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Proc. n.º 330/03 TC - 1ª Secção Rel.: Consº Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1 - No recurso interposto por A., foi proferida a seguinte decisão sumária:
'1 - A., identificada nos autos, recorre para este Tribunal, ao abrigo do artigo 70º n.º 1 alínea b) da LTC, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
'que recusou a reforma do douto acórdão de fls. 176-188', ou seja o acórdão de fls. 210.
No respectivo requerimento de interposição do recurso, a recorrente expôs, com profusão, a questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada. Em síntese, a recorrente questiona a constitucionalidade da norma do artigo 158º n.º 1 do Código de Processo Civil, na interpretação - que diz acolhida no acórdão recorrido - segundo a qual a falta de fundamentação das decisões judiciais só gera nulidade se ocorrer falta absoluta de motivação e não já a insuficiência dessa motivação, assim se admitindo como válidas motivações deficientes; tal interpretação normativa violaria o disposto no artigo 205º n.º
1 da CRP.
O recurso foi admitido no tribunal a quo.
2 - O recorrente questiona, deste modo, sub specie constitutionis, uma determinada interpretação normativa do disposto no artigo 158º n.º 1 do CPC.
Está firme na jurisprudência do Tribunal Constitucional o entendimento de que cabe na competência deste Tribunal a apreciação da constitucionalidade de interpretações de normas de direito infraconstitucional, pelo que, nesta perspectiva, nada obsta ao conhecimento do objecto do recurso.
Impõe, no entanto, o disposto no artigo 70º n.º 1 alínea b) da LTC que a interpretação normativa que o recorrente pretende ver apreciada tenha sido aplicada na decisão impugnada e aplicada como razão de decidir (não como mero obter dictum).
Coloca-se, assim, a questão de saber, se, no caso, a aludida interpretação normativa foi aplicada no acórdão recorrido como ratio decidendi.
Para tanto, importa resumir o que resulta dos autos para um melhor enquadramento do contexto em que surge o acórdão recorrido.
3 - A recorrente é ré numa acção que a empresa B. lhe moveu para cobrança de um determinado crédito originado por fornecimentos por ela feitos à Ré.
A Ré alegou que a esse crédito correspondiam certas facturas que eram as mesmas com base nas quais, noutra acção intentada pela mesma Autora (º
11356/94, do 11º Juízo Cível de Lisboa), esta reclamava o pagamento, sendo que nessa acção a Autora desistira do pedido; consequentemente, entendendo que a Autora intentara duas acções com os mesmos pedido e causa de pedir e que a desistência do pedido correspondia à renúncia ao direito que se pretendia valer, requereu a extinção da instância.
A acção veio a ser julgada procedente e a Ré condenada como litigante de má fé.
A Ré recorreu, então, para a Relação de Lisboa, alegando, entre o mais, a ofensa do caso julgado formado sobre a sentença que homologara, na acção n.º11356/94, a desistência do pedido, insistindo em que as facturas onde se discriminam as mercadorias cujo pagamento a A requer são as mesmas em ambas as acções, sendo as partes, os pedidos e as causas de pedir também os mesmos.
Por acórdão de fls. 129 e segs., a Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, decidindo, no que ao caso importa, serem diferentes os pedidos e as causas de pedir nas indicadas acções.
A Ré recorreu para o STJ deste acórdão sustentando, entre o mais, ser inaceitável (porque demasiadamente restritiva) e inconstitucional a interpretação do artigo 498º n.º 3 do CPC, assente na diferença do montante dos pedidos, mantendo que em ambas as acções o pagamento exigido se referia às mesmas mercadorias.
Pelo acórdão de fls. 179 e segs., o STJ negou provimento ao recurso.
No que respeita ao invocado caso julgado, escreveu-se no aresto que:
- o acórdão então recorrido não atendeu apenas aos diferentes valores peticionados mas também e decisivamente ao facto de esses diferentes valores respeitarem a diferentes fornecimentos;
- face aos factos provados não pode dizer-se que se está perante as mesmas mercadorias
- as acções em causa são diferentes nos seus pedidos e causas de pedir
- não houve qualquer interpretação restritiva da norma do artigo 498.º n.º 3 do CPC;
- a recorrente insiste em ignorar a matéria de facto provada não atribuindo relevo às respostas de 'não provado' aos quesitos que consubstanciavam a sua tese.
A recorrente pediu, depois, a reforma do acórdão com fundamento no disposto no artigo 669.º n.º 2 alínea b) do CPC, sustentando que constam do processo documentos e elementos que, só por si, implicam uma decisão diversa da proferida e que só por manifesto lapso não foram tomados em consideração - esses documentos seriam as facturas juntas à acção n.º 11356/94, iguais às juntas pela Autora na presente acção.
Por acórdão de fls. 210, o STJ indefere o pedido de reforma, escrevendo-se na parte que interessa:
'Outra não pode ser a decisão, já que não há qualquer fundamento para a pretendida 'reforma'.
O acórdão em apreço apreciou em pormenor a única questão suscitada, face às conclusões da recorrente.
Qual seja, a questão de saber se se verificava, ou não, a excepção de caso julgado.
Questão que teve uma resposta negativa, após se ter demonstrado que as duas acções têm pedido e causas de pedir diferentes.
Demonstração que resiste bem ao explanado no requerimento de fls. 192 a
196, não se verificando, manifestamente, a situação vertida na alínea b) do n.º
2 do artigo 669º do CPC.
...........................................................................................'
A recorrente arguiu, então, a nulidade, deste último acórdão por falta de fundamentação, considerando, ainda, que a interpretação feita no aresto do artigo 158º n.º 1 do CPC colide com o disposto no artigo 205º n.º 1 da CRP.
O STJ, pelo acórdão de fls. 233 e segs., desatendeu a arguição.
O que se colhe dele ?
- Desde logo - e aceitando embora que 'não terá sido muito' o que se disse no acórdão em causa como fundamentação - que a fundamentação 'foi a bastante, e suficiente, face ao circunstancialismo descrito' (sublinhado no original).
- Que nesse circunstancialismo não se devia ser 'tão exigente no que ao dever de fundamentação tange (para além de se poder entender que houve mesmo uma remissão para os fundamentos do primeiro acórdão)'
- Que, no mesmo circunstancialismo, se compreendia o facto de a recorrente, no requerimento de reforma, continuar a fazer apelo a documentos que as anteriores decisões tinham já tido oportunidade de apreciar, nada tendo inovado.
- Que o deferimento do pedido de reforma pressupõe a ocorrência de um
'manifesto e inquestionável erro de julgamento', o que no caso se não verificaria.
Termina o mesmo acórdão:
'Resumindo, e concluindo, afigura-se que a fundamentação do acórdão que negou a reforma contém fundamentação bastante, atentas as especificidades que se apontaram.'
Acrescentando, ainda:
'Conclusão firmada tendo também em conta, que, no que concerne à nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 668º do CPC, tanto a doutrina (...) como a jurisprudência (...) exigem, para a sua verificação que haja falta absoluta de fundamentação, não bastando que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente.' (sublinhados no original).
Ora, a primeira conclusão a extrair do que se deixou sintetizado é, antes do mais, a de que, no acórdão que recusou a reforma (o acórdão agora impugnado), se não vislumbra qualquer interpretação normativa do artigo 158º n.º
1 do CPC, com o sentido apontado pela recorrente.
Com efeito, tal acórdão limita-se a indeferir o pedido de reforma, com uma determinada fundamentação, sem, explícita ou implicitamente, dar nota do critério interpretativo adoptado quanto à motivação das decisões judiciais e muito menos de que bastam fundamentações deficientes.
O que acontece é que a recorrente entende que a fundamentação é deficiente e, neste caso, decidir o Tribunal Constitucional sobre se ela é, ou não, deficiente, em termos de violar o preceito constitucional que impõe a fundamentação das decisões judiciais, era nem mais do que julgar a constitucionalidade dessas mesmas decisões, o que se não compreende na esfera da
competência deste Tribunal.
Admite-se, contudo, que se lance mão do que, no acórdão posterior, se decidiu sobre a arguição de nulidade por falta de fundamentação, para se elucidar a interpretação normativa - aqui sim - que estaria subjacente ao acórdão recorrido.
Mas do que dele se colheu, como ratio decidendi, foi uma interpretação da exigência infraconstitucional de fundamentação que se afasta da que a recorrente pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
Na verdade, o que aí se fez relevar foi um conceito relativo da fundamentação das decisões judiciais, que haveria de aferir-se pelas circunstâncias concretas do caso; e estas, no caso, eram a de se tratar de um pedido de reforma, cujo deferimento pressupõe um erro manifesto de julgamento e a de os documentos, ou elementos, que supostamente implicavam necessariamente uma decisão diversa, terem já sido apreciados nas anteriores decisões judiciais.
E a conclusão foi, não a de se estar perante uma fundamentação deficiente, mas a de esta ser bastante, considerando aquelas circunstâncias.
É certo que o acórdão refere, depois, doutrina e jurisprudência segundo as quais só se verifica nulidade quando há falta absoluta de fundamentação, mas, considerando o que antes se escrevera - no sentido de que a fundamentação era bastante - não é nessa referência que se contém a razão do decidido.
Em suma, pois, também por esta via, não se considera que o acórdão recorrido tenha aplicado como ratio decidendi a interpretação do artigo 158º n.º
1 do CPC que a recorrente questiona, soçobrando, assim, um dos pressupostos do recurso previsto no artigo 70º n.º 1 alínea b) da LTC.
3 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 Ucs.
2 - Como se deixou relatado, a decisão sumária reclamada não conheceu do objecto do recurso por nela se ter entendido que a interpretação normativa que a recorrente pretendia ver apreciada pelo Tribunal Constitucional não fora aquela que o acórdão recorrido (mais concretamente o acórdão que conhecera da nulidade daquele aresto) adoptara.
Com efeito, o acórdão não acolhera o entendimento de que são admissíveis fundamentações deficientes das decisões judiciais - nele se sustentava que a fundamentação era, na situação em apreço, bastante, entendendo-se, apenas, que o conceito de fundamentação era um conceito relativo, devendo atender-se às circunstâncias do caso - tratar-se in casu de um pedido de reforma em que se não verificava qualquer lapso manifesto e fazer o requerente apelo a documentos que já haviam sido apreciados por decisões anteriores.
Na presente reclamação, a reclamante expõe, com desenvolvimento, o que se deve entender por fundamentação das decisões judiciais, citando doutrina e jurisprudência apropriadas, mantendo que o acórdão recorrido acolheu a interpretação da norma do artigo 158º n.º 1 do CPC no sentido de que são admissíveis fundamentações deficientes, pois só geraria nulidade da decisão a falta absoluta de fundamentação.
Mas não tem razão.
Com efeito, nada do que se deixou dito na decisão reclamada é consistentemente abalado pela reclamação, particularmente no que concerne ao facto de, no acórdão sobre a arguição de nulidade por falta de fundamentação do acórdão que se pronunciou sobre o pedido de reforma, se ter considerado suficiente a fundamentação atendendo às circunstâncias do caso (conceito relativo de fundamentação).
Na mesma decisão sumária não deixou de se ponderar o trecho do acórdão onde se dá conta de doutrina e jurisprudência no sentido de que só gera nulidade a falta absoluta de fundamentação - e é basicamente neste ponto que a reclamante se estriba para manter que a interpretação normativa cuja inconstitucionalidade suscitou foi acolhida no acórdão recorrido.
Certo é, porém, que se entendeu na mesma decisão sumária que não era em tal referência doutrinal e jurisprudencial que assentava a razão de decidir do acórdão do STJ.
Trata-se de um juízo que aqui se reitera, podendo apenas admitir-se que essa referência constitua um argumento excedentário para se ter julgado improcedente a nulidade arguida.
3 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa, 8 de Julho de 2003 Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Luís Nunes de Almeida