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Proc. n.º 700/02 TC – 1ª Secção Relator: Cons.º Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A., com os sinais dos autos, interpõe recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, n.º1, al. b) da LTC do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 1061 e seguintes.
Conforme o requerimento de interposição de recurso, o recorrente pretende a apreciação de constitucionalidade das normas ínsitas nos seguintes preceitos legais:
- artigos 43º e 44º do RJIFNA (Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras);
- artigo 11º, n.º 7 do RJIFNA.
O recorrente alegou, formulando as seguintes conclusões:
“1. Embora a prática de actos de inquérito derive de uma competência delegada
“presumida” – artigo 43º n.º 2 RJIFNA – certo é que a competência para iniciar o processo é própria do Ofendido – artigo 43º n.º1- o que viola clamorosamente o artigo 48º do Código de Processo Penal nos termos do qual o dever de promover a acção penal é exclusiva do Ministério Público.
2. O artigo 48º do Código de Processo Penal tem valor constitucional na medida em que constitui emanação do postulado fundamental de que o Ministério Público é um órgão do Estado e da Justiça – artigo 219º da Constituição da República Portuguesa – actuando num quadro constitucional e funcional a que são inerentes os princípios de legalidade, objectividade e imparcialidade, estranhos à administração fiscal.
3. Assim, aqueles artigos 43º e 44º do RJIFNA são materialmente inconstitucionais por violação do disposto nos artigos 32º, n.ºs 4 e 5, 114º e
219º da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que aqui expressamente se invoca para todos os efeitos legais.
4. O artigo 51º do Código Penal permite a subordinação da suspensão da pena ao cumprimento, pelo arguido, de determinados deveres, nomeadamente o pagamento ao ofendido da indemnização devida [artigo 51º n.º 1 alínea a] e o n.º 7 do artigo
11º do RGIFNA] prescreve que a suspensão é sempre condicionada ao pagamento ao Estado do imposto e acréscimos legais.
5. A subordinação da suspensão a deveres está sujeita a uma dupla limitação: a de que, em geral, eles sejam compatíveis com a Lei, nomeadamente com todo o asseguramento possível dos direitos fundamentais do condenado; e a de que, além disso, o seu comportamento seja exigível no caso concreto.
6. Só deve ser exigível ao arguido o cumprimento de determinado deveres como condição da suspensão da execução da pena quando esses deveres estejam numa relação estrita de adequação e de proporcionalidade com os fins preventivos almejados.
7. Resultou provado que contra o arguido recorrente foi instaurado processo de falência pessoal, falência que já foi decretada pelo que nos termos do artigo
147º do Código dos processos especiais de recuperação da empresa e de falência
“A declaração de falência priva imediatamente o falido ... da administração e do poder de disposição dos seu bens presentes ou futuros, os quais passam a integrar a massa falida, sujeita à administração e poder de disposição do liquidatário judicial.”
8. É assim manifesto que o arguido recorrente não pode cumprir a condição que lhe foi imposta para a suspensão da execução da pena pois o seu cumprimento configuraria a prática de um acto ilícito já que o arguido, por lei, não pode dispor de tal quantia e assim efectuar o pagamento.
9. A condição imposta é assim ilegal por violação dos princípios supra expostos e por ilegal ser o seu cumprimento.
10. O artigo 11º n.º 7 do RGIFNA ao impor a sujeição da suspensão da pena à condição do pagamento deve ser interpretado no sentido de que a condição só será imposta quando a mesma respeite aqueles princípios e não seja em si mesma ilegal.
11. Se assim não se entender, aquele n.º 7 do artigo 11º trata de forma desigual os cidadãos em benefício exclusivo do Estado, pelo que é materialmente inconstitucional por violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, o que expressamente se invoca.”
Contra alegou o Ministério Público, concluindo:
“1- As normas dos artigos 43º e 44º do RJIFNA em nada colidem com a legitimidade do Ministério Público para promover o processo criminal, nos termos do artigo
268º do Código de Processo Penal, nem com a direcção efectiva do inquérito, que detém, deixando intocáveis quer as suas funções como titular do exercício da acção penal quer o seu estatuto de autonomia, em conformidade como artigo 219º da Constituição.
2- Também não contendem com as garantias de defesa asseguradas pelo processo penal, nem com o princípio da separação de poderes.
3- Não tendo a decisão recorrida aplicado a norma do artigo 11º, n.º 7 do RJIFNA, está vedado ao Tribunal Constitucional, por força do artigo 79º -C da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, conhecer a questão de constitucionalidade suscitada”.
O recorrente foi notificado para se pronunciar sobre a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, bem como sobre a eventualidade de se não conhecer do objecto do recurso quanto às normas emitidas nos artigos 43º e
44º do RGIFNA, mas nada disse.
Cumpre decidir.
2 - Constitui pressuposto processual do recurso previsto no artigo 70º n.º1, al. b), da LTC a aplicação pela decisão recorrida da norma (ou de uma sua interpretação) cuja constitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
Ora, no que concerne às normas dos artigos 43º e 44º do RJIFNA, o tribunal “a quo” não realizou a interpretação questionada pelo recorrente.
Na verdade, tal interpretação tem como traço decisivo a consideração de que o Ministério Público, a quem a Constituição confere a titularidade do exercício da acção penal, está 'excluído' do processo de averiguações em causa, não podendo aí exercer a sua 'potestas'.
E não é essa a interpretação do direito infraconstitucional que o acórdão recorrido faz - ele rejeita-a claramente - , o que bem se revela pela longa citação de um trecho do estudo de Augusto Silva Dias 'Crimes e Contra-ordenações fiscais'.
Lê-se no acórdão recorrido:
“Como refere este autor (Augusto Silva Dias) as disposições dos artigos 44º, n.º 3 e 43º, n.º 2 “(...) não podem ser interpretados no sentido de uma administrativização da fase de inquérito, autonomizando o chamado processo de averiguações e subtraindo-os ao controle e fiscalização do M.º P.º de modo a aproximar o processo penal, nesta fase, do processo contra-ordenacional,(...).”Pode ver-se na presunção de delegação do n.º2 do artigo 43º a consagração legal de uma maior autonomia na investigação (a Administração Fiscal dá início às averiguações, devendo comunicar esse facto ao M.º P.º, e efectua-as sem necessidade de para tal solicitar a par e passo a autorização daquele órgão), justificada pelo caracter técnico das matérias em causa, mas sem nunca chegar ao ponto de impedir o M.º P.º de exercer as suas competências de direcção do inquérito nos termos do art. 53º, n.º 2, al. b) e
263º e ss. do CPP, sempre que o julgar oportuno. O M.º P.º é uma magistratura e o inquérito, pela intensa actividade de recolha de prova que possibilita, é uma fase processual que bule com direitos e garantias dos cidadãos. Por outro lado, embora presumida, a delegação não deixa de ser isso mesmo: autorização para o exercício de um poder, susceptível de ser avocado a todo o tempo.”
Decorre do exposto que as normas dos art. 43º e 44º do RGIFNA não padecem da alegada inconstitucionalidade por não porem em causa os direitos e as garantias dos contribuintes pois os actos praticados no processo de averiguações pelos
órgãos de polícia criminal não deixam de estar sujeitos à “potestas” do Ministério Público.”
Neste sentido, não se verifica a interpretação normativa que é objecto do presente recurso, pelo que, no que concerne às normas em causa, falece um dos pressupostos processuais para o recurso previsto no art. 70º, n.º
1, al. b).
3- Quanto à norma do artigo 11º, n.º7 do RJIFNA, ela não foi aplicada no acórdão recorrido, tal como sustenta o Ministério Pública nas suas contra-alegações, não se mostrando preenchido um dos pressupostos do recurso interposto ao abrigo do artigo 70º n.º 1 alínea b) da LCT - aplicação no acórdão recorrido, como razão de decidir, da norma questionada sub specie constitutionis.
Com efeito, no trecho do acórdão recorrido relativo à pena aplicável, o tribunal
'a quo' entendeu dever aplicar, como mais favorável para o arguido, a norma punitiva constante do 'Regime Geral das Infracções Tributárias' (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho - mais concretamente, o disposto no artigo 14º desse Regime - afastando, assim, o disposto no artigo 11º n.º 7 do RJIFNA.
É certo que, no que respeita à condição da suspensão da pena - pagamento das prestações em dívida e acréscimos legais - a norma aplicada é, aparentemente, idêntica à que o recorrente questiona.
Simplesmente, tal condição, na apreciação da sua constitucionalidade, não pode alhear-se do limite do prazo para o cumprimento da condição, consideravelmente alargado no RGIT.
Por outras palavras, o sentido do segmento normativo que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das prestações em dívida é diferente no regime punitivo aplicado, razão por que se não pode entender que a norma aplicada seja substancialmente idêntica à que o recorrente elege como objecto do recurso de constitucionalidade.
4 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
8 Ucs.
Lisboa, 8 de Julho de 2003 Artur Maurício Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos Luís Nunes de Almeida