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Proc. n.º 218/01
2ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – O relatório
1. A., identificada com os demais sinais dos autos, interpõe recurso do acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 15 de Novembro de 2000 - o qual negou provimento ao recurso que havia interposto do acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo que, por seu lado, confirmara a decisão de improcedência da impugnação deduzida pelo ora recorrente contra a liquidação adicional do Imposto sobre o Valor Acrescentado (doravante designado apenas por IVA) - nos temos da al. b) do n.º 1 do art. 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (doravante, apenas LTC - Lei n.º 28/82, de
15 de Novembro sucessivamente alterada), pretendendo que este Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade das normas dos art.os 82 e 84º do Código do IVA (abreviadamente, CIVA).
2. Sintetizando o afirmado nas alegações de recurso para este Tribunal, conclui a recorrente pelo seguinte modo:
«1ª - No aliás douto acórdão recorrido foi decidido que, aos artigos 82º e 84º do CIVA não se aplicaria o regime e princípios válidos em matéria de processos de natureza sancionatória, porquanto, aqueles normativos não regulam um processo de tal natureza, mas tão só estabelecem “em que casos e por que meios pode a Administração Fiscal repor a realidade da situação tributária do contribuinte em sede de IVA”.
2ª - Entende, porém, a recorrente que tal interpretação contende com o preceituado no n.º 2 do art.º 32º da Lei Fundamental, violando-se concomitantemente, o princípio “in dubio pro reo” aí consagrado.
3ª - Na verdade, aquelas normas estabelecem uma presunção de comportamento contra-ordenacional, que nos termos do citado Código constitui uma infracção fiscal, presunção essa de um comportamento culposo e, mais grave que tudo, estatuído antes do trânsito em julgado de sentença condenatória, estando assim plenamente justificado o recurso às normas constitucionais de protecção do cidadão em matéria penal.
4ª - É consabido que, face à nossa lei, também as infracções fiscais, porque punidas com pena de multa, apresentam natureza criminal (cfr. António Braz Teixeira, Princípios de Direito Fiscal, vol. II, págs. 29), pelo que se defende a validade do princípio “in dubio pro reo” no domínio fiscal - vide Col. Jur., III, págs. 1117) acórdão do TC n.º 227/92, in Bol. Contribuinte, 1992, págs.
402.
5ª - Ademais, a evolução legislativa tem conduzido a uma cada vez maior aproximação, no tocante ao tratamento legal da violação dos comandos contidos nas normas tributárias, aos princípios e regras próprias ao direito penal comum.
6ª - In casu, concluiu-se a existência de vendas não contabilizadas, pela mera falta de inventário respeitante ao exercício em causa, bem como a elementos puramente extracontabilísticos, designadamente, ao volume de compras mais acentuado, porém inquestionável no último trimestre de 1995,
7ª - Violando-se, ainda, o disposto no art.º 129º do Código de Processo Tributário que, tratando expressamente da relação entre dúvidas fundadas e métodos indiciários, exige - sem margem de dúvida razoável - que se verifique o facto tributário, sob pena do acto impugnado ser anulado (vide Acórdão do Tribunal Central Administrativo, de 19 de Dezembro de 2000, proferido no âmbito do processo n.º 4066/00).
8ª - Donde, dúvidas não restam quanto à necessidade de fundamentação da decisão quanto à avaliação indirecta, bem como do seu carácter de ultima ratio
(cfr. Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, pág. 281).
9ª - Por último se dirá, ainda, que os citados artigos 82º e 84º do CIVA, porque de normas infraconstitucionais se trata, sempre terão de ser interpretadas em conformidade com a Constituição, designadamente, em consonância com o disposto no art.º 32º da Constituição.
10ª - Tanto mais que, consubstanciando o sobredito normativo um direito fundamental dos cidadãos, sempre implicará a sua interpretação em termos mais favoráveis, devendo prevalecer aquela que, conforme os casos, restrinja menos tal direito e lhe dê maior protecção (vide J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, págs. 143).
11ª - Revestindo-se com o manto da inconstitucionalidade, aqueles mesmos artigos do CIVA não deveriam ter sido, na interpretação que lhes foi dada no douto aresto ora em crise, aplicados pelo Meretíssimo Julgador na formação da decisão».
3. A FAZENDA PÚBLICA, recorrida, não contra-alegou.
4. Dos fundamentos da decisão recorrida
Inconformada com o acórdão do TCA que negou provimento ao recurso interposto da decisão de improcedência da impugnação prolatada pela 1ª instância, a ora recorrente colocou ao Supremo Tribunal Administrativo, no recurso que para ele interpôs, entre outras que estão fora do objecto deste recurso de inconstitucionalidade, a questão da inconstitucionalidade dos art.ºs
82º e 84º do CIVA por violação do n.º 2 do art.º 32º da CRP.
E discreteando e decidindo sobre ela considerou esse tribunal o seguinte:
« O n.º 2 do art.º 32º da CRP, ao consagrar a presunção de inocência do arguido, é unicamente aplicável ao processo criminal, ainda que se deva entender, até por força do seu n.º 10, que alcança todas as espécies processuais de natureza sancionatória.
Basta, para deste modo concluir, a leitura da epígrafe do dito artigo: “Garantias de Processo Criminal”, e a letra dos seus vários números. Logo no primeiro se refere “o processo criminal”; no segundo fala-se no
“arguido”; no quinto volta a referir-se “o processo criminal”; no sexto alude-se ao arguido ou acusado, no sétimo, ao “ofendido”; por último, no décimo, garantem-se ao “arguido nos processos de contra-ordenação e em quaisquer processos sancionatórios” direitos de audiência e de defesa.
Ora, do que se trata nos artigos 82º e 84º do CIVA, não é de regular um processo de natureza sancionatória, mas de estabelecer em que casos e por que meios pode a Administração Fiscal repor a realidade da situação tributária do contribuinte em sede de IVA.
De todo o modo, não se vê aonde se estabeleça, nos falados artigos do CIVA, qualquer “presunção de comportamento culposo”. Antes, o que ali se trata é de como actuar quando se constata, fundamentadamente, haver fuga ao imposto. A presunção de que pode falar-se refere-se, tão só, ao modo de calcular o volume de negócios quando os elementos apresentados pelo contribuinte o não revelem. Não se trata, pois, de uma presunção de culpa, mas de conjecturar, na falta de dados fiáveis exactos, e a partir de regras técnicas e da experiência, um dado volume de negócios, diferente do apresentado pelo contribuinte, que não se apresenta fiável.
Acresce que o art.º 84º do CIVA regula os meios de defesa do contribuinte, pelo que mal se percebe como pode ofender o princípio constitucional que ao arguido garante os direitos de audiência e defesa”.
B – A fundamentação
5. As questões decidendas
São as de saber se as normas dos artigos 82º e 84º do CIVA, na sua versão originária, vigente à data dos factos tributários (1986), são inconstitucionais por colidirem com o disposto no n.º 2 do art.º 32º da CRP.
Nas alegações para este Tribunal a recorrente coloca ainda a questão de se salvar a inconstitucionalidade de tais normas, mediante a sua interpretação em conformidade com a Constituição, “tanto mais que, consubstanciando o sobredito normativo um direito fundamental dos cidadãos, sempre implicará a sua interpretação em termos mais favoráveis, devendo prevalecer aquela que, conforme os casos, restrinja menos tal direito e lhe dê maior protecção”.
6. As normas cuja constitucionalidade se controverte tinham ao tempo dos factos tributários (ano de 1986) a seguinte redacção.
Artigo 82º
(Correcção das liquidações. Liquidação adicional)
1 - O chefe da repartição de finanças competente procederá à rectificação das declarações dos sujeitos passivos quando fundamentadamente considere que nelas figura um imposto inferior ou uma dedução superior aos devidos, liquidando-se adicionalmente a diferença.
2 - As inexactidões ou omissões praticadas nas declarações poderão resultar directamente do seu conteúdo, do confronto com as declarações respeitantes a períodos de imposto anteriores ou com outros elementos de que se disponha, designadamente os relativos à contribuição industrial ou ao imposto profissional.
3 - As inexactidões ou omissões poderão igualmente ser constatadas em visita de fiscalização efectuada nas instalações do sujeito passivo, através de exame dos seus elementos de escrita, bem como da verificação das existências físicas do estabelecimento.
4 - Se for demonstrado, sem margem para dúvidas, que foram praticadas omissões ou inexactidões no registo e na declaração a que se referem, respectivamente, a alínea a) do n.º 2 do art.º 65.º e a alínea c) do n.º 1 do art.º 67º, proceder-se-á à tributação do ano em causa com base nas operações que o sujeito passivo presumivelmente efectuou, sem ter em conta o disposto no n.º 1 do art.º 60º.
Artigo 84º
(Reclamação da rectificação das declarações)
1 - Quando se proceder a rectificação de declarações ou a correcção da liquidação oficiosa, de acordo com os artigos 82.º, 83.º e 83.º-A, e houver necessidade de recorrer a presunções ou estimativas por carência de elementos que permitam apurar claramente o imposto, poderão os contribuintes ou a Fazenda Nacional, representada pelo Ministério Público, reclamar para o chefe da repartição de finanças competente nos termos das disposições seguintes.
2 - As reclamações têm efeito suspensivo e devem ser apresentadas no prazo de quinze dias a contar da notificação a que se refere o artigo 27.º por meio de requerimento em que se aleguem os respectivos fundamentos, sob pena de serem liminarmente rejeitadas.
3 - Depois de informadas pelos serviços de fiscalização, serão as reclamações apreciadas pelo chefe de repartição de finanças competente, a quem incumbirá, no prazo de vinte dias a contar da sua apresentação: a) Se considerar que são no todo ou em parte procedentes, rever a decisão, fixando novos montantes de imposto. b) Se entender que as mesmas não são procedentes, remetê-las às comissões distritais de revisão, a que se referem os art.os 70º do Código da Contribuição Industrial e 15º do Código do Imposto Profissional, acompanhadas do seu parecer e dos demais elementos de que disponha para sua apreciação.
4 - Da decisão proferida nos termos da alínea a) do número anterior que só em parte atenda a reclamação do contribuinte ou no todo ou em parte atenda a da Fazenda Nacional será aquele notificado por carta ou postal registados com aviso de recepção, considerando-se a notificação feita no dia em que for assinado o aviso.
5 - Se o contribuinte não aceitar a decisão, deverá comunicá-lo, por escrito, nos 5 dias imediatos ao da notificação, ao chefe da repartição de finanças competente, que, no prazo de 5 dias a contar da recepção, enviará a reclamação acompanhada dos elementos de que disponha para a sua apreciação às comissões referidas na alínea b) do n.º 3, a fim de ser por estas decidida no prazo de 15 dias.
6 - Sendo reclamante a Fazenda Nacional, o contribuinte será notificado para alegar dentro de 5 dias o que julgar conveniente, entregando-se-lhe cópia da reclamação.
Poderá aqui anotar-se que, não obstante estes preceitos terem sofrido profundas alterações, motivadas, umas vezes, por virtude do funcionamento eficaz do próprio sistema do IVA e, outras vezes, demandadas pela posterior entrada em vigor do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) e do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (ambos em 1989) e, em 1999, em consequência, ainda, da entrada em vigor da Lei Geral Tributária, sempre poderiam continuar a colocar-se as mesmas questões, segundo a lógica que
é seguida pela recorrente.
7. Como se infere do acima relatado, o acórdão recorrido entendeu, em síntese, que os transcritos preceitos do CIVA não violam o n.º 2 do art.º 32º da Constituição em virtude de o mesmo visar o processo criminal e que só por força da extensão prevista no seu n.º 10, e limitada aos efeitos neste previstos, é que o preceito atinge “todas as espécies processuais de natureza sancionatória”. Por outro lado - argumenta o mesmo acórdão -, as normas cuja inconstitucionalidade se suscita na causa não regulam qualquer processo dessa natureza, mas antes estabelecem em que casos e por que meios pode a Administração Fiscal repor a realidade da situação tributária, nos casos em que se configura uma situação de fuga ao imposto e que as presunções de que os artigos falam são tão só um modo de calcular o volume de negócios.
8. Mesmo deixando de parte a questão de saber que tipo de garantias do processo criminal, para além das expressamente previstas no n.º 10 do art.º 32º da CRP - dos direitos de audiência e de defesa -, serão extensíveis aos demais processos sancionatórios dentre as enunciadas nos números anteriores do mesmo artigo, é evidente que as normas cuja constitucionalidade se discute não respeitam a qualquer dessas espécies de processos. Ao falarem dos processos sancionatórios abrangidos pelo art.º 32º da CRP, tanto a doutrina como a jurisprudência referem-se, particularmente, ao processo criminal, ao processo de transgressão (hoje constitucionalmente esquecido como tipo nominal), ao processo contra-ordenacional e ao processo disciplinar, mormente o de natureza laboral. O escopo de qualquer destas espécies de processos é, essencialmente, o da aplicação de uma sanção que se encontra cominada para a prática do ilícito respectivo, tipicamente enunciado na norma legal para o caso dos factos integrantes do tipo legal virem a ser dados como provados. Mas este momento é apenas um momento nuclear do processo, que tanto pode vir a acontecer como não, dependendo de virem a ser ou não dados por provados os factos pertinentes do respectivo tipo de ilícito enunciado na lei.
9. Por isso, para realizar quer o direito criminal, quer os demais tipos sancionatórios, torna-se absolutamente necessária a definição por parte do legislador de um processo adequado para aferir da existência dos factos com relevo no respectivo ilícito e que simultaneamente enuncie o catálogo das garantias de defesa do sujeito do respectivo processo e dos poderes e meios de investigação que são concedidos às entidades que procedem à sua instrução. Esse processo é - diga-se - constituído por um entrelaçado de actos, sequencial e funcionalmente, adequados para surpreender os factos pertinentes, segundo o respectivo ilícito, para poder ser aplicada a sanção prevista na lei.
É no art.º 32º da CRP que se estabelece como que a “constituição processual criminal”, garantindo a concessão de “todas as garantias de defesa” em caso de processo criminal. E como dizem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira
(Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, págs 212), a consagração de “todas as garantias de defesa engloba indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação”. Mas para além desta cláusula geral englobadora desses direitos e instrumentos, os números seguintes do artigo explicitam nominalmente várias dessas garantias. O n.º 2 do art.º 32º do CRP, segundo cujos termos «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação...», consagra uma das mais relevantes garantias do processo criminal cuja axiologia assenta no reconhecimento do princípio da dignidade da pessoa humana e dos seus postulados enquanto cidadão: o direito de ser tido como homem livre e com igual dignidade à dos demais cidadãos, perante a lei.
Independentemente de estarmos perante um princípio susceptível de ser aplicado nos demais ilícitos sancionatórios, é seguro que o mesmo afirma um efeito jurídico material que tem que ver com o direito criminal, mas cuja eficácia se afirma apenas no âmbito da existência em concreto de um processo criminal, por só então a hipótese do seu preenchimento estar colocada.
10. O princípio in dubio pro reo tem a natureza de um princípio próprio do procedimento criminal, mas não deixa de assentar, em parte, nos mesmos princípios axiológicos em que se baseia a presunção de inocência do arguido em processo criminal, podendo ver-se como sendo uma extensão que surge articulada com a axiologia fundamentante do princípio da presunção de inocência
(cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, pp. 203). O seu efeito jurídico próprio consubstancia-se na obrigação do juiz de solver as dúvidas sobre os factos sujeitos ao seu julgamento a favor do arguido.
O princípio in dubio pro reo surgiu, pois, como uma regra para resolver, em sede de julgamento, a tensão entre o onus probandi decorrente do princípio da investigação e a dúvida sobre a existência dos factos, no domínio do direito criminal.
Dado comungarem das características próprias do ilícito criminal, o princípio sempre foi afirmado no domínio das transgressões.
Mas a sua eficácia vale igualmente no direito contra-ordenacional, não obstante a sua qualificação de direito sancionatório de natureza administrativa, quer porque também aqui se convoca o princípio da investigação e este solicitar, também, correspondentemente, a aplicação do princípio in dubio pro reo, quer porque o mesmo se inclui no direito subsidiário a aplicar no regime do ilícito de mera ordenação social a que se refere o art.º 32º do DL. n.º433/82, de 27 de Outubro.
O mesmo se poderá afirmar no domínio do ilícito laboral. Também nesta sede “têm aplicação tendencial as regras processuais penais: valerá a regra de que o trabalhador está inocente até que se demonstre qualquer infracção” (cfr. António Menezes Cordeiro, Manual do Direito do Trabalho, pp.
758 e 70 e ss.), havendo a prova, em caso de dúvida, de valer segundo o favor laboratoris.
11. Nas alegações para o STA, a recorrente limita a questão da inconstitucionalidade dos artigos 82.º e 84.º do CIVA enquanto integrando o ilícito contra-ordenacional fiscal. Assim sendo, apenas haveria que conhecer da questão da aplicação do princípio in dubio pro reo relativamente a esse tipo de ilícito, o qual foi introduzido no nosso regime jurídico, após uma primeira tentativa do DL. n.º 232/79, de 24 de Julho, pelo DL. n.º 433/82, de 27 de Outubro. Mas, o que é certo é que o direito tributário não tinha recebido, então, ainda, esse tipo de ilícito das contra-ordenações. Tal só aconteceu, no domínio do direito aduaneiro, pela mão do DL n.º 376-A/89, de 25 de Outubro, que aprovou o Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras e, no domínio do direito tributário não aduaneiro, pelo DL n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras. Ora, porque a liquidação adicional do IVA se refere a factos tributários que ocorreram no ano de 1986, também a determinação do tipo de ilícito sancionatório que vigorava e a aplicação ou não do princípio do direito processual criminal in dubio pro reo deverá ser apurada tendo em função a mesma data. Ao tempo dos factos, os ilícitos fiscais não aduaneiros - categoria em que este se integrava - eram regulados em cada um dos códigos que regiam cada tipo cedular de imposto, estando inseridos geralmente no capítulo final e sob a designação vulgar de “Penalidades”. As infracções fiscais tinham a natureza de transgressões fiscais e não de contra-ordenações fiscais a cujo ilícito se atribuía, neste caso, natureza administrativa (cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, 2001, pp. 135 e ss. em que fala da evolução do direito penal administrativo ao direito de mera ordenação social: das contravenções às contra-ordenações). Assim se passava no caso do CIVA, cujo capítulo VII, na redacção ao tempo, dispunha sobre as “Penalidades”. Já as transgressões fiscais eram consideradas como integrando o direito criminal
e obedeciam a todos os seus princípios gerais, como os do nullum crimen sine lege, nulla poena sine culpa e nullum crimen sine actione. O processo era regulado pelo Código de Processo das Contribuições e Impostos, do art.º 103º ao art.º 143º, e embora não o afirmasse expressamente, sempre se teriam de ver nele aceites, por força da remissão prevista no seu art.º 1.º, n.º
1, al. c), os princípios da presunção da inocência até ao trânsito em julgado da sentença condenatória (sempre da competência de um juiz) e do in dubio pro reo. Mas não obstante a diversidade dos ilícitos sob cuja vigência os factos ocorreram e a circunstância de a recorrente contrastar a inconstitucionalidade dos referidos preceitos e a aplicabilidade do princípio in dubio pro reo apenas relativamente às contra-ordenações - e não às transgressões - cujo tipo de ilícito os factos preenchiam - o certo é que não pode este Tribunal deixar de conhecer da questão. É que o art.º 3º do RJIFNA, aprovado pelo DL. n.º 20-A/89, de 15/01, procedeu à equiparação de todas as transgressões a contra-ordenações, mesmo naqueles casos de inexistência de paralelismo entre os seus elementos constitutivos. Ora, as disposições dos art.os 82º e 84º do CIVA têm natureza simplesmente procedimental e por escopo determinar a verdadeira situação tributária do sujeito passivo perante o Fisco. Consciente das tendências evasivas dos contribuintes, o legislador estruturou nos art.ºs 82º a 84º do CIVA um procedimento especial do controlo possível da evasão fiscal, voluntariamente praticada ou resultante apenas de erradas práticas contabilísticas seguidas pelos contribuintes no apuramento do imposto, dado lhes caber a autoliquidação do imposto cobrado nos outputs e a entrega nos cofres dos Estado da diferença entre esse imposto e o suportado nos in puts. Daí que se atribua ao chefe de repartição de finanças a competência de “proceder
à rectificação das declarações dos sujeitos passivos quando fundadamente considere que nelas figura um imposto inferior ou uma dedução superior aos devidos, apurando adicionalmente a diferença”, tendo a doutrina do Supremo Tribunal Administrativo entendido estar-se perante um juízo fundado não só quando essa conclusão possa ser tirada do discurso externado, segundo os princípios que regem o cumprimento do dever de fundamentação, mas também, cumulativamente, quando, numa prognose póstuma e objectiva sobre a veracidade dos mesmos elementos que foram valorados pela autoridade administrativa fiscal, for possível ao julgador formar uma convicção de sentido idêntico ao inferido pela administração (cfr., a título de exemplo, o Acórdão de 17/04/2002, proferido no processo 26 635, que foi seguido por muitos outros posteriores). E os números seguintes do artigo precisam em que termos é que poderão ser detectadas as omissões e inexactidões, responsáveis pela diferença de imposto, ao mesmo tempo que apontam alguns dos instrumentos de investigação a levar a cabo, como o exame das declarações, visitas de fiscalização, exame à escrita, verificação física das existências e outros elementos de que se disponha. No n.º
4 prevê-se um regime especial para o caso das omissões ou inexactidões respeitarem aos retalhistas sujeitos a regime especial. O procedimento tributário nem sequer parte de um pressuposto de ponderação probatória análogo ao que ocorre no processo penal, pois ali arranca, desde logo, de um juízo fundado ou de certeza quanto à existência dos pressupostos do recurso aos métodos indirectos de determinação da matéria colectável. Em todo o caso, o que se visa no preceito é a quantificação do imposto devido ao Estado segundo as regras de incidência subjectiva e objectiva e o regime de dedução legalmente enunciado nos art.ºs 19º e ss. do CIVA. O artigo em causa limita-se a definir regras de procedimento administrativo consideradas idóneas para apurar a situação tributária do sujeito passivo do IVA, não procedendo à definição de qualquer ilícito sancionatório. E o mesmo se dirá relativamente ao art.º 84º do CIVA. Também não se define, aí, qualquer tipo de ilícito. Na verdade, o preceito não procede à definição típica de qualquer facto ilícito punível a título de culpa (dolo ou negligência) com qualquer pena de multa, como seria o caso das transgressões, ou de coimas a quando da entrada em vigor do RJIFNA, para o caso das contra-ordenações. Ciente de que a rectificação das declarações e a liquidação oficiosa, levada a cabo de acordo com os art.os 82º, 83º e 83º-A, todos do CIVA, poderá levar à necessidade do recurso a presunções e estimativas, por carência de elementos que permitam apurar claramente o imposto, e de que a determinação do imposto, assim efectuada, poderá transportar sempre alguma álea de erro, o legislador estabeleceu nos diversos números do preceito do art.º 84.º do mesmo CIVA todo um esquema de desenvolvimento de um contraditório a ter lugar entre a administração tributária e o contribuinte, podendo o diferendo acabar, em sede administrativa, por ser decidido por uma Comissão Distrital, ao tempo, constituída nos termos previstos no Código da Contribuição Industrial e no Código do Imposto Profissional. O artigo estrutura, assim, um procedimento de colaboração entre a administração e o contribuinte vocacionado para resolver, em sede administrativa, o diferendo que exista entre ambos quanto ao montante da dívida tributária do sujeito passivo. Situando-nos na sede de procedimento administrativo de liquidação do imposto, e não tendo este, por definição, natureza sancionatória, torna-se evidente não poder ter aqui aplicação um princípio como o in dubio pro reo que pressupõe, no mínimo, a existência de um ilícito, penal, transgressional ou contra-ordenacional que é suportado pelos valores da dignidade da pessoa humana e que decorre também da regra ético-política de que devem recair sobre quem tem o poder da investigação as consequências de não ter conseguido fazer a prova dos factos integradores do respectivo ilícito. A única questão que nesta sede se poderia suscitar seria a de saber se, face ao disposto no art.º 106º do então Código de Processo das Contribuições e Impostos, segundo o qual “a sentença proferida em processo de impugnação constituirá caso julgado, para o processo de transgressão, relativamente à questão nele decidida”, não seria de adoptar para o processo de impugnação judicial, mormente quando a liquidação advenha de presunções ou estimativas, em vez regra da sujeição à observância das regras próprias do contencioso administrativo, também o princípio in dubio pro reo. Mas essa é uma questão que não vem colocada e por isso dela se não conhece. Podemos, assim, concluir que os preceitos dos art.os 82º e 84º do CIVA não afrontam o comando do art.º 32º, n.º 2 da nossa Lei Fundamental relativamente ao corolário que dele se extrai de que nos processos criminais, processos de transgressão e processos de contra-ordenação vigora, na apreciação dos factos, em julgamento, e na dúvida sobre a sua existência, o princípio in dubio pro reo. Consequentemente, tais preceitos não são inconstitucionais. Não sendo inconstitucionais, não pode o tribunal curar de saber se os mesmos seriam passíveis de uma outra interpretação igualmente conforme à Constituição e que salvaguardasse melhor os interesses da ora recorrente, como a mesma pretende, dado a interpretação cuja constitucionalidade se sindica constituir, nos recursos da al. b) do n.º 1 do art.º 70º da LTC, e numa tal situação, um pressuposto específico (cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6ª edição, pp. 950) que este Tribunal tem de respeitar.
C – A decisão
12. Destarte, atento tudo o exposto, este Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucionais as normas dos art.os 82º e 84º do CIVA na versão originária. b) Negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente com taxa de justiça de 15 UC.
Lisboa, 27 de Maio de 2003- Benjamim Rodrigues Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos