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Processo nº 561/2003
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A fls. foi proferida a seguinte decisão sumária:
«1. Pronunciado, pela decisão de fls. 12, “pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, n.º 2, als. b), despacho) e i) ambos do Cód. Penal”, A. veio, “nos termos dos arts. 37 e ss do Cód. Proc. Penal” requerer o desaforamento do processo do Tribunal Judicial da Comarca de B. para o Tribunal de Círculo C.. Para o efeito, alegou, em síntese, que se sentia constrangido ao ser julgado no Tribunal da Comarca de B. porque a vítima do crime pela qual foi pronunciado, sua mulher, era funcionária do referido Tribunal, o mesmo sucedendo em relação a uma das testemunhas de acusação, irmã da vítima, e a uma das testemunhas do pedido de indemnização cível, e ainda porque os factos que lhe são imputados ocorreram na mesma comarca de B.. Em seu entender, poderia assim ser perturbado “o desenvolvimento do processo”, sendo inibida ou afectada “a liberdade de determinação”, o que justificaria o desaforamento, cujo deferimento solicitou “ao abrigo do art. 37 do C.P.P.”.
2. O pedido foi, porém, indeferido, pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 39. Considerando ter sido o mesmo formulado ao abrigo da alínea c) do citado artigo 37º, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que carecia manifestamente de fundamento legal, nos seguintes termos:
“É (...) pressuposto da deslocação de competência que graves situações locais idóneas a perturbar o desenvolvimento do processo determinem um grave comprometimento da liberdade de determinação dos participantes no processo. Ora o requerente não invoca qualquer situação local idónea que perturbe o desenvolvimento do processo, nem põe em causa, ao fim e ao cabo, a imparcialidade dos magistrados que constituirão o tribunal . Aliás sucintamente, diz que se sentirá constrangido se for julgado no Tribunal de B., onde sua falecida mulher fora funcionária, e onde uma irmã da vítima, indicada como testemunha de acusação, ainda o é, bem como uma testemunha do pedido de indemnização. Qualquer que seja o tribunal onde venha ser julgado, sempre estas duas testemunhas irão comparecer. Como já bem salienta o Senhor Juiz – fls. 26 – o arguido poderá não prestar declarações, e se as prestar será na ausência de qualquer testemunha, uma vez que será ouvido em primeiro lugar. Depois, aquando da audição das testemunhas referidas, sempre se poderá aplicar o disposto no art. 352º, do C.P.Penal, isto
é, o arguido poderá ser afastado da sala de audiências na altura do depoimento das mesmas. Por outro lado, e como também já vem alegado no aludido parecer, a instrução requerida pelo arguido teve lugar no Tribunal de B. e não surgiu qualquer situação que tenha perturbado a ordem das diligências.
É certo que será um tanto diferente, pois estamos na parte decisiva do processo. Mas como se disse acima, a causa invocada será apenas um constrangimento por parte do arguido, o que não é, de modo algum, fundamento de um pedido de desaforamento”.
3. Pelo requerimento de fls. 47, o arguido veio requerer a aclaração deste acórdão, solicitando que o Supremo Tribunal de Justiça “Como garantia de defesa e por se sentir constrangido, afectado, inibido no Tribunal a quo,” esclarecesse “se tal fundamento – o mesmo consignado no art. 37-C) do C.P.P. está ou não previsto na Lei adjectiva pois é este e só este e apenas este o motivo invocado no pedido de desaforamento e não os outros considerandos expendidos no Acórdão proferido ...”. E acrescentou que se esse não fosse o entendimento a dar ao preceito,
“incorrer-se-á em hermenêutica que é manifestamente inconstitucional... que nunca acolheria tal motivo, incorrendo em violação da Lei Fundamental, por contrária ao disposto nos arts. 32-1 e 202-2 despacho Constituição”. O pedido de aclaração foi indeferido, pelo acórdão de fls. 52.
4. Veio então A. recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo a apreciação da “inconstitucionalidade do art. 37-C do CPP na hermenêutica expendida” pelo Supremo Tribunal de Justiça , “pois que o Princípio do Juiz Natural não impede a remoção por competência ou desaforamento cfr. Art.
32º-1 da Lei Fundamental”. Considerou ainda que entender “que o constrangimento/liberdade de determinação do arguido não justificará nunca o desaforamento do processo” viola o artigo
202º, n.º 2 da Constituição e o n.º 1 do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82).
5. O Tribunal Constitucional não pode, porém, conhecer do objecto do presente recurso. O conhecimento do objecto de um recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas interposto ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, como é o caso, pressupõe que se pretende que o Tribunal Constitucional julgue inconstitucional uma norma, ou uma sua interpretação, cuja inconstitucionalidade foi “suscitada durante o processo”
(citada al. b) do nº 1 do artigo 70º). Ora a verdade é não se pode considerar, no presente recurso, que a inconstitucionalidade tenha sido oportunamente invocada. Como a lei exige e o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, este requisito da invocação da inconstitucionalidade de uma norma ou de uma sua interpretação durante o processo traduz-se na necessidade de que tal questão seja colocada “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (nº 2 do artigo 72º da mesma lei), proporcionando-lhe desta forma a oportunidade de a apreciar. Só nos casos excepcionais e anómalos, em que o recorrente não dispôs processualmente dessa possibilidade, é que será admissível a arguição em momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos deste Tribunal com os nºs
62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1994). Ora o pedido de aclaração da decisão recorrida não é, em princípio – e não é, seguramente, neste caso –, o momento idóneo para que o recorrente coloque perante o tribunal recorrido a questão da inconstitucionalidade. Como o Tribunal Constitucional tem também repetidamente afirmado, salvo em casos excepcionais – que aqui não ocorrem –, o requerimento de arguição de nulidade ou de pedido de aclaração da decisão recorrida não é momento processualmente adequado para se suscitar a inconstitucionalidade, porque “a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui, obviamente, um erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura ou ambígua”, de forma a permitir ao tribunal a quo dela conhecer, “por aplicação do disposto no nº 1 do artigo 666º do Código de Processo Civil” (Acórdão nº 62/85 cit.). Carece, assim, de poder jurisdicional para conhecer da questão. A terminar, observa-se ainda que, tendo em conta o motivo apresentado pelo recorrente ao requerer o desaforamento – o seu próprio constrangimento, em síntese –, não lhe é possível sustentar ter sido surpreendido com uma interpretação da alínea c) do artigo 37º do Código de Processo Penal que justifique a dispensa de invocar a inconstitucionalidade “durante o processo”, nos termos já indicados.
7. Estão, pois, reunidas as condições para que se proceda à emissão da decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82.
Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 ucs.»
2. Inconformado, o recorrente veio reclamar para o Presidente do Tribunal Constitucional, considerando ter sido oportunamente suscitada a inconstitucionalidade. Em primeiro lugar, porque “foi arguida DURANTE O PROCESSO... e o Processo ‘dura’ até ao trânsito em julgado!!!” Em segundo lugar, porque “o recorrente desconhecia a Decisão a ser proferir em I Instância, pois não possui artes divinatórias nem contacto com os astros”. Considera, ainda, que o Supremo Tribunal de Justiça admitiu o recurso que interpôs para o Tribunal Constitucional, e que “a Decisão Sumária proferida é uma decisão-surpresa, segundo parece, vedada pelo ordenamento jurídico vigente... Tal decisão restringe os direitos do arguido e o PRINCÍPIO DA DEFESA que este Colendo Tribunal deveria observar – art. 32º - 1 da Lei Fundamental.” Conclui no sentido de que a decisão sumária deve ser revogada, “assim se fazendo a mais lídima justiça!”.
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação, que se lhe afigura “manifestamente infundada” e
“apenas revelando que o reclamante não teve na devida conta a jurisprudência uniforme e reiterada acerca dos pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82”, “nomeadamente o ónus de suscitação da questão de constitucionalidade – que seja previsível face ao evoluir do processo – antes da prolação da decisão recorrida – e não em intempestivos e irrelevantes incidentes pós-decisórios”. Os demais recorridos, D. e outra, devidamente notificados, não se pronunciaram.
4. Esta reclamação – que, desde logo, se vai tratar como uma reclamação para a conferência, prevista no n.º 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, porque é essa a via de reacção contra uma decisão sumária – ignora, como é manifesto, o regime aplicável aos recursos de constitucionalidade, sendo manifestamente improcedente.
Em primeiro lugar, porque suscitar uma inconstitucionalidade
“durante o processo”, como é exigido pela al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, não significa suscitá-la até ao trânsito em julgado da decisão que lhe põe termo; diferentemente, e como resulta do n.º 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82
– preceito, aliás, citado ma decisão reclamada –, significa colocá-la “perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”.
Ora, quando julga um pedido de aclaração, o poder jurisdicional do tribunal fica reduzido à apreciação desse pedido de aclaração, como se sabe. Daqui resulta o que se afirmou na decisão reclamada quanto a não se poder considerar oportunamente suscitada a inconstitucionalidade invocada no pedido de aclaração do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça .
Em segundo lugar, repete-se, porque os termos em que o reclamante formulou o pedido de desaforamento – baseado no constrangimento que sentia – não permitem a conclusão de que seriam necessárias “artes divinatórias” para que a questão de constitucionalidade que colocou no pedido de aclaração pudesse ter sido suscitada no pedido de desaforamento.
Em terceiro lugar, porque a decisão de admissão do recurso, proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. n.º 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82).
Finalmente, e em quarto lugar, porque a Lei nº 28/82 prevê a possibilidade de o recurso de constitucionalidade ser julgado através de uma decisão sumária, sendo que uma das hipóteses especialmente previstas é a de se entender que “não pode conhecer-se do recurso, como é o caso”.
5. Quanto à afirmação de que os direitos do arguido são, assim, restringidos, cumpre observar que o reclamante poderia ter suscitado, nesta reclamação, a inconstitucionalidade da norma que prevê o julgamento por decisão sumária; não o tendo feito, o Tribunal Constitucional não conhece de qualquer eventual inconstitucionalidade que se pretendesse invocar.
6. Nestes termos, decide-se indeferir a reclamação, confirmando-se a decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs.
Lisboa, 24 de Setembro de 2003
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida