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Proc. 593/03 Plenário Relator: Cons. Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam no Tribunal Constitucional:
No âmbito do processo de apreciação da regularidade das contas da campanha eleitoral para a eleição autárquica intercalar da Assembleia de Freguesia de
------------- de 23 de Junho de 2002 verificou a Comissão Nacional de Eleições
(CNE) que o Partido Humanista não apresentara atempadamente as contas da sua campanha.
Uma vez que a aludida omissão poderia concretizar a contra-ordenação prevista e punível no artigo 27° n. 1 da Lei n.º 56/98 de 18 de Agosto, na redacção da Lei n.º 23/2000 de 23 de Agosto, determinou o plenário da CNE, reunido a 18 de Março de 2003, instaurar o respectivo processo contra-ordenacional.
De seguida, foi ordenada a notificação do Partido Humanista, nos termos e para os efeitos do artigo 50º do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO), por carta registada com a/r conforme consta de fls. 5.
Não tendo havido resposta, em 15 de Julho de 2003 a CNE deliberou, em suma, o seguinte:
Pelas razões acima expostas, julga-se o Partido Humanista autor da contra-ordenação prevista e punida nos termos do artigo 27° da Lei 56/98, 18 Agosto. Contudo, tomando em consideração o artigo 9° n. 2 do Regime Geral das Contra-Ordenações (Dec. Lei n.º 433/82, 27 de Outubro), pode a entidade administrativa atenuar especialmente a coima numa situação em que a infracção tenha sido cometida sem consciência da ilicitude mas em que o erro lhe seja censurável. Concebe-se, no caso ora em apreciação, que o arguido representou e quis a não prestação de contas (realidade factual/dolo), e que ao praticar o acto positivo de não prestação de contas não representou as suas repercussões jurídicas
(realidade jurídica/falta de consciência da ilicitude). Porém, este erro é-Ihe censurável, dado que não actuou com o cuidado devido. Nesse sentido, verificando-se uma redução do grau da culpa, há lugar a atenuação especial da coima, a fazer-se segundo o critério estabelecido no artigo 18°, n°
3, do mencionado DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, com a redacção dada pelo DL n.º 244/95, de 14 de Setembro, condenando-se o Partido Humanista no mínimo legal de 7,5 s.m.n., ou seja, € 2.610,06 (dois mil seiscentos e dez euros e seis cêntimos) e custas devidas. Esta decisão torna-se definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada nos termos do artigo 59° do Decreto lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, com as alterações introduzidos pelo Decreto lei n.º 244/95, de 14 de Setembro e pela Lei n.º 109 /2001, de 24 de Dezembro, e do artigo 28°, ns. 1 e 3 da Lei do Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais já identificado.'
Foi, de novo, expedida carta de notificação - registada com a/r - para o mesmo endereço (fls. 13), mas a carta foi, desta vez, devolvida ao remetente.
Posteriormente, a deliberação foi notificada por carta registada com a/r recebida pelo destinatário em 11 de Agosto de 2003.
No dia 20 do mesmo mês de Agosto deu entrada nos serviços da CNE um requerimento do Partido Humanista - dirigido ao Presidente da CNE - no qual se invocava expressamente “a nulidade da notificação e de todo o processado” decorrente da não audição do interessado durante o procedimento, o que deveria determinar a revogação “da deliberação tomada ou, se for caso disso”, a remessa do requerimento ao Tribunal Constitucional “para os efeitos convenientes”.
Em face a esta solicitação, a CNE respondeu:
A Comissão Nacional de Eleições acusa recebido o seu oficio de 14 de Agosto do corrente informando, quanto ao teor do mesmo, que o poder jurisdicional da CNE se encontra esgotado, o que determina a impossibilidade de se pronunciar quanto
à matéria da contra-ordenação em causa. Assim, caso V. Ex.a não se conforme com a decisão da Comissão Nacional de Eleições, o meio jurídico adequado para reagir é o do recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do art.º 28° n. 3 da Lei n.º 56/98, 18 Agosto. O recurso deve ser apresentado junto da Comissão Nacional de Eleições, por escrito e sem obrigatoriedade de constituição de mandatário judicial, no prazo de 10 dias (prazo contínuo), após o conhecimento (data da recepção da decisão que aplicou a coima) da decisão, nos temos do art.º 102°-C da Lei n.º 28/82 de
15 Novembro, Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional.
Em 22 de Agosto de 2003 o Partido Humanista fez entrar nos serviços da CNE o requerimento de fls. 20/22 dos presentes autos, dirigido ao Presidente do Tribunal Constitucional, através do qual - declarando-se inconformado “com o teor da decisão proferida” nos autos de contra-ordenação - pretenderia “interpor recurso da mesma, ao abrigo do disposto no artigo 28º n. 3 da Lei n.º 56/98 de
18 de Agosto e artigo 102º-C da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro”.
Termina requerendo que “na procedência da nulidade da notificação e de todo o processado, devem V.Ex.as revogar a deliberação tomada, ordenando a notificação do arguido para se pronunciar, querendo, sobre a contra-ordenação que lhe foi imputada, seguindo-se os demais termos legais”.
Cumpre apreciar, com base na matéria de facto já alinhada no antecedente relatório.
E deverá começar-se por uma breve referência sobre a verificação dos pressupostos processuais do presente pedido, uma vez que o já referido documento apresentado em 20 de Agosto de 2003 à CNE se configura - e como tal deve ser interpretado - como o requerimento de interposição de recurso, juntado dentro do prazo de que dispunha o Recorrente para este efeito: 10 dias - n. 2 do artigo
102-C da LTC. É certo que nesse requerimento está formulado um prévio pedido de revogação da decisão dirigido à Autoridade instrutora. Mas deve aceitar-se que essa pretensão não é impertinente face ao que dispõe o artigo 62º n. 2 do RGCO - redacção do DL n.º 244/95 de 14 de Setembro - que prevê expressamente a possibilidade de revogação da decisão recorrida pela autoridade administrativa que a emitiu em caso de impugnação judicial, ou seja, na fase procedimental em que se achavam os autos, faculdade que não só não é proibida pelo artigo 102º-C da LTC, como se conjuga com o genérico poder que é atribuído à Administração de revogar os próprios actos desde que feridos de ilegalidade, até que o conhecimento da questão passe para o controlo jurisdicional - artigo 145º n. 2 do Código de Procedimento Administrativo, artigo 47º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos.
O processado posterior não altera esta situação, pelo que o segundo requerimento formulado pelo Recorrente - em tudo idêntico ao anterior, embora dirigido ao Tribunal - é, para este efeito, irrelevante.
E também não obsta ao conhecimento do recurso a circunstância de no requerimento em análise não terem sido produzidas as respectivas conclusões, conforme aponta o n. 3 do artigo 59º do RGCO.
É que, no presente caso, a matéria em análise resume-se a uma única questão que consiste em saber se ocorre a nulidade da decisão sancionatória decorrente da omissão de diligências procedimentais essenciais - não audição do partido político arguido no âmbito do procedimento contra-ordenacional, nos termos do artigo 50º do RGCO; torna-se assim patente a inutilidade de um convite ao Recorrente para formulação de proposições conclusivas na sua alegação que, por esta razão, bem se poderiam resumir ao que já consta no requerimento.
Aceitando-se esta tese, nada obsta ao imediato conhecimento do objecto do recurso.
A questão é muito simples e pode ser resolvida, sem necessidade de outras diligências, com base nos factos já apurados.
Estes factos indicam que a CNE, no decorrer do procedimento contra-ordenacional, quis notificar o Partido interessado em obediência ao citado artigo 50º do RGCO e fê-lo por carta que endereçou a uma morada que, todavia, não era a sede do Partido em causa, mas que tinha sido referida como sendo a do domicílio do mandatário do Partido Humanista durante aquelas eleições autárquicas intercalares da Assembleia de Freguesia de ----------- de 23 de Junho de 2002.
A carta não foi devolvida à CNE, mas o certo é que o Partido Humanista não reagiu à notificação, nada requerendo no processo. E só quando, mais tarde, foi notificado da decisão final numa outra morada postal, se apresentou a solicitar oportunidade para - conforme permite o artigo 50º do RGCO - se pronunciar sobre a infracção subjacente ao procedimento contra-ordenacional, argumentando não ter sido efectivamente notificado para esse efeito.
Ora não há dúvida, em primeiro lugar, de que nesta matéria é requerida a prévia audiência do interessado, não sendo permitida “a aplicação de uma coima sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção em que incorre” - artigo 50º do RGCO.
Esse direito de audiência prévia concretiza-se mediante a transmissão ao arguido, pela autoridade administrativa, dos factos que lhe são imputados e a qualificação jurídica contra-ordenacional que deles é extraída, e a abertura da possibilidade de sobre esses dados o arguido emitir uma declaração processualmente relevante, eventualmente contrária ou simplesmente não coincidente com a versão dos factos apresentada pela autoridade administrativa, ou diversa quanto à respectiva moldura sancionatória, acompanhada da faculdade de efectivação da prova correspondente (neste domínio, veja-se o Acórdão n.
278/99 deste Tribunal, in AcTC, vol. 43, p. 447). Não se trata, apenas, de uma mera formalidade procedimental, pois constitui a concretização, ou a forma, pela qual a lei adequou o direito consagrado no artigo 32º n. 10 da Constituição ao procedimento aqui em causa.
Quer isto dizer que não é suficiente a ocorrência da tentativa de notificação do interessado; o objectivo legal consiste em chamar ao processo o arguido e daí que a diligência deva observar os requisitos indispensáveis para esse efeito; entre estes requisitos conta-se, indiscutivelmente, a correcção do endereço postal para onde é efectuada a notificação, quando esta é feita - como no caso presente - por via postal.
Ora, ao dar cumprimento ao artigo 50º do RGCO a CNE tentou notificar o interessado através da carta endereçada à Praceta ----------------, n.
------------ em ---------, -------------, local que havia sido declarado como o do domicílio do mandatário do Partido Humanista nas eleições em questão, mas que não é a sede do Partido, pois esta situa-se no endereço indicado no papel timbrado do Partido Humanista: Rua ----------------, --------------, no Porto, exactamente como consta do registo oficial existente neste Tribunal Constitucional.
Mas haverá que ter em atenção que o interessado procedimental - o arguido - é o próprio Partido Humanista e não qualquer dos seus órgãos ou agentes (artigo 7º n. 2 do RGCO) e que, como as demais pessoas colectivas, ele deve ser notificado no domicílio legal, que é a respectiva sede; no caso em presença, a notificação postal deveria ter sido dirigida à morada sita na Rua ----------------------, na cidade do Porto (artigos 46º n. 2 e 47º n. 1 do RGCO e 113º do Código de Processo Penal, este aplicável nos termos do artigo 41º n. 1 do RGCO).
É certo que o artigo 22º da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais impõe que as forças políticas concorrentes a eleições autárquicas designem um mandatário para efeitos de representação nas operações referentes à apreciação da ilegibilidade “e nas operações subsequentes”, acrescentando que a morada do mandatário é sempre indicada no processo de candidatura e que a mesma deverá situar-se “na sede do município”.
Todavia, o preceito não pode interpretar-se como um desvio à regra de que as associações devem ser notificadas na respectiva sede e através da sua direcção a quem efectivamente cabe representá-las - artigos 159º e 163º do Código Civil. Por outro lado, a referência a “operações subsequentes” à apreciação da ilegibilidade não se reporta - seguramente - à representação do partido respectivo em procedimentos sancionatórios como o que está aqui em causa.
Constata-se, assim, que a notificação imposta pelo aludido artigo 50º do RGCO foi irregularmente concretizada, já que dirigida a um domicílio que não corresponde ao domicílio legal do arguido; desta forma, e tendo em conta o comportamento processual do interessado, não é possível concluir que lhe tenha sido dada oportunidade para exercer o seu direito de defesa, direito que, como se viu, a própria Constituição garante no n. 10 do seu artigo 32º; tal omissão consubstancia uma nulidade processual que determina a invalidade dos actos subsequentes nos quais se inclui a própria decisão sancionatória (artigo 122º n.
1 do Código de Processo Penal).
Nestes termos, dando provimento ao recurso, decide-se declarar a nulidade resultante da não notificação do Partido Humanista nos termos e para os efeitos do artigo 50º do RGCO, anulando os actos procedimentais posteriores incluindo a decisão.
Sem custas.
Lisboa, 7 de Outubro de 2003
Carlos Pamplona de Oliveira Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Paulo Mota Pinto Bravo Serra Gil Galvão Maria Helena Brito Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Luís Nunes de Almeida