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Processo 812/02
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam em conferência no Tribunal Constitucional: I. Relatório
1.A., melhor identificado nos autos, tendo sido condenado na pena de quatro anos de prisão pela prática de um crime doloso de incêndio, previsto e punido pelo artigo 272º, n.º1, alínea a), do Código Penal, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra que julgou improcedente o recurso do arguido, “por considerar inexistente a arguida nulidade da sentença, entender não enfermar a decisão de facto de qualquer dos vícios do art. 410º, n.º 2, do C.P.P. e ser de manter a medida de 4 anos de prisão, o que inviabiliza também a pretendida suspensão da execução da pena”. Por Acórdão de 29 de Maio de 2002, o Supremo Tribunal de Justiça julgou improcedente o recurso, baseado nos seguintes fundamentos:
“A expressão genérica ‘nada mais se provou’ envolve alguns riscos, a evitar, de dúvidas sobre a apreciação específica de todos os factos pertinentes. Conclui-se porém da antecedente apreciação que no caso concreto, se atendermos à substância da decisão e não a aspectos essencialmente formais, o douto acórdão não deixou de enumerar, de uma forma suficientemente clara, o que considerou provado e não provado da essencialidade do factualismo agora posto em questão pelo recorrente. Da sua leitura resulta facilmente compreensível, quer pela enumeração dos factos, quer pela motivação, que apreciou a essencialidade de todos esses factos relevantes para a decisão, como também que expressou adequadamente a linha fundamental do processo lógico-racional que conduziu à convicção do tribunal sobre esses factos, bem como sobre os demais enumerados. E como nada revela que o acórdão devia ter-se pronunciado sobre quaisquer outros factos relevantes para a decisão, invocados pelo Ministério Público, pelo assistente (que na sua contestação se limitou a oferecer o merecimento dos autos) ou resultante de elementos oficiosamente cognoscíveis, designadamente obtidos no cumprimento do disposto no art. 340º do C.P.P., há que concluir nada revelar que o douto acórdão tenha deixado de apreciar todos os factos essenciais integrantes do ‘thema decidendum’, de os enumerar e de expor de forma adequada os motivos que fundamentaram a decisão de facto. Entende-se por isso que nada põe razoavelmente em dúvida que tenha sido adequadamente cumprido o dever, consabidamente essencial, de enumeração e motivação prescrito no citado art. 374º, n.º2, inexistindo assim a invocada nulidade. Bem andou pois o douto acórdão da Relação ao decidir pela sua não verificação.
(...) A pena aplicada de 4 anos de prisão é excessiva, atendendo sobretudo à muito avançada idade do arguido e ao muito tempo decorrido após o incêndio, devendo ser fixada em 3 anos, correspondente ao limite mínimo, e substituída pela da sua suspensão, subordinada embora ao cumprimento de deveres legais ou regras de conduta?
(...)
É verdade que o arguido estava prestes a completar 72 anos de idade à data dos factos, que não tinha antecedentes criminais e que decorreram já cinco anos após a sua prática. Mas, como bem se salienta no douto acórdão recorrido, a ilicitude é muito acentuada, o dolo muito intenso e muito censurável a motivação, centrada numa relação de inimizade com um vizinho. Não teve manifestação de posição crítica relativamente ao alto desvalor do seu acto. Nem revelou qualquer disposição de reparar, em qualquer medida, os elevados prejuízos causados (...). Neste circunstancialismo, a pena aplicável de 4 anos de prisão, excedendo apenas em um ano o mínimo da moldura abstracta de um crime de provocação dolosa de incêndio – crime de perigo comum relativamente ao qual são reconhecidamente muito elevadas as necessidades concretas de prevenção geral positiva ou de integração, pelo alto nível das exigências da manutenção ou recuperação da confiança comunitária na validade da norma violada – apresenta-se como justa e adequada à consideração equilibrada e razoável dos critérios e factores a que os arts. 40º e 71º do C.P. determinam se atenda na determinação concreta da pena. Não excede, manifestamente, a medida correspondente ao limite inultrapassável da culpa, que é elevada, satisfaz minimamente as referidas exigências de prevenção geral e, dentro da ‘moldura da prevenção geral’, situa em nível baixo a consideração das exigências de prevenção especial de socialização que, embora não deixem de ser significativas, considerando a gravidade de actuação e a motivação referida, se encontram claramente diminuídas pelas circunstâncias da idade do arguido, tempo já decorrido, e a ausência de antecedentes criminais. A medida concreta dessa pena exclui manifestamente a possibilidade legal da pretendida suspensão (art. 50º do C.P.)”
2.Inconformado, pretendeu o arguido interpor recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo das alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, “nos seguintes termos e fundamentos:
– O acórdão fez aplicação do artº 374, 2 do C.P.P. e dos artigos 40 e 71 do CP.
– O recorrente pretende suscitar a inconstitucionalidade da interpretação e dos sentidos com que foram aplicadas, no acórdão, as normas supra indicadas. I
– O sentido interpretativo com que foi aplicado o artº 374, 2 do C.P.P. viola claramente o disposto nos artigos 205 e 32 da Constituição da República Portuguesa.
– Além do mais, quando a decisão de facto menciona ‘não se ter produzido em julgamento outra prova que permitisse dar como provados outros factos para além daqueles que o foram’ (sic) está em nítida rota de colisão com sentido interpretativo que já foi declarado inconstitucional, nos Acórdãos 680/98 e
639/99 desse Tribunal. II O sentido interpretativo com que foram aplicados os artigos 40 e 71 do C.P. viola o disposto nos artigos 1º, 13º,1; 18º, 2; 25, 1 da Constituição da República Portuguesa.” Após despacho do Exm.º Conselheiro-relator do Supremo Tribunal de Justiça para o réu indicar a peça processual em que suscitou a questão de inconstitucionalidade, não foi admitido o recurso, pois, “ao formular no seu recurso para o S.T.J., como um dos fundamentos a violação do art. 374º, n.º 2 do C.P.P., como já fizera no recurso para o Tribunal da Relação, era-lhe perfeitamente previsível que o S.T.J., em confirmação do aliás decidido por aquele Tribunal, interpretasse o art. 374º, n.º 2 do C.P.P. no sentido em que o fez, decorrendo dessa interpretação e correspondente aplicação a improcedência desse fundamento de recurso.”
3.Trouxe então o arguido a presente reclamação ao Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
“1º Pelo STJ foi proferido douto acórdão o qual fez aplicação do artigo 374, 2 do CPP e dos artigos 40 e 71 do CP.
2º O ora reclamante, por via de recurso, pretendeu e pretende suscitar a inconstitucionalidade da interpretação e dos sentidos com que foram aplicados, no Acórdão, as normas supra citadas.
3º A decisão de rejeição do recurso tem por fundamento a ideia de que era perfeitamente previsível ao reclamante que o STJ em confirmação do decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra viesse a interpretar o artigo 374, n.º 2 do CPP no sentido em que o fez, sentido esse que além do mais corresponde ao sentido interpretativo geralmente seguido quer pela doutrina quer pela jurisprudência, e daqui que, nunca o acórdão, neste particular aspecto poderá ser tido por surpreendente.
4º Salvo o devido respeito pela decisão tomada, esta carece de razão.
5º Na verdade, o acórdão do STJ no que respeita ao sentido interpretativo, com que aplicou o artigo 374, 2 do CPP actuou de modo surpreendente e para o arguido não era previsível, em juízo de prognose, que tal interpretação ocorreria.
6º Tanto mais assim é quanto é certo ter esse Tribunal Constitucional sufragado entendimento oposto àquele que vem contido no douto acórdão do STJ, mormente no
âmbito dos Acórdãos números 680/98 e 639/99.
7º Aliás o próprio Acórdão do STJ concede que a expressão genérica ‘nada mais se provou’ envolve alguns riscos, a evitar, de dúvidas sobre a apreciação específica de todos os factos pertinentes’
8º A enumeração dos factos provados, e não provados exige a menção individualizada de todos eles sem excepção, sem ser importante a origem e paternidade, bastando que façam parte do ‘thema decidendum’ para serem merecedores de atendibilidade o que, manifestamente não ocorreu nos presentes autos.
9º Não era exigível ao arguido que supusesse ou que tivesse de ponderar a hipótese de o STJ vir a utilizar nos presentes autos um sentido interpretativo do disposto no artigo 374 do CPP, o qual foi já julgado inconstitucional por esse TC.
10º Não era exigível ao arguido que contasse com a interpretação que foi seguida nos Tribunais Superiores e só por isso é que, desde o primeiro momento processualmente possível não tomou a iniciativa de suscitar esta inconstitucionalidade.
11º O reclamante só após o douto acórdão do STJ é que verificou e constatou a necessidade de suscitar a questão da inconstitucionalidade dos sentidos interpretativos que presidiram à aplicação do disposto nos artigos 374, 2 e 40 e
71 todos do CP. Nestes termos deve ser atendida a presente reclamação e vir a ser admitido o recurso oportunamente interposto pelo ora reclamante , aplicando-se com as necessárias adaptações o disposto nos artigos 688 e 689 do CPP por via remissiva do disposto no artigo 69º da LTC.” Em vista do processo, o Ministério Público junto do Tribunal Constitucional pronunciou-se pela improcedência da reclamação, expondo as seguintes considerações:
“Assim – e em primeiro lugar – não curou o ora reclamante de especificar, de forma clara e inteligível, qual a interpretação normativa do art. 374º, n.º 2, do CPP que considera ter sido feita pelo STJ – e sendo manifesto e incontroverso que a este Tribunal Constitucional apenas cumpriria sindicar da constitucionalidade do critério normativo acolhido pelo Supremo, em termos de definição e concretização do dever de fundamentação da decisão acerca da matéria de facto (e não obviamente apreciar se, na específica e concreta situação dos autos, a fundamentação adoptada pelas instâncias se podia considerar convincente, bastante e adequada). Ora, a circunstância de o recorrente não ter delimitado o objecto do recurso de fiscalização concreta, delineando qual a questão de inconstitucionalidade normativa que pretendia ver apreciada pelo TC, comprometia, desde logo, em termos irremediáveis a viabilidade do recurso interposto. Acresce que o decidido pelo STJ acerca da suficiência da fundamentação da decisão de 1ª instância não pode obviamente ser perspectivado como
‘decisão-surpresa’: bastará notar que a alegada ‘insuficiência de fundamentação’ se coloca relativamente ao decidido em 1ª instância, ao fazer um genérico apelo a ‘factos não provados’, tendo incidido sobre tal questão um acórdão da Relação
– e sendo obviamente previsível a eventualidade de o supremo confirmar o decidido pela instância, cumprindo, deste modo, ao recorrente ter suscitado,
‘durante o processo’ as questões de constitucionalidade que tivesse por pertinentes.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
4.Como se viu, a decisão de indeferimento do recurso, ora reclamada, fundamentou-se na não suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo (sobre o sentido desta fórmula em processo constitucional, cfr. Acórdão n.º 90/85, publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Julho de 1985). O Ministério Público neste Tribunal, pronunciando-se sobre a reclamação, acrescentou a tal fundamento de não conhecimento do recurso um outro: o de que o ora reclamante não chegara sequer, no seu requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, a distinguir entre o modo como o tribunal recorrido aplicara no caso concreto as normas impugnadas – questão de aplicação do direito ordinário –, e a medida em que o critério normativo adoptado no caso se afastava do que seria imposto pelo padrão constitucional invocado – o que já seria uma questão de constitucionalidade normativa, mas que, nem nessa altura, teria chegado a ser dirigida ao Tribunal Constitucional. Importa analisar estes fundamentos para não admissão do recurso.
5.É manifesto que a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, tendo-se centrado nas duas questões que o recorrente lhe pôs – por um lado, a da pena alegadamente excessiva aplicada ao arguido, e, por outro lado, a da “nulidade prevista no artigo 379º, n.º 1, al. a), referido ao art. 374º, n.º 2, ambos do CPP”, do acórdão da 1ª instância, “por ter apenas mencionado, relativamente aos factos não provados, não se ter produzido em julgamento outra prova que permitisse dar como provados outros factos para além daqueles que o foram” –, se pronunciou sobre o sentido das normas dos artigos 40º, e 71º do Código Penal e do artigo
374º, n.º 2, do Código de Processo Penal que depois o recorrente veio pretender impugnar por inconstitucionalidade. Como, aliás, já o terá também feito o Tribunal da Relação de Coimbra (decisão não incorporada nos autos, mas referida no relatório do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça), perante o qual o recorrente também arguiu a “nulidade da sentença, por deficiência de fundamentação, nos termos do artigo 379º, n.º 1, al. a), referido ao artigo
374º, n.º 2, ambos do C.P.P e [impugnou] a medida da pena”. O que quer dizer que a aplicação da primeira norma incluída no requerimento de recurso – o artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal – esteve sempre no centro das preocupações do recorrente, não podendo objectivamente considerar-se tal aplicação uma “decisão-surpresa”. Ao não imputar qualquer inconstitucionalidade a essa norma antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo, o recorrente não provocou a emissão de um juízo de conformidade ou desconformidade constitucional – cuja reapreciação posteriormente poderia requerer em recurso dirigido a este Tribunal. Não o tendo feito, não preencheu um pressuposto legalmente exigido para o recurso ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que este não poderia ser admitido quanto a essa norma. E isto, mesmo que o arguido tenha anteriormente – como escreveu na resposta ao despacho de aperfeiçoamento proferido no Supremo Tribunal de Justiça – suscitado tal questão perante o Tribunal da Relação de Lisboa.
6.Por outro lado, a suscitação da inconstitucionalidade das normas dos artigos
40º e 71º do Código Penal só surgiu no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, como o próprio reclamante reconheceu em resposta ao despacho de aperfeiçoamento proferido no tribunal a quo. Também em relação a elas não se verificou, pois, um dos requisitos do tipo de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (o da suscitação de uma questão de inconstitucionalidade durante o processo), pelo que, também quanto a tais normas o recurso não poderia ser admitido. E isto, sendo certo, ainda, que nem mesmo no requerimento de interposição do recurso, nem na posterior resposta ao despacho de aperfeiçoamento proferido no tribunal a quo, o recorrente veio delimitar, de forma minimamente clara, a questão de constitucionalidade normativa, referida ao “sentido interpretativo” das normas em questão, que pretendia sujeitar à apreciação deste Tribunal.
7.Por último, quanto ao recurso que se pretendeu interpor invocando a alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – e que só pode dizer respeito à norma do artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal, desde logo, porque só a ela se refere o ora reclamante – sustentou repetidamente o recorrente que o “sentido interpretativo a dar ao art. 374, 2 do CPP” foi
“constitucionalmente sufragado pelo Tribunal Constitucional nos Acórdãos números
680/98 e 639/99”. No entanto, este último aresto nada tem a ver com aquele artigo (diz respeito aos n.ºs 1 e 2 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 327/90, de
22 de Outubro), e o primeiro, publicado no Diário da República, II Série, de 5 de Março de 1999, dizendo embora respeito ao artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal, refere-se a um sentido interpretativo que, a mais de nunca ter sido identificado nos autos (como o não foi qualquer outro), não tem directamente a ver nem com o que se discutiu no recurso interposto para o Tribunal da Relação – enquanto nestes autos estava em causa a não discriminação dos factos não provados, no primeiro dos acórdãos invocados estava em causa a insuficiência de fundamentação traduzida numa mera enunciação dos meios de prova usados –, nem com o que se discutiu no recurso que daí seguiu para o Supremo Tribunal de Justiça. Também quanto a este recurso a decisão reclamada merece, pois, confirmação.
III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação e confirmar a decisão de não admissão do recurso. Custas pelo reclamante, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 20 de Maio de
2003 Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos