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Processo n.º 525/02
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. A., melhor identificado nos autos, veio interpor no 1º Juízo de Pequena Instância Criminal de Lisboa recurso de decisão da Direcção-Geral de Viação que lhe aplicou uma coima de Esc. 30.000$00 e uma sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 dias, por infracção ao disposto no artigo 27º, n.º 1 do Código da Estrada (excesso de velocidade), punível nos termos do n.º 3, alínea a), do artigo 27º e ainda por força do artigo 139º e da alínea b) do artigo 146º, todos do citado diploma legal.
Por despacho de 4 de Janeiro de 2002, o recurso de impugnação judicial foi admitido e a audiência de julgamento foi dispensada nos termos do artigo 64º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, com a consequente notificação do arguido e do Ministério Público para no prazo de dez dias se oporem.
Não tendo ocorrido tal incidente de oposição, em 25 de Fevereiro de 2002 o Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa decidiu suspender a execução da sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de um ano, mediante a prestação de uma caução de 250 €, mantendo contudo a coima de Esc. 30.000$00
(150 €) aplicada pela Direcção-Geral de Viação.
2. Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, concluindo a sua motivação de recurso com as seguintes considerações:
“1ª) Contrariamente ao que foi decidido no despacho recorrido, a decisão da autoridade administrativa não contém qualquer referência a um dos requisitos legais – situação económica do infractor – que devem determinar a medida da sanção;
2ª) Sendo assim, não especificando os fundamentos que presidiram à escolha e medida da sanção aplicada, é nula a decisão por falta de fundamentação;
3ª) De qualquer modo, o art. 151º n.º 4 do C.E. está ferido de inconstitucionalidade;
4ª) E contrariamente ao que foi decidido no douto despacho ora recorrido, qualquer tribunal pode declarar essa inconstitucionalidade e em consequência deixar de aplicar, em concreto, tal norma;
5ª) Assim, deve ser declarada a inconstitucionalidade da norma do art.º 151º n.º
4 do C.E. e decidir-se que o auto de notícia dos autos não faz fé em processo de contra-ordenação;
6ª) Independentemente disso, o certo é [que] foram incorrectamente dados como por provados os factos constantes do douto despacho recorrido;
7ª) Efectivamente, tendo a Mermª Juiz decidido a causa por simples despacho, apenas lhe era permitido conhecer de questões de direito;
8ª) Na verdade, tendo o arguido impugnado expressamente no seu recurso de impugnação os factos que lhe são imputados pela autoridade administrativa (vide art.ºs 34 a 36 e conclusão 8ª do recurso de impugnação) e oferecido prova quanto a esses factos, só a prova produzida em audiência de julgamento poderia motivar a matéria de facto que sustenta a condenação do arguido;
9ª) Sob pena de o arguido ser condenado, como foi, sem ter tido a possibilidade de se defender oferecendo os meios de prova quanto aos factos que lhe foram imputados pela autoridade administrativa, o que constitui uma clara violação das garantias de defesa do arguido e do princípio do contraditório (art.º 32º n.ºs 1 e 2 da CRP);
10ª) Tanto mais que, e sem prejuízo do que atrás se deixou dito quanto à inconstitucionalidade, nunca o auto de notícia em causa faria fé nos presentes autos de contra-ordenação;
11ª) Desde logo, não reúne os requisitos legais exigidos pelo art.º 151º do C.E. para que possa ter o valor probatório referido no n.º 3 da citada disposição legal.
12ª) Efectivamente, não constando do mesmo que o agente da autoridade presenciou a infracção, o auto de notícia também não faz fé nos presentes autos de contra-ordenação;
13ª) Acresce que o Arguido tem fundadas razões para pôr em causa o registo do aparelho, atendendo, além do mais, a que não foi aprovado nem certificado pela entidade com competência para tanto;
14ª) Por tudo quanto vem de ser dito, as dúvidas existentes nos autos têm de presumir-se necessariamente em benefício do Arguido, não podendo deixar de ser absolvido;
15ª) Decidindo, como decidiu, a decisão recorrida violou designadamente as normas do art.º 375º n.º 1 do CPP art.º 32 n.ºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa; art.ºs 140º, 142º n.º1 e 151º do C.E.”
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 23 de Maio de 2002, negou provimento ao recurso, confirmando integralmente a decisão recorrida. Na fundamentação deste acórdão pode ler-se:
“(...) Quanto à alegação de que o art. 151º, n.º 4 do actual CE está ferido de inconstitucionalidade, uma vez que o facto verificado no aparelho de radar – a velocidade instantânea – não é susceptível de ser repetido para efeitos de contraprova e que o regime de utilização do aparelho não permite que os cidadãos, em geral, e os arguidos, em particular, possam fazer comprovar a fiabilidade e estado operacional do aparelho que faz a leitura da velocidade que lhe é imputada, ficando assim afectado um dos requisitos essenciais das garantais de defesa – a possibilidade efectiva de contraditar eficazmente os elementos trazidos pela acusação – e ainda, que o auto de notícia não faz fé em processo de contra-ordenação, dir-se-á que o art. 169º do Cód. Proc. Penal estabelece que se consideram provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postos em causa. E, como se refere no Acórdão da Comissão Constitucional n.º 168, de 12 de Outubro de 1979 (no apêndice ao Diário da República, de 3 de Julho de 1980), ‘a fé em juízo dos autos de notícia não acarreta ou envolve qualquer presunção de culpabilidade em processo penal’. Do que se trata na fé em juízo atribuída aos autos de notícia ‘é só de um especial valor probatório – aliás de modo algum definitivo, antes só prima facie ou de interim – atribuído a certas comprovações materiais feitas presencialmente por certa autoridade pública. As garantias de defesa do arguido não são, pois, minimamente postas em causa, já que na audiência de julgamento ele pode fazer-se representar por advogado e produzir provas em ordem a infirmar o que consta do auto de notícia, estando, assim, a mesma subordinada ao princípio do contraditório. O arguido só o não fez, porque não quis. Por outro lado, a utilização de aparelho ou instrumento na fiscalização do trânsito, nomeadamente de radares, depende de prévia aprovação da Direcção-Geral de Viação, tratando-se de aparelhos ou instrumentos técnicos especializados, merecem especial credibilidade como é o caso dos radares; em caso de dúvida, poderá ser verificado o seu estado de funcionamento; por outro lado, o arguido sempre poderá questionar perante o juiz a correcta utilização do aparelho ou instrumento, assim como a fidelidade da transcrição dos dados por ele registados. Além de que, a utilização do radar pelas autoridades policiais não é um exame no sentido jurídico penal do termo e daí que não está sujeita às disposições legais que regulam a realização dos exames. Pelo exposto se entende que não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade.”
3. Desta decisão, “que aplica a norma do art.º 151º n.º 4 do Código da Estrada
(...) bem como a norma do art.º 64 n.ºs 1 e 2 do DL 433/82, interpretada no sentido de permitir que o Tribunal possa por simples despacho decidir matéria de facto impugnada pelo recorrente”, interpôs o recorrente o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, “por violação do art.º 32º n.ºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa”.
No Tribunal Constitucional, o relator proferiu o seguinte despacho:
“Quanto a uma das normas indicadas no requerimento de recurso de constitucionalidade – o artigo 64º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 433/82,que permite a decisão por simples despacho –, o recorrente vem agora impugnar a sua constitucionalidade perante este Tribunal, não o tendo, porém, efectuado quando, durante o processo, foi notificado para se opor à decisão por despacho no prazo de dez dias. Analisados os requisitos específicos deste tipo de recurso, fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – a saber: aplicação da norma impugnada como ratio decidendi na decisão recorrida; esgotamento dos recursos ordinários; suscitação da inconstitucionalidade normativa durante o processo –, terá de se concluir que este último não pode considerar-se verificado quanto a esta norma, e se não pode tomar conhecimento do recurso nesta parte. Para alegações, com o objecto do recurso limitado à apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 151º, n.º 4, do Código da Estrada.”
O recorrente concluiu as suas alegações, nos seguintes termos:
“1ª) O art.º 151º n.º 4 do C.E. está ferido de inconstitucionalidade por violação das garantias de defesa e do princípio do contraditório previstos no art.º [32º] n.ºs 1 e 5 da Constituição;
2ª) Efectivamente, não é dada ao arguido a possibilidade de comprovar a fiabilidade e o estado operacional do aparelho no momento da leitura da velocidade que lhe é imputada, como aliás acontece no que respeita à medição do
álcool no sangue;
3ª) E só nesse momento (e não na audiência de julgamento, que se realiza muito posteriormente) seria possível examinar em concreto a fiabilidade e credibilidade do aparelho;
(...)
5ª) Daqui resulta que o Arguido não tem meios processuais idóneos de fazer a contra-prova, capaz de abalar o poder de convicção dos dados fornecidos pelo aparelho de medição da velocidade;
6ª) Independentemente do que vem de ser dito, o certo é que sempre o art.º 151º n.º 4 do Código da Estrada seria inconstitucional, na interpretação que lhe é dada no Acórdão recorrido;
7ª) Efectivamente, o art.º 151º n.º 4 do Código da Estrada só atribui especial força probatória aos aparelhos aprovados nos termos legais e regulamentares;
8ª) Sucede porém que no Acórdão recorrido atribui-se essa especial força probatória aos aparelhos aprovados pela Direcção-Geral de Viação, sendo certo que a entidade com competência para aprovar os aparelhos de medição da velocidade é o Instituto Português da Qualidade (IPQ);
9ª) Assim, ao ter-se interpretado o art.º 151 n.º 1 no sentido de abranger também as aparelhos não aprovados pela entidade competente violou-se as garantias de defesa do arguido previstas no art.º 32 n.º 1 da Constituição;
10ª) Por outro lado, a interpretação que foi dada ao art.º 151 n.º 4 é também inconstitucional por violação do princípio do contraditório (art.º 32 n.º 5 da Constituição),
11ª) Efectivamente, nunca poderiam dar-se como assentes os resultados dos aparelhos de medição da velocidade, que foram impugnados pelo arguido no seu requerimento de recurso, sem ter sido realizada a audiência de julgamento;
12ª) Na verdade, o facto de o Arguido não se ter oposto a que o recurso fosse decidido por simples despacho – sendo certo que o fez por estar absolutamente convencido que só poderiam ser decididas as questões de direito que não carecessem de elementos de prova controvertidos – não permite interpretar o art.º 151º n.º 4 no sentido de dispensar o contraditório quanto aos resultados constantes dos aparelhos de medição impugnados pelo recorrente;
13ª) Decidindo, como decidiu, a decisão recorrida violou o art.º 32º n.ºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa.”
Notificado para responder, o Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal concluiu as suas contra-alegações da seguinte forma:
“1 – A decisão recorrida não interpretou a norma constante do artigo 151º, n.º
1, do Código da Estrada com o sentido de o valor probatório atribuído aos aparelhos de medição instantânea da velocidade valer mesmo nos casos em que tais aparelhos não hajam sido aprovados pela entidade competente, o que determina, sem mais, que não deva conhecer-se, nesta parte, desta dimensão interpretativa
(aliás, não especificada no requerimento de interposição do recurso).
2 – Face à reiterada jurisprudência constitucional, formada a propósito da norma constante do n.º 5 do artigo 64º do antigo Código da Estrada, não é inconstitucional, por violação das garantias de defesa, a atribuição do valor probatório ‘reforçado’ aos elementos de prova obtidos através de aparelhos electrónicos, aferidos nos termos legais e regulamentares, e sendo concedida ao arguido plena oportunidade de defesa, podendo impugnar a ‘fiabilidade’ de tais aparelhos de medição.
3 – Funcionando, no caso dos autos, como ‘ratio decidendi’ de tal valor
‘reforçado’ a norma consta[n]te do artigo 169º do Código de Processo Penal – o que, só por si, seria susceptível de pôr em causa a utilidade do recurso, enquanto reportado exclusivamente ao artigo 151º, n.º 4, do Código da Estrada.
4 – Termos em que – a conhecer-se do objecto do recurso – deverá o mesmo ser julgado improcedente.” Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos A) Delimitação do objecto do recurso
4. Nas suas alegações, o recorrente não retoma a questão da inconstitucionalidade de uma das normas indicadas no requerimento de recurso de constitucionalidade, conformando-se com a sua exclusão do objecto do recurso, efectuada no despacho liminar do relator – o artigo 64º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro – por falta de suscitação da sua inconstitucionalidade perante o tribunal a quo.
Também as referências, constantes das alegações do recorrente, à alegada violação do princípio do contraditório por não se ter realizado audiência de julgamento, devido à falta de oposição pelo arguido a que o recurso fosse decidido por despacho, se reportam à solução normativa resultante do artigo 64º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 433/82 – e não correspondem a qualquer interpretação do artigo 151º, n.º 4 do Código da Estrada, que se refere apenas ao valor dos elementos de prova obtidos através de aparelhos ou instrumentos, e não à tramitação processual ou à possibilidade de decisão por despacho, sem audiência de julgamento. Tais alegações respeitam, pois, também a norma cuja apreciação está excluída do presente recurso, relativamente à qual se não tomará conhecimento do recurso.
5. O presente recurso vem interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional, sendo, como se sabe, requisitos específicos deste tipo de recurso, além do prévio esgotamento dos recursos ordinários e da suscitação da inconstitucionalidade normativa durante o processo, a aplicação, pela decisão recorrida, como ratio decidendi, das normas constitucionalmente impugnadas.
Dispõe o artigo 151º, n.ºs 3 e 4, do Código da Estrada:
“(...)
3 – O auto de notícia levantado nos termos dos números anteriores faz fé sobre os factos presenciados pelo autuante, até prova em contrário.
4 – O disposto no número anterior aplica-se aos elementos de prova obtidos através de aparelhos ou instrumentos aprovados nos termos legais e regulamentares.
(...)”
Segundo o recorrente, é inconstitucional a interpretação deste artigo 151º, n.º
4, do Código da Estrada, que seria dada na decisão recorrida, por nele se atribuir especial força probatória “aos aparelhos aprovados pela Direcção-Geral de Viação, sendo certo que a entidade com competência para aprovar os aparelhos de medição da velocidade é o Instituto Português da Qualidade (IPQ)”, pelo que se teria interpretado este artigo “no sentido de abranger também as aparelhos não aprovados pela entidade competente”.
Ora, a verdade é que, no requerimento de recurso, o recorrente não autonomizou esta dimensão normativa, reportada à falta de aprovação dos aparelhos pela entidade competente, e que nem sequer a identificou, impugnando-a, por inconstitucionalidade, perante o tribunal a quo. No requerimento de interposição de recurso, refere-se apenas à norma do artigo 151º, n.º 4, do Código da Estrada. E anteriormente, perante o tribunal recorrido, a propósito da questão da falta de referência no auto de notícia à aprovação dos aparelhos pelo Instituto Português da Qualidade, imputa, nas conclusões (13º a 15º) a inconstitucionalidade à decisão recorrida, e, nos n.ºs 48 a 53 das alegações, não refere qualquer inconstitucionalidade.
Em consequência desta omissão, e da imputação da inconstitucionalidade apenas ao citado artigo 151º, n.º 4, na parte (consequência jurídica) em que atribui especial valor probatório aos elementos de prova (mas não à delimitação da sua hipótese ora em causa), o Tribunal da Relação de Lisboa não abordou a questão da constitucionalidade desta dimensão normativa, a qual não pode considerar-se adequadamente suscitada perante o tribunal recorrido. Recorde-se, na verdade, que se o recorrente entende que um preceito não é inconstitucional “em si mesmo”, mas apenas num segmento ou numa sua determinada dimensão ou interpretação normativa, a exigência de suscitação da questão de constitucionalidade de forma clara e perceptível implica, pois, o ónus de, ao suscitar a inconstitucionalidade, identificar devidamente tal questão, através da indicação do segmento ou da enunciação da dimensão ou sentido normativo reputados inconstitucionais – o que é evidentemente diverso de sustentar apenas que a hipótese de uma norma se encontra preenchida no caso concreto (mesmo que se aduzam argumentos de constitucionalidade nesse sentido). Como se disse no Acórdão n.º 199/88 (Diário da República [DR], II Série, de 28 de Março de 1989):
“(...) este Tribunal tem decidido de forma reiterada e uniforme que só lhe cumpre proceder ao controle da constitucionalidade de ‘normas’ e não de
‘decisões’ – o que exige que, ao suscitar-se uma questão de inconstitucionalidade, se deixe claro qual o preceito legal cuja legitimidade constitucional se questiona, ou, no caso de se questionar certa interpretação de uma dada norma, qual o sentido ou a dimensão normativa do preceito que se tem por violador da lei fundamental.” (ver também, por exemplo, os Acórdãos n.ºs
178/95 – publicado no DR, II Série, de 21 de Junho de 1995 –, 521/95 e 1026/96, inéditos).”
Ou, como se escreveu no Acórdão n.º 367/94 (DR, II Série, de 7 de Setembro de
1994):
“Ao suscitar-se a questão de inconstitucionalidade, pode questionar-se todo um preceito legal, apenas parte dele ou tão-só uma interpretação que do mesmo se faça.
(...) esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado por, desse modo, violar a Constituição.”
Acresce que, como refere o Ministério Público, o tribunal recorrido não interpretou a norma constante do artigo 151º, n.º 1, do Código da Estrada na dimensão normativa que o recorrente agora veio autonomizar nas alegações de recurso: isto é, com o sentido de o valor probatório dos aparelhos de medição instantânea da velocidade ser reconhecido mesmo que esses aparelhos não hajam sido aprovados pela entidade competente. Esta “interpretação” deste preceito – que, aliás, pode duvidar-se possa ser-lhe imputada – não foi aplicada na decisão recorrida. Antes nela se pode ler que “a utilização de aparelho ou instrumento na fiscalização do trânsito, nomeadamente de radares, depende de prévia aprovação da Direcção-Geral de Viação”, sem que, porém, tal “prévia aprovação” só por si dispense quaisquer outras exigências legais ou regulamentares aplicáveis (e isto, independentemente da questão da falta de referência no auto de notícia ao cumprimento de todas e cada uma dessas exigências).
Não pode, pois, este Tribunal tomar conhecimento do presente recurso, também nesta parte – aliás, não especificada no requerimento de interposição do recurso e só autonomizada nas alegações como dimensão normativa cuja constitucionalidade se pretendia ver também apreciada.
B) Questão de constitucionalidade
6. O objecto do presente recurso é, pois, apenas a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 151º, n.º 4, do Código da Estrada, na medida em que, por remissão para o n.º 3 desse artigo, dele resulta que os elementos de prova obtidos através de aparelhos ou instrumentos aprovados nos termos legais e regulamentares fazem fé sobre os factos deles constantes, até prova em contrário.
Segundo o recorrente, tal norma – que, conjuntamente com a invocação do artigo
169º do Código de Processo Penal, constituiu a ratio decidendi da decisão recorrida –viola as garantias de defesa e o princípio do contraditório, previstos no artigo 32º, n.ºs 1 e 5, da Constituição, por não ser “dada ao arguido a possibilidade de comprovar a fiabilidade e o estado operacional do aparelho no momento da leitura da velocidade que lhe é imputada”, único momento em que seria possível examinar em concreto essa fiabilidade.
Ora, sobre questão idêntica a esta, mas reportada à norma constante do n.º 5 do artigo 64º do Código da Estrada, na parte em que atribuía valor de auto de notícia aos elementos colhidos através de aparelho de radar fiscalizador do trânsito, existe uma abundante jurisprudência constitucional. Depois de dois arestos que julgaram esta norma inconstitucional (os Acórdãos n.ºs 201/85 e
85/86, publicados no DR, II série, respectivamente, de 6 de Novembro de 1985 e
19 de Março de 1986), tal norma não foi considerada inconstitucional nos Acórdãos n.ºs 87/87, 118/87, 127/87, 155/87, 203/87, 212/87, 253/87, 254/87,
260/87, 272/87 (publicados no DR, respectivamente, de 25 de Fevereiro, 25 de Março, 8 de Abril, 6 de Maio, 5 e 26 de Junho e 10 de Julho de 1987), e em muitos outros, até, mais recentemente, aos acórdãos n.ºs 33/90, 103/90 e 649/93
(in DR, II série, respectivamente de 7 de Fevereiro e 29 de Março de 1990, e o
último inédito). Pode, assim, ler-se naquele acórdão n.º 87/87:
“(...)
3 – Os autos de notícia levantados ou mandados levantar por qualquer autoridade, agente de autoridade ou funcionário público, no exercício das suas funções, relativos às infracções que presenciarem, fazem fé em juízo até prova em contrário, mas unicamente quanto aos factos presenciados pela autoridade, agente de autoridade ou funcionário público que os levantar ou mandar levantar (cf. o art. 169.º, § 2.º, do CPP). Ao que acresce que o juiz, a despeito dessa fé em juízo, pode sempre «mandar proceder a quaisquer diligências que ju1gue necessárias para a descoberta da verdade» (cf. o § 3.º do citado art.169.º). A fé em juízo de que gozam os autos de notícia, nos termos do art. 169.º do CPP, reconduz-se assim a «um especial valor probatório – aliás de modo algum definitivo, antes só prima facie ou de interim – atribuído a certas comprovações materiais, feitas presencialmente por certa autoridade pública» [cf. o Ac. 168 da Comissão Constitucional (C. Const.), publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 291, p. 341; cf. também Ac. 219 da mesma Comissão, publicado no citado Boletim, n.º 298, p. 95. Estas «comprovações» ou «verificações» materiais valem exclusivamente em relação aos puros factos presenciados pela autoridade, e não quanto a factos não perceptíveis sensorialmente (juízos de valor, proposições conclusivas, etc.), nem quanto a factos que, sendo embora sensorialmente perceptíveis, a sua «comprovação» não foi, todavia, feita presencialmente pela autoridade ou funcionário, antes provindo de facto terceiro
(cf. os arestos citados). Assim, pois, a fé em juízo dos autos de notícia a que se refere o art. 169.º do CPP não acarreta qualquer presunção de culpabilidade, nem envolve, necessariamente, qualquer manipulação arbitrária do princípio in dubio pro reu. A presunção contida na fé própria do auto de notícia refere-se – como se disse já – «a certas comprovações materiais, que não à culpa ou à ‘culpabilidade’ do agente e não obriga minimamente – bem pelo contrário (cf. o § 3.º do art. 169.º citado) – a dispensar a produção em julgamento de qualquer outra prova que se repute no caso necessária» (cf. o Ac. 368 da C. Const.. publicado no apêndice ao DR, de 18-1-83).
4 – O especial valor probatório dos autos de notícia, reconduzindo-se, ao cabo e ao resto, a simples prova de interim, também não põe em crise o direito de defesa do réu. De facto, a audiência de julgamento não se destina apenas à «reprodução» do auto de notícia, antes servindo também para a produção de provas que o juiz considere necessárias – necessárias, designadamente, para questionar o pr6prio auto de notícia, pondo em dúvida a veracidade das «comprovações» ou «verificações» materiais dele constantes (cf. o citado § 3.º do art. 169.º do CPP, conjugado com os arts. 19.º e 47.º do Dec.-Lei n.º 35 007, de 13-10-45). Além disso, há-de ela subordinar-se, por imperativo constitucional, ao princípio do contraditório
(cf. o art. 32.º, n.º 5, da CRP) e, bem assim, de realizar-se com observância dos demais princípios que a regem (o da oralidade e o da imediação). Daqui resulta que o réu, que pode aí fazer-se assistir por um defensor da sua escolha, tem assegurado o direito a um processo público e leal (a due process of law, a fair process), a um processo, em suma, que lhe assegura todas as garantias de defesa, de que fala o n.º 1 do art. 32.º da CRP.
5 – As coisas não se alteram quando a fé em juízo, ou seja, o especial valor probatório, é atribuída aos elementos colhidos pelas autoridades ou agentes com competência para a fiscalização do trânsito rodoviário através de aparelhos ou instrumentos utilizados internacionalmente em tal fiscalização. Questão é que esses aparelhos ou instrumentos hajam sido previamente aprovados pela DGV e que os autos de notícia os identifiquem cabalmente, como sucedeu no presente caso com o radar que se utilizou para controlar a velocidade a que transitava o automóvel do réu. Num tal caso não se pode dizer que seja desrespeitado o direito à defesa, nem infringido o princípio do contraditório. Na verdade, sendo a velocidade medida através de um radar, que é um aparelho técnico especializado, há-de esse elemento merecer especial credibilidade: desde logo, o resultado obtido tem carácter objectivo; depois, é de presumir que tal resultado seja correcto, uma vez que o aparelho de medição foi oficialmente aprovado; e, finalmente, de presumir é também que o resultado em causa seja fielmente registado no auto, uma vez que este é lavrado por agentes encarregados da fiscalização do trânsito, que são também quem maneja o radar. Ao que acresce que sempre o réu poderá questionar perante o juiz a correcta utilização do aparelho e, bem assim, a fidelidade da transcrição dos dados por ele registados; bastará, para tanto, requerer a exibição do registo efectuado pelo aparelho e requerer se apure o modo como ele foi utilizado pelo agente que efectuou a medição.
6 – A verdade, porém, é que o radar pode estar avariado ou mesmo não ser preciso, apesar de oficialmente aprovado. Mas, mesmo nessas hipóteses, o direito
à defesa e o princípio do contraditório não são afrontados. É que, sabendo-se qual foi o aparelho que, em cada caso, se utilizou, o réu sempre terá a possibilidade de questionar a medição efectuada e, assim, de contraditar o meio de prova em causa. Bastará para tanto requer[er] que o juiz mande verificar o estado de funcionamento do aparelho, fazendo testar a correcção das medições por ele efectuadas, e que mande, bem assim, averiguar se entretanto o mesmo foi objecto de qualquer reparação. E, ainda que o réu o não requeira, sempre o juiz o pode mandar fazer por sua iniciativa, desde que se lhe suscitem dúvidas sobre qualquer desses pontos. Se, depois de tudo isto, ficar a pairar qualquer dúvida séria no espírito do julgador sobre a exactidão do registo, constante do auto, relativo à velocidade a que seguia o infractor, é bem sabido que uma tal dúvida só pode beneficiar o réu, pois que é da inocência deste que no processo penal o juiz tem sempre de partir, sendo à acusação que cumpre convencer da culpabilidade do réu, carreando as necessárias provas incriminatórias (in dubio pro reo), Ora, o que vem de dizer-se é quanto basta para se poder concluir que o processo, mesmo com a disciplina do art. 64.º, n.º 5, do CE., oferece ao réu
«todas as garantias de defesa»: ele serve, com efeito, as necessidades de defesa que no processo se fazem sentir quando está em causa uma infracção do tipo daquela de que os autos dão conta.
7 – O radar não é certamente o único meio para medir a velocidade a que circula um determinado veículo. Ela pode, desde logo, calcular-se ou medir-se «a olho». Mas o radar é seguramente o meio mais eficaz para tal medição. Ora, não sendo possível repetir, na audiência de julgamento, as operações de medição da velocidade a que circulava determinado veículo, resta ao legislador atribuir especial valor probatório às medições feitas pelo radar. A menos, claro está, que se renuncie a punir as infracções de condução de veículos automóveis a velocidade excessiva, coisa, decerto, que ninguém pretende.
É que, mesmo que se instituísse um sistema de dupla (ou até de múltipla) medição de velocidade, sendo essa medição feita «simultaneamente por dois ou mais aparelhos colocados em ângulos diversos» (cf. o citado Ac. n.º 201/85), as dificuldades não acabavam. De facto, um tal sistema – que exigiria avultados e dispendiosos meios humanos e materiais, de todo desproporcionados, seja à natureza e gravidade das infracções de cuja averiguação se trata, seja ao risco que, apesar de tudo, sempre existirá para o réu eventualmente inocente de não conseguir criar no espírito do julgador a dúvida sobre a prática dos factos que se lhe imputam – estaria, ele também, sujeito à eventual imprecisão dos aparelhos, à sua possível avaria, a eventuais utilizações incorrectas e a possíveis infidelidades de registo dos resultados.”
No presente processo, perante a norma do artigo 151º, n.º 4, do Código da Estrada, que dispõe em sentido idêntico àquele artigo 64º, n.º 5, pode reiterar-se esta jurisprudência, remetendo para estes fundamentos, e concluindo que a norma em questão não é inconstitucional.
III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não tomar conhecimento do recurso quanto ao artigo 64º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro e quanto à norma do artigo 151º, n.º 4, interpretado no sentido de incluir igualmente aparelhos não aprovados pela entidade competente; b) Não julgar inconstitucional a norma que resulta da remissão do n.º 4 para o n.º 3 do artigo 151º do Código da Estrada, segundo a qual os elementos de prova obtidos através de aparelhos ou instrumentos aprovados nos termos legais e regulamentares fazem fé sobre os factos deles constantes, até prova em contrário; c) Consequentemente, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita; d) Condenar o recorrente em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 30 de Setembro de 2003 Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos