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Proc. n.º 171/03 Acórdão nº 281/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por decisão sumária de fls. 519 e seguintes, não se tomou conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal pelo A. (que sucedeu ao ........), pelos seguintes fundamentos:
“[...]
6. Constitui pressuposto processual do recurso previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – aquele que foi interposto pelo recorrente –a recusa de aplicação, na decisão recorrida, de uma norma, com fundamento na sua inconstitucionalidade. Assim sendo, para que o Tribunal Constitucional possa conhecer do objecto do recurso, nos casos em que este é interposto ao abrigo da referida alínea a), não basta que a decisão recorrida não tenha aplicado uma determinada norma. É necessário que tal norma não tenha sido aplicada, por se ter entendido que ela era inconstitucional.
7. No presente recurso, verifica-se que a decisão recorrida (supra, 4.) – que remete para a sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Felgueiras (supra, 2.)
– não aplicou as normas dos artigos 24º, n.º 5, e 26º, n.º 1, do Código das Expropriações aprovado pelo Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro, isto é, as normas cuja conformidade constitucional o recorrente sustenta e que pretende que o Tribunal Constitucional aprecie (supra, 5.). O referido artigo 24º, n.º 5, determina que, para efeitos da aplicação do mesmo Código, «é equiparado a solo para outros fins o solo que, por lei ou regulamento, não possa ser utilizado na construção»; por seu turno, o mencionado artigo 26º, n.º 1, estabelece os critérios para o cálculo do valor do «solo para outros fins». Ora, como se disse, a decisão recorrida não aplicou estes dois preceitos. Importa, todavia, determinar se os não aplicou por considerar que as normas neles contidas são inconstitucionais ou por outro motivo. Percorrendo a decisão recorrida (ou melhor, a sentença para a qual aquela remete), verifica-se, antes de mais, que nela se começou por analisar a norma do artigo 24º, n.º 2, alínea a), do Código das Expropriações de 1991, que estabelece critérios para a classificação de um terreno como solo apto para a construção. Considerou-se aplicável tal norma, não só pelo seu teor literal, como também pelo elemento de interpretação fornecido pelo artigo 25º, n.º s 2 e 3, do mesmo Código. Posteriormente, discute-se na decisão a aplicabilidade do critério consagrado no artigo 24º, n.º 2, alínea b), do Código das Expropriações de 1991 – preceito respeitante à classificação de um solo como apto para a construção –, tendo-se concluído afirmativamente. De seguida, considera-se na decisão que a conclusão a que se chegara – a de que a parcela expropriada devia ser classificada como solo apto para a construção – saía reforçada pela leitura do artigo 62º, n.º 2, da Constituição, que impõe uma justa indemnização nos casos de expropriação. Este preceito constitucional estaria, aliás, na origem da solução consagrada no artigo 26º, n.º 2, do Código das Expropriações, que, por analogia, devia fornecer o critério de cálculo do valor do solo, no caso dos autos. Finalmente, refere-se no acórdão recorrido que a doutrina sufragada no acórdão n.º 20/2000, do Tribunal Constitucional, não conduz a interpretação oposta do artigo 24º, n.º 5, do Código das Expropriações de 1991 (o preceito que, segundo o recorrente teria sido desaplicado, por inconstitucional). O fundamento da não aplicação, na decisão recorrida, das normas dos artigos 24º, n.º 5, e 26º, n.º 1, do Código das Expropriações de 1991, não residiu na consideração de tais normas como inconstitucionais. Tal asserção só seria sustentável se, na decisão recorrida, se tivesse concebido que tais normas eram potencialmente aplicáveis ao caso dos autos e, depois, se tivesse decidido rejeitar tal aplicação, por imperativos constitucionais. Mas não foi isso o que sucedeu. Não só as normas que, na decisão recorrida, se consideraram potencialmente aplicáveis foram outras – concretamente, as dos artigos 24º, n.º 2, e 26º, n.º
2, do Código das Expropriações de 1991 – como também a não aplicação das normas dos artigos 24º, n.º 5, e 26º, n.º 1, do Código das Expropriações de 1991 se ficou primacialmente a dever ao normal recurso aos elementos literal e sistemático de interpretação da lei (a fls. 395 alude-se, aliás, à «sistemática global» do Código, para justificar a não classificação do solo expropriado como
«solo para outros fins»). Em conclusão: a não aplicação no caso dos autos da norma do n.º 5 do artigo 24º do Código das Expropriações de 1991 (norma que, como ficou dito, equipara a solo para outros fins o solo que, por lei ou regulamento, não possa ser utilizado na construção) – e, consequentemente, a não aplicação do artigo 26º, n.º 1, do mesmo Código – decorre inevitavelmente da qualificação do terreno como «solo apto para a construção». Na verdade, se o solo for qualificado como «apto para a construção» (nos termos de alguma das alíneas do n.º 2 do artigo 24º do Código das Expropriações), não pode simultaneamente ser abrangido pela disposição que
«equipara a solo para outros fins o solo que, por lei ou regulamento, não possa ser utilizado na construção» (nos termos do n.º 5 do mesmo artigo 24º). Não pode, pois, conhecer-se do objecto do presente recurso, por não estar verificado um dos seus pressupostos processuais – a recusa de aplicação, na decisão recorrida, das normas cuja apreciação o recorrente pretende, com fundamento na sua inconstitucionalidade – sendo certo que ao Tribunal Constitucional não compete sindicar a classificação do terreno expropriado como
«solo apto para a construção» ou como «solo para outros fins».
[...].”
2. Desta decisão reclamou o A. para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 534 e seguintes), aduzindo em síntese os seguintes argumentos:
a) No acórdão recorrido – que remete para a sentença proferida no Tribunal Judicial de Felgueiras – considerou-se como potencialmente aplicável a norma do n.º 5 do artigo 24º do Código das Expropriações de 1991, contrariamente ao que se sustenta na decisão sumária reclamada; b) O apelo feito, na decisão recorrida, ao conceito constitucional de justa indemnização tem subjacente o entendimento de que a justa indemnização não se alcançaria se se aplicasse a referida norma ao caso dos autos (aplicação que seria possível à luz da doutrina do acórdão do Tribunal Constitucional n.º
20/2000); c) A decisão recorrida, pelo menos, recusou implicitamente a aplicação da norma do n.º 5 do artigo 24º do Código das Expropriações de 1991, com fundamento na sua inconstitucionalidade, sendo que era absolutamente idêntico ao dos autos o caso que deu origem ao acórdão do Tribunal Constitucional n.º 219/01 e, neste acórdão, conheceu-se do objecto do recurso; d) Tanto no caso dos autos, como no caso de que emergiu o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 219/01, decidiu-se classificar e avaliar o solo integrado em Reserva Agrícola Nacional como apto para construção com recurso à aplicação analógica do disposto no n.º 2 do artigo 26º do Código das Expropriações de 1991.
Os recorridos não responderam à reclamação (fls. 549).
Cumpre apreciar.
II
3. Na decisão sumária ora reclamada (supra, 1.) expuseram-se exaustivamente as razões pelas quais se considerou que o fundamento da recusa de aplicação da norma do n.º 5 do artigo 24º do Código das Expropriações de 1991
(e, consequentemente, da norma do n.º 1 do artigo 26º do mesmo Código) não consistiu num juízo de inconstitucionalidade destas normas, mas no normal funcionamento das regras de interpretação de textos legais.
O reclamante contesta este entendimento, transcrevendo trechos da sentença para a qual remete o acórdão recorrido, ilustrativos da ponderação de princípios constitucionais. Com tais transcrições, pretende demonstrar que a recusa de aplicação das normas que pretende ver apreciadas pelo Tribunal Constitucional se deveu a um juízo de inconstitucionalidade das mesmas.
Esquece, porém, o reclamante que na decisão sumária reclamada não se olvidou a ponderação, pelo tribunal recorrido, de princípios constitucionais; tal abordagem da questão era inevitável num processo em que estava em causa a fixação da indemnização a atribuir aos expropriados. Simplesmente, também não se olvidou que, antes da ponderação de tais princípios, o tribunal recorrido já havia concluído no sentido da aplicação da norma do artigo 24º, n.º 2, alínea a), do Código das Expropriações de 1991 e da não aplicação das normas ora questionadas, unicamente através do recurso aos elementos literal e sistemático de interpretação da lei.
Dito de outro modo, ao reclamante competia demonstrar que o funcionamento das normais regras de interpretação da lei não havia sido decisivo para a conclusão a que chegou o tribunal recorrido. Tratar-se-ia certamente de demonstração difícil – atendendo a que a sentença para a qual remete o Tribunal da Relação de Guimarães expressamente faz alusão a tais regras –, mas ainda assim de demonstração imprescindível. É que, sem ela, não resultam destruídos os fundamentos da decisão sumária reclamada.
Improcedem, assim, os dois primeiros argumentos do reclamante
(supra, 2., a) e b)).
No que se refere aos dois últimos argumentos, não tem também razão o reclamante quando afirma que o caso dos autos é absolutamente idêntico a um outro que gerou uma pronúncia no sentido do conhecimento do objecto do recurso
(precisamente, a constante do acórdão deste Tribunal n.º 219/01, de 22 de Maio, publicado no Diário da República, II Série, n.º 155, de 6 de Julho de 2001, p.
11248).
Como é evidente, na decisão sumária ora reclamada não se rejeitou a possibilidade de conhecimento do objecto do recurso por não ter sido expressa a recusa de aplicação de normas com fundamento na sua inconstitucionalidade. A verdade é que, contrariamente ao que se verificava no processo no qual foi proferido o mencionado acórdão n.º 219/01, no presente processo não houve recusa
(expressa ou implícita) de aplicação de normas com esse fundamento.
Se bem se atentar no relatório deste acórdão n.º 219/01, verifica-se que nele não se faz referência à circunstância de a decisão então recorrida ter concluído no sentido da não aplicação das normas do n.º 5 do artigo 24º e do n.º
1 do artigo 26º do Código das Expropriações de 1991 através do recurso às regras gerais de interpretação da lei: pelo contrário, considerou-se em tal acórdão que a decisão então recorrida assentara no confronto entre estes preceitos e princípios constitucionais.
Assim sendo, não é possível extrair de tal acórdão do Tribunal Constitucional qualquer argumento no sentido do conhecimento do objecto do presente recurso: diversamente do que aí se verificava, um juízo de não inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional no presente processo não alteraria o sentido da decisão recorrida, justamente porque o seu fundamento é estranho a considerações dessa natureza.
E não cabe obviamente na competência do Tribunal Constitucional sindicar a classificação do terreno expropriado como “solo apto para a construção” ou como “solo para outros fins”.
Não existem, pois, motivos para alterar a decisão sumária reclamada.
III
4. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação, mantendo-se a decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso.
Lisboa, 29 de Maio de 2003 Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos