucionalidade para o S.T.J. decidir, ou seja, não impugnou a inconstitucionalidade da referida norma.
7ª Subsidiariamente, dir-se-á que o dispositivo do artigo 495º, n.º 3, do Código Civil apenas nos diz quem pode ser titular de um direito de indemnização decorrente da morte ou lesão corporal: - os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.
8ª Esse dispositivo não tem nada, rigorosamente nada, a ver com o quantum indemnizatório.
9ª O quantum indemnizatório e os seus parâmetros são fixados pelos artigos 566º, n.º 2, 562º, 563º e 564º todos do Código Civil.
10ª E não indemnizar qualquer lesado de acordo com o consagrado nos referidos artigos, só porque é rico, estar-se-ia a prejudicar uma classe de cidadãos em razão da sua situação económica.
11ª Aí sim, estar-se-ia a violar o disposto no artigo 13º da Constituição, que a recorrente invoca em sentido contrário.
12ª Um absurdo e uma imoralidade.”
6. A fls. 585 foi lavrado o seguinte parecer:
«1. Nas alegações que apresentaram no Tribunal Constitucional, os recorridos colocaram a questão da impossibilidade de conhecimento do objecto do recurso. Cumpre, assim, notificar a recorrente para se pronunciar sobre os obstáculos ali suscitados, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 704º do Código de Processo Civil.
2. Para além disso, verifica-se que, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a recorrente D. colocou duas questões que pretende ver apreciadas: por um lado, a da conformidade com o artigo 2º e
13º da Constituição da norma constante do artigo 495º, n.º 3, do Código Civil, na interpretação ali descrita; por outro lado, “a questão da violação cometida pelo aresto em crise do disposto nos artigos 202º, n.º 2, e 205º, n.º 1, da Constituição, como se alegou nos requerimentos de aclaração e de arguição de nulidades do acórdão proferido no tribunal a quo, com postergação do princípio da confiança e das legítimas expectativas jurídicas tuteladas, também, pelo artigo 2º da Constituição”. Todavia, nas alegações a recorrente apenas abordou a primeira das mencionadas questões, abandonando a segunda. Assim, e independentemente de saber se a recorrente havia ou não definido uma questão de constitucionalidade normativa, susceptível de ser apreciada no âmbito do recurso que interpôs, admite-se que se deva considerar que a mesma recorrente restringiu o objecto inicial do recurso à questão da inconstitucionalidade que refere ao n.º 3 do artigo 495º do Código Civil, como resulta do disposto no n.º
3 do artigo 684º do Código de Processo Civil, aplicável de acordo com o artigo
69º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
3. Finalmente, admite-se ocorra outro obstáculo ao conhecimento do recurso. Com efeito, não parece que se possa afirmar que o acórdão recorrido tenha aplicado o n.º 3 do artigo 495º do Código Civil com o sentido que a recorrente considerou inconstitucional, dela extraindo a norma que definiu como integrando o objecto do presente recurso; a confirmar-se esta observação, faltaria uma condição para que o Tribunal Constitucional pudesse conhecer do recurso também nesta parte (cfr., por exemplo, os acórdãos nºs 187/95 e 366/96, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 22 de Junho de 1995 e de 10 de Maio de 1996).
4. Nos termos do disposto no n.º 1 do mesmo artigo 704º, convidam-se as partes a pronunciarem-se sobre os pontos 2. e 3. do presente parecer.»
7. Ambas as partes responderam. A recorrente, começando por dizer que “não se ignorou a dificuldade ora apontada
– v.g. ponto 3 do parecer sob reposta”, “nem que o presente recurso roçava matéria e/ou objecto muito próximo(a) da eventual sindicância do chamado caso julgado ilegal – a qual é, aliás, bem o sabemos, impossível no n/ país”. Porém, trata-se de uma dificuldade de mera aparência, pois que é resultante da apontada contradição (evidente na decisão do STJ) de no tribunal a quo se ter feito uso do disposto na norma a sindicar – art. 495º/3 Cciv –, debaixo de duas interpretações da mesma conducentes a efeitos diversos, a saber: i/ primeiro, retirando à viúva do lesado directo qualquer parcela indemnizatória alimentar, fazendo uma interpretação do ali disposto que não sofre mácula, atenta a doutrina conexa; ii/ mas concedendo-lhe depois, em conjunto com os demais beneficiários menores, o que se negara antes e em dose fortemente acrescida, agora sem fundamentação expressa mas que só pode ter por base a interpretação oposta, i. e. a que deixamos caracterizada nas alegações com vista à sindicância requerida. Vale dizer que o fundamento dessa decisão, perscrutada a n/ lei civil implicada no caso, só pode estar no ali disposto, i. e. na norma que integra o objecto do recurso – na interpretação tácita visada pelas n/ alegações.
É que os lesados indirectos com direito a indemnização são apenas aqueles a que se refere a citada norma, os quais não poderão receber mais do que aquilo a que o próprio lesado estaria para com eles obrigado. Ora, a interpretação contrária, concedendo-lhes uma indemnização como se fossem o próprio lesado, é claramente inconstitucional, por implicar violação do disposto no art. 2º CRP:”
No que toca aos recorridos, reiteraram a opinião de que o Tribunal Constitucional não pode conhecer do objecto do recurso.
8. Cumpre começar por definir o objecto do presente recurso. Pelas razões constantes do parecer atrás transcrito, e recorrendo, para o efeito, ao requerimento de interposição de recurso, considera-se o mesmo delimitado à
“norma constante do artigo 495º, n.º 3, do Código Civil, na interpretação de que basta a mera qualidade referida nessa norma protectora para que lesados terceiros familiares adquiram o direito de indemnização por lucros cessantes derivados da perda dos normais rendimentos que lhes eram proporcionados pelo lesado directo falecido com a eclosão do evento ilícito danosos”. E cabe igualmente frisar que só cabe ao Tribunal Constitucional a apreciação de questões de constitucionalidade normativa. Não pode, pois, o Tribunal Constitucional apreciar as inúmeras considerações que a recorrente formula nas alegações de recurso, e que se prendem com a interpretação que deve ou não ser adoptada para o n.º 3 do artigo 495º do Código Civil, do ponto de vista do instituto da responsabilidade civil.
9. Colocada perante a questão de saber se o acórdão recorrido teria ou não aplicado o n.º 3 do citado artigo 495º com o sentido que julga inconstitucional, a recorrente, como se viu, veio acusar o Supremo Tribunal de Justiça de ter aplicado tal preceito de forma contraditória ao julgar, por um lado, a questão do direito a alimentos da viúva do lesado e, por outro, a da “fixação de um montante indemnizatório, a título de danos patrimoniais futuros por morte da vítima” a atribuir, “jure hereditario”, aos autores. A verdade, todavia, é que – admitindo que ambas as indemnizações decididas pelo Supremo Tribunal de Justiça se baseiam no n.º 3 do artigo 495º do Código Civil
–, não é contraditório definir de forma diferente o âmbito dos beneficiários consoante esteja em causa a determinação dos terceiros que, por direito próprio, adquirem o direito a ser indemnizados a título de alimentos e dos terceiros que, a título sucessório, vêm a repartir entre si a indemnização correspondente aos danos patrimoniais futuros calculados em função da morte da vítima. Assim sendo, e admitindo que é a interpretação subjacente a esta última definição que a recorrente questiona, passa-se à apreciação do n.º 3 do artigo
495º do Código Civil quando interpretado no sentido de que basta a qualidade nele prevista para poder adquirir, a título sucessório, o direito à indemnização agora em causa.
10. Ora a verdade é que é manifestamente infundada a inconstitucionalidade apontada pela recorrente, que sustenta que a norma assim interpretada viola os artigos “2º e 13º da CRP, bem como (...)os princípios da confiança e da legítima expectativa jurídicas ali tuteladas”. Não resulta das alegações apresentadas neste Tribunal qualquer justificação para tal afirmação. Com efeito, e deixando de lado tudo o que ali se refere ao
“dano da perda ou privação de alimentos” (extraído das alegações de revista, como diz, aliás, a recorrente, e que, tendo em conta o que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça decidiu nesse âmbito, não vem ao caso no recurso de constitucionalidade), a recorrente limita-se a afirmar tal violação, que não sente necessidade de demonstrar. Note-se, aliás, que as referidas alegações, em rigor, discutem a interpretação feita pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão recorrido do ponto de vista da sua correcção, e não na perspectiva da sua constitucionalidade. Não vislumbrando o Tribunal Constitucional qualquer justificação para a alegada violação dos referidos princípios constitucionais, resta negar provimento ao recurso, na parte em que se conheceu do respectivo objecto.
11. Assim, decide-se negar provimento ao recurso. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs.
Lisboa, 24 de Setembro de 2003
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Gil Galvão Luís Nunes de Almeida