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Proc. n.º 247/03
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Por sentença de 15 de Julho de 2002, do 1º Juízo Criminal de Barcelos, foi julgado improcedente o recurso interposto pela ora recorrente, A., da decisão do Ministério da Administração Interna que, em processo de contra-ordenação, a condenara na coima de € 997, 60, por violação do disposto no artigo 10º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho.
2. Inconformada com esta decisão, a arguida recorreu para o Tribunal da Relação de Guimarães, tendo, na alegação que então apresentou, suscitado a inconstitucionalidade do art. 9º, n.º 1 do DL n.º 231/98, de 22 de Julho, por alegada violação dos princípios da proporcionalidade, da livre iniciativa privada e do direito ao trabalho.
3. O Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 27 de Janeiro de 2003, julgou o recurso improcedente. Sobre a alegada inconstitucionalidade do art. 9º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho, ponderou aquele Tribunal:
“[...]
3. É a recorrente de opinião que a norma constante do artigo 9°, n° 1, do Decreto-Lei n° 231/98, de 22 de Julho, na interpretação da sentença recorrida, viola o princípio da livre iniciativa privada (e do direito ao trabalho), sendo, por via disso, inconstitucional. Com o princípio da proporcionalidade, que, como se sabe, é um princípio material inerente ao regime dos direitos, liberdades e garantias, tem-se em vista, no que aqui interessa, uma “justa medida', como parâmetro de aferição dos meios legais e dos fins que se querem obter, de modo a evitar-se a adopção de medidas desproporcionadas, excessivas, em relação a tais fins (Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 38 ed., p. 152). Com ele pretende-se que a actividade do Estado legislador e do Estado administrador se paute de modo a adequar as medidas projectadas aos fins pretendidos, sem enveredar por excessos ou puro arbítrio, embora se reconheça que o alcance de um para outro não é absolutamente coincidente: ideia de 'excesso legislativo' presente na jurisprudência do Tribunal Constitucional (cf., por ex., o Acórdão n° 200/2001, de 9 de Maio de 2001, DR II série de 27 de Junho de 2001). O mesmo Tribunal Constitucional tem reconhecido e aplicado o indicado princípio em várias decisões, “aferindo frequentemente perante ele incriminatórias ( ) quer normas de outro tipo, que previam encargos ou limitações de direitos fundamentais'. Anote-se, ademais, que o princípio da proporcionalidade, em sentido lato, pode desdobrar-se em três exigências da relação entre as medidas e os fins prosseguidos: a adequação das medidas aos fins; a necessidade ou exigibilidade das medidas e a proporcionalidade em sentido estrito, ou 'justa medida', como se viu. A recorrente invoca a violação do princípio da proporcionalidade pela norma do artigo 9º, n.º 1 do DL n° 231/98, de 22 de Julho, afirmando que a interpretação feita na sentença recorrida conduz a um resultado clamorosamente violador do princípio da livre iniciativa privada e é ainda violadora do direito ao trabalho consagrado no art. 58°, n° I da Lei Fundamental. E isso, por força da calendarização dos exames nacionais, que apenas têm lugar de seis em seis meses, e da tramitação posterior tendente à certificação do cartão profissional de vigilante pela Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna - chegaríamos à situação absurda, e claramente violadora do princípio da livre iniciativa privada, de a empresa de segurança contratar um trabalhador, ministrando-lhe toda a formação legalmente exigida, e ficar posteriormente impedida, durante largos meses de o utilizar ao seu serviço sendo, em todo o caso, obrigada a pagar-lhe o salário. Sendo certo que, para evitar tal absurda situação, melhor seria não proceder à imediata contratação do trabalhador, reservando-a para as vésperas da realização do exame nacional, resultado que conduziria a uma clara violação do direito ao trabalho consagrado na Lei Fundamental. A avaliação do exercício da actividade de segurança privada, cujo objecto é a protecção de pessoas e bens, bem como a prevenção e dissuasão de acções ilícito-criminais, é realizado, segundo se pode ler no preâmbulo do Decreto-Lei n° 231/98, de 22 de Julho, mediante laços de complementaridade e colaboração com o sistema de segurança pública. É por assim ser que 'assume especial relevância a fixação rigorosa das condições de acesso à actividade de segurança provada, no pressuposto de que esta está indissoluvelmente ligada à prossecução do interesse público'. Temos assim que a previsão do regime instituído quanto à calendarização dos exames nacionais e às exigências que os acompanham não poderá considerar-se absurdo, no sentido referido pela recorrente, já que também se não demonstra que a solução legal conduza a que, durante largos meses, a empresa esteja impedida de utilizar o trabalhador que contratou. Poderá num caso ou noutro, o regime assim instituído, não corresponder à melhor solução (ou à solução mais justa), mas a correspondente previsão enquadra-se ainda 'no espaço de conformação do legislador', pelo que não é caso de se concluir pela inconstitucionalidade da apontada norma, nas vertentes pretendidas pela recorrente. [...]”
4. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70º, da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso, para apreciação da inconstitucionalidade do artigo 9º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho, por alegada violação do artigo 165º, n.º 1, al. b), e dos princípios da proporcionalidade, da livre iniciativa privada e do direito ao trabalho, consagrados, respectivamente, nos artigos 18º, n.º 2, 61º e 58º, todos da Constituição.
5. Já neste Tribunal foi a recorrente notificada para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
“A. O candidato a vigilante, antes de se submeter aos exames nacionais destinados a conferir a titularidade do cartão profissional definitivo, tem de se submeter a um curso de formação inicial básica, ministrado directamente pela empresa de segurança privada. B. À luz da legislação vigente, a empresa de segurança privada tem competência para aferir do cumprimento, por parte do candidato a vigilante, de todos os requisitos necessários ao início de tal actividade profissional, capacidade que decorre de certificação conferida por alvará passado pela entidade administrativa competente; C. Apesar disso, não pode o vigilante iniciar a actividade profissional para que foi contratado, pois não dispõe de cartão profissional autenticado pela autoridade administrativa competente. D. De facto, à luz da norma cuja inconstitucionalidade se invoca, o pessoal de vigilância, no exercício da sua actividade, deve ser titular de cartão profissional autenticado pela Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna. E. Antes de obter o cartão profissional definitivo, o vigilante identifica-se com cartão provisório ou de primeira candidatura que, por não estarem excluídos da previsão do art. 9°, n° 1 do DL n° 231/98, de 22 de Julho, têm igualmente de ser autenticados pela referida autoridade administrativa. F. A autenticação dos cartões que antecedem o cartão profissional definitivo não depende de qualquer controlo de mérito sobre o cumprimento, pelo vigilante, dos requisitos necessários ao desempenho desta actividade profissional. G. O verdadeiro controlo de mérito é directamente feito pela empresa de segurança privada - para o que dispõe de alvará próprio - e no âmbito dos laços de complementaridade e colaboração com o sistema de segurança pública plasmados no preâmbulo do DL n° 231/98, de 22 de Julho. H. O formalismo de autenticação supra referido impede, por largos meses, que a empresa de segurança privada utilize o trabalhador que já contratou e formou, sendo certo que não a desonera do pagamento da respectiva componente salarial. I. O formalismo de autenticação impede, por largos meses, o trabalhador de desenvolver a actividade para que foi contratado e para a qual cumpre com todos os requisitos materiais exigíveis. J. O formalismo em questão - a autenticação pela Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna - não pressupõe nenhuma avaliação de mérito relativamente ao processo do vigilante em causa, pois não pressupõe qualquer avaliação do cumprimento dos requisitos necessários ao desempenho da actividade de vigilante. K. Apesar disso, após o envio do processo para a Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna, à empresa de segurança privada não resta outra alternativa que não seja a de aguardar que aquela entidade administrativa lhe devolva o cartão de primeira candidatura devidamente autenticado pois, à luz da norma cuja inconstitucionalidade ora se invoca, só a partir deste momento está o candidato a vigilante em condições de exercer a sua actividade - só então poderá ostentar o cartão profissional autenticado pela Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna. L. A livre iniciativa privada, constitucionalmente consagrada, desdobra-se na liberdade de iniciar uma actividade económica e na liberdade de gestão e actividade da empresa. M. A iniciativa económica, enquanto direito fundamental, não pode ser restringida em prejuízo do seu conteúdo essencial, pois constitui um direito análogo aos 'direitos, liberdades e garantias', beneficiando do respectivo regime, tal como surge estabelecido no art. 17.º da Lei Fundamental. N. A Constituição, no seu art. 61°, nº1, remete para a lei a definição dos
'quadros' de exercício da iniciativa privada, sendo certo que esses 'quadros' não podem contrariar a sua natureza, mas apenas explicitar melhor o seu conteúdo e compatibilizá-lo com outros direitos ou valores de suprema dignidade constitucional que com ela possam abstractamente conflituar - nesse sentido, e só nesse, lhe introduzirão limites. O. As restrições à livre iniciativa privada devem observar o princípio da proporcionalidade, ou seja, o princípio da proibição do excesso. P. Tal princípio desdobra-se nos princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade; Q. A aplicação da norma constante do art. 9°, n.° 1 do DL n° 231/98, de 22 de Julho conduz a um resultado clamorosamente violador do princípio da livre iniciativa privada, facto que torna inconstitucional a referida disposição legal. R. A norma em crise é ainda violadora do direito ao trabalho consagrado no art.
58°, n.º1 da Lei Fundamental, sendo igualmente inconstitucional. S. A constitucionalização do direito ao trabalho impõe ao legislador a obrigação de ver este princípio com um valor superior, susceptível de se impor no ordenamento jurídico. T. As restrições que lhe são criadas devem ser impostas pelo interesse colectivo e devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, objectivos que são insusceptíveis de ser prosseguidos com um comportamento meramente formal da autoridade administrativa. U. A imposição da autenticação no cartão profissional provisório e no cartão de primeira candidatura pela entidade administrativa competente, traduz uma evidente restrição ao direito ao trabalho, sendo certo que a mesma não é justificada por qualquer das razões supra citadas. V. A exigência constante do art. 9°, n° 1 do DL n° 231/98, de 22 de Julho, para além de ser clamorosamente violadora da liberdade de trabalho, não colhe o seu fundamento na salvaguarda de qualquer direito colectivo de idêntico conteúdo hierárquico.
W. A validade das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias depende da verificação de requisitos quanto ao carácter da própria lei, entre os quais se refere a necessidade de se tratar de uma lei da Assembleia da República ou, pelo menos, um decreto-lei autorizado, tal como se estabelece no art. 165°, n° I, ala b) da CRP. X. Situação que não se verifica no âmbito do diploma em causa, pois o DL n°
231/98, de 22 de Julho foi aprovado nos termos do art. 198°, n° 1, al. a) do texto fundamental, ou seja, no uso da competência legislativa do Governo em matérias não reservadas à Assembleia da República”.
6. Contra-alegou o Ministério Público, tendo dito, a concluir:
“1 - A norma que integra o objecto do presente recurso não versa sobre a definição das condições ou requisitos substanciais de acesso ao exercício da profissão no âmbito das actividades de segurança privada, tendo uma dimensão meramente «secundária» ou adjectiva, pelo que podia legitimamente ser editada sem credencial parlamentar.
2 – O estabelecimento legal da exigência de autenticação administrativa do cartão profissional - que deve ser aposto obrigatoriamente pelo pessoal de vigilância e defesa de pessoas, com vista a garantir, desde logo a facilidade e fidedignidade da respectiva identificação – não viola o princípio da proporcionalidade nem afronta qualquer outra norma ou princípio da Constituição.
3 – Termos em que deverá improceder o presente recurso”.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II. Fundamentação.
7. O artigo 9º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho, preceito em que se insere a norma cuja inconstitucionalidade vem questionada, tem o seguinte teor:
“Artigo 9º Cartão Profissional
1 – O pessoal de vigilância e de acompanhamento, defesa e protecção de pessoas deve ser titular de cartão profissional autenticado pela Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna, válido pelo prazo de dois anos, susceptível de renovação por iguais períodos de tempo.
2 – [...]
3 – [...]”
Alega a recorrente que tal preceito legal é orgânica e materialmente inconstitucional, por violação, respectivamente, do artigo 165º, n.º 1, alínea b), e dos princípios da proporcionalidade, da livre iniciativa privada e do direito ao trabalho, consagrados nos artigos 18º, n.º 2, 61º e 58º, todos da Constituição.
Mas, como se verá, sem razão.
7.1. Da alegada inconstitucionalidade orgânica do artigo 9º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho.
Na alegação de recurso que apresentou neste Tribunal sustenta a recorrente que o artigo 9º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho, está ferido de inconstitucionalidade orgânica, na medida em que tratando-se de preceito restritivo de direitos, liberdades e garantias, teria sido emitido sem a necessária autorização parlamentar e, assim, em violação do disposto no artigo
165º, n.º 1, al. b) da Constituição.
Vejamos.
O artigo 165º, n.º 1, alínea b), da Constituição preceitua que é da exclusiva competência da Assembleia da República (salvo autorização ao Governo) legislar sobre direitos, liberdades e garantias. E, é certo, esta reserva legislativa - tal como decorre expressamente do artigo 17º da Constituição - abrange pelo menos todos os direitos, liberdades e garantias do título II da parte I da Constituição (direitos, liberdades e garantias de carácter pessoal; direitos, liberdades e garantias de participação política; e direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores). Ora, entre estes últimos - direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores - importa considerar especialmente para a questão que agora nos ocupa o direito á livre escolha da profissão a que se refere o artigo 47º, n.º 1 da Constituição.
Aliás, partindo da constatação de que se inclui na reserva legislativa de competência da Assembleia da República legislar em matéria de direito à livre escolha da profissão, o Tribunal Constitucional considerou, nos Acórdãos n.ºs
188/92 (publicado nos Acórdãos, 22º vol., págs. 455 ) e 172/95 (publicado no Diário da República, II Série, de 9 de Junho de 1995), que era organicamente inconstitucional a norma constante do n.º 2 do artigo 10º do Decreto-Lei n.º
282/86, de 5 de Setembro - primeiro diploma legal a regular a actividade de segurança privada -, na medida em que estabelecia uma incompatibilidade entre o exercício de actividade como pessoal de segurança privada e o exercício de qualquer cargo ou função na Administração central, regional ou local, bem como com o exercício de qualquer actividade profissional remunerada sob a autoridade e direcção de qualquer outra entidade. E isto, precisamente por violação do artigo 165º, n.º 1, al. b) da Constituição. Considerou, então, o Tribunal Constitucional que a criação daquela incompatibilidade “constitui uma verdadeira restrição a um direito fundamental” (o direito à livre escolha da profissão) inscrevendo-se por isso no âmbito da reserva de competência legislativa parlamentar prevista no artigo 165º, n.º 1, alínea b), da Lei Fundamental, atinente aos direitos, liberdades e garantias.
Mais recentemente o Tribunal considerou igualmente, embora com vozes discordantes, no Acórdão n.º 255/02 (Diário da República, I Série, de 8 de Julho de 2002), tirado em plenário e em processo de fiscalização abstracta sucessiva, que também as normas constantes do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 231/98 (diploma em que também se insere o artigo 9º, n.º 1, ora em apreciação), ao fixarem os requisitos de que depende o exercício das diversas profissões ligadas à actividade de segurança privada, se encontravam feridas de inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição, com referência ao artigo 47º, n.º 1, da Lei Fundamental.
Escudou-se o Tribunal, para tanto e no essencial, na seguinte fundamentação:
“[...] Dispõe este artigo 47º, n.º 1, que a liberdade de escolha e de exercício da profissão fica sujeita às “restrições legais impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à sua capacidade”. Todavia, como assinala Jorge Miranda (Manual de Direito Constitucional IV vol., 3ª ed., Coimbra Editora, pág. 502), “as restrições têm de ser legais”, e como a competência para legislar sobre restrições aos direitos, liberdades e garantias pertence exclusivamente ao Parlamento (salvo autorização do Governo), daí decorre a inevitável inconstitucionalidade orgânica das normas em apreço. Para J. J. Gomes Canotilho, no domínio dos direitos fundamentais (mesmo no
âmbito dos direitos, liberdades e garantias), “a reserva de lei não possui apenas uma dimensão garantística em face das restrições de direito; ela assume também uma dimensão conformadora-concretizadora desses mesmos direitos” (Direito Constitucional, 5ª ed., Almedina, 1992, pág. 801). Aliás, ainda que se entenda que em algumas das alíneas do n.º 1 e do n.º 2 do mencionado artigo 7º do Decreto-Lei n.º 231/98 se não prevêem verdadeiras e próprias restrições, mas antes se revelam tão-só limites imanentes da liberdade de profissão, a conclusão será sempre idêntica. É que, como vimos, a reserva parlamentar abrange “tudo o que seja matéria legislativa e não apenas as restrições” (Acórdão n.º 128/00, cit., e no mesmo sentido, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, obra cit., nota VIII ao artigo 168º, pág. 672). Ora, os requisitos enunciados no n.º 1 do artigo 7º são todos eles condições – ainda que nalguns casos, ultrapassáveis sem dificuldade (assim, o requisito da plena capacidade civil) – cujo preenchimento é indispensável para exercer a profissão nele referida, e cuja falta impede, pois, a escolha e o exercício desta. Desde logo pelo seu efeito, tal norma regula matéria legislativa, não se limitando a proteger, promover ou ampliar o exercício da liberdade de escolha de profissão, nem a executar em aspectos de pormenor a regulação do seu exercício. E o mesmo vale para o n.º 2 do artigo 7º, no qual se contém a exigência de comprovação da robustez física e do perfil psicológico por ficha de aptidão, acompanhada de exame psicológico obrigatório, bem como de aprovação em provas de conhecimento e de capacidade física, sem as quais os interessados não poderão ser admitidos como pessoal de vigilância e de acompanhamento, defesa e protecção das pessoas”.
Mas, como se verá já de seguida, mesmo para quem não discorde desta jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional, da sua aplicação ao caso dos autos não resulta que também a norma constante do n.º 1 artigo 9º do Decreto-Lei n.º 231/98, ao exigir que o pessoal de vigilância e de acompanhamento, defesa e protecção de pessoas deva ser titular de cartão profissional autenticado pela Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna, se encontre ferida de inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 165º da CRP, com referência ao artigo 47º, n.º 1, da mesma Lei Fundamental.
Com efeito, a norma que agora está em discussão - ao contrário do que se considerou, embora mesmo aí sempre com vozes discordantes, que acontecia com as normas que foram objecto de apreciação nos Acórdãos n.ºs 188/92, 172/95 e
255/02, já citados - manifestamente não interfere com o direito de escolher livremente a profissão, na medida em que - como, bem, nota o Ministério Público na sua alegação - “não versa sobre as condições ou requisitos substanciais de acesso ao exercício da profissão no âmbito no âmbito das actividades de segurança privada, tendo uma dimensão meramente secundária ou adjectiva”.
Dito de outra forma: o artigo 9º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 231/98 não restringe ou sequer condiciona a liberdade de escolha ou de opção pela profissão em causa
- manifestamente não é esse o seu espaço normativo de intervenção -, apenas determinando que quem pretenda desenvolver a actividade em causa, precisamente no exercício dessa liberdade de escolha, previamente se muna de um instrumento fidedigno de identificação – o cartão profissional autenticado pela Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna. Não é, assim, vedada ou condicionada qualquer opção pela actividade profissional em causa.
Mas, sendo assim, há que concluir que tal norma não versa sobre direitos, liberdades e garantias; designadamente, não versa sobre o direito de livre escolha da profissão, ao menos na dimensão garantística que exige que a aprovação da respectiva disciplina legal se faça após prévio debate parlamentar e com observância da regra da maioria, pelo que a sua edição sem prévia credencial parlamentar não a torna organicamente inconstitucional.
E esta conclusão vale também, e é integralmente transponível, para a hipótese de a questão ser colocada numa outra perspectiva, em que a coloca igualmente a recorrente, e que se refere não já ao direito à escolha da profissão, mas sim ao direito ao trabalho ou à livre iniciativa privada, consagrados nos artigos 58º, n.º 1, e 61º, n.º 1, da Constituição. Com efeito, mesmo quando se aceite que estamos, nesta matéria, igualmente, perante direitos fundamentais de natureza análoga, no sentido do artigo 17º da Constituição, a que também se aplica, precisamente por força desse preceito, o regime dos direitos liberdades e garantias, há que concluir que tal norma, não versando sobre direitos, liberdades e garantias e tendo uma dimensão meramente secundária ou adjectiva, também não é abrangida pelo aspecto daquele regime que se relaciona com a competência legislativa definida pelo o artigo 165º, n.º 1, al. b) da Constituição.
7.2. Da alegada inconstitucionalidade material do artigo 9º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho.
Alega ainda a recorrente que o preceito em análise é também materialmente inconstitucional, agora por violação dos princípios da proporcionalidade, da livre iniciativa privada e do direito ao trabalho, consagrados, respectivamente, nos artigos 18º, n.º 2, 61º e 58º da Constituição.
Porém, também aqui, sem razão.
Com efeito, decidido que a norma em apreço não interfere com direitos, liberdades e garantias ou outros direitos fundamentais de natureza análoga constitucionalmente consagrados e, por isso mesmo, não é organicamente inconstitucional, então logicamente que também não será materialmente inconstitucional precisamente por violação desses mesmos preceitos constitucionais com quais já se disse que o seu conteúdo não interfere.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 14 de Julho de 2003
Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Luís Nunes de Almeida