Imprimir acórdão
Proc. n.º 647/02 Acórdão nº 256/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por sentença de 24 de Maio de 2001 (fls. 317 e seguintes), o juiz do Tribunal Judicial de Guimarães condenou A. e outra pela prática de um crime continuado de abuso de confiança em relação à Segurança Social, previsto e punível pelo artigo 27º-B do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro. Relativamente ao arguido A., foi a respectiva pena de dois anos de prisão suspensa pelo período de três anos, sob a condição de pagamento à Segurança Social, no prazo máximo de dois anos, da quantia de 75.626.045$00
(correspondente ao montante em dívida à Segurança Social), acrescida de juros de mora.
2. Desta sentença recorreram A. e outra para o Tribunal da Relação do Porto (fls. 342), tendo na motivação respectiva (fls. 342 e seguintes) apresentado as seguintes conclusões:
“Primeira: Nos casos em que o procedimento criminal não depende de queixa ou acusação particular, quem tem legitimidade para promover o processo penal é o Ministério Público – artigo 48º do Código de Processo Penal. Segunda: Nos presentes autos, todas as diligências levadas a cabo no âmbito do
«inquérito» foram realizadas pelo Centro Regional de Segurança Social, o qual, para além de não ser autoridade judiciária, não actuar sob a directa orientação do Ministério Público e também além de não ter em relação a este qualquer dependência funcional, é também o próprio OFENDIDO e, no caso, também ASSISTENTE nos autos! Terceira: Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 43º, nºs 1 e 2, 44º, nº l e 51º-A, todos do RJIFNA, a investigação preparatória dos crimes fiscais compete exclusivamente à Administração Fiscal e não ao Ministério Público [...]. Quarta: Ora, o atrás citado artigo 48º do Código de Processo Penal – que atribui ao Ministério Público a legitimidade para promover o processo penal – é uma norma de valor constitucional, na medida em que constitui a emanação do postulado fundamental de que o Ministério Público é o órgão do Estado e da Justiça – art. 219º da Constituição da República Portuguesa (anterior art. 221º)
– a quem especificamente compete exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade democrática, ou seja, actuando num quadro constitucional e funcional a que são inerentes os princípios da legalidade, objectividade e imparcialidade [...]. Quinta: Assim, os citados artigos 43º, nºs 1 e 2, 44º, nº 1 e 51º-A, todos do RJIFNA, na medida em que estabelecem uma competência exclusiva da Administração Fiscal e da Segurança Social para a investigação preparatória dos crimes fiscais
– afastando o Ministério Público em clara violação do disposto no artigo 48º do Código de Processo Penal – são materialmente inconstitucionais por violação expressa dos artigos 32º, nºs 4 e 5, 111º, 219º, todos da Constituição da República Portuguesa (anteriores arts. 32º, nºs 4 e 5, 114º e 221º), inconstitucionalidade essa que aqui se invoca.
[...] Quadragésima sétima: Ao condenar o recorrente A. «...na pena de 2 (dois) anos de prisão, cuja execução se suspende pelo período de 3 (três) anos, sob a condição de pagamento à Segurança Social, no prazo máximo de 2 (dois) anos, da quantia de
75.626.045$0 (setenta e cinco milhões seiscentos e vinte e seis mil e quarenta e cinco escudos), acrescida de juros de mora..», a douta sentença recorrida subordinou a suspensão da pena de prisão ao pagamento de um montante que manifestamente este não será capaz de pagar no prazo que lhe foi concedido, Quadragésima oitava: pelo que, revelando-se a condição da suspensão manifestamente inadequada, desproporcionada e virtualmente impossível para o recorrente, na prática, a douta sentença recorrida condenou o recorrente a uma pena de prisão efectiva. Quadragésima nona: Em face do exposto, sempre seria inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, constantes dos artigos 13.º e 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 11º, nº 7, do RJIFNA, ou a interpretação que dela se faça, no sentido de considerar admissível a subordinação da suspensão da pena de prisão a que o recorrente A. foi condenado ao cumprimento de um dever manifestamente impossível para ele e fora do condicionalismo previsto no artigo 51º, nº 1, al. a) e nº 2 do Código Penal, normas estas que a douta sentença recorrida violou.
[...].”
Na sua resposta à motivação do recurso, sustentou o Ministério Público que a sentença devia ser mantida, com os seguintes fundamentos (fls. 465 e seguintes):
“[...] O processo penal fiscal, pela especificidade própria e natureza técnica dos conhecimentos exigíveis a uma eficaz investigação e a uma correcta apreciação da matéria de facto relevante, reclama uma articulação entre o Know how da administração fiscal e a formação e sensibilidade jurídica de quem tem o domínio do inquérito. Acresce que esse domínio do inquérito pelo Ministério Público não é posto em causa pela existência de um processo de averiguações, na medida em que este, embora encetado pela administração fiscal, está subordinado ao princípio da oficialidade e da legalidade, além de que as competências concedidas ao agente da administração fiscal são exercidas sob o controlo, a potestas e na dependência funcional do Ministério Público, o que, aliás, decorria da interpretação conjugada dos artigos 55°, 56°, 248°, 263°, 270°, todos do Código de Processo Penal, 203° nº 2 do Código Processo Tributário, e 43° nº 1 e 2 do RJIFNA (vigentes à data dos factos e da decisão condenatória, antes das recentes alterações legislativas, que em nada contendem com a actualidade deste raciocínio).
[...]
[...] se o recorrente A. deixar de cumprir não culposamente a condição imposta como condição de suspensão da execução da pena de prisão aplicada, esta não será, por esse facto e sem mais, revogada.
[...].”
Também o Instituto da Solidariedade e Segurança Social respondeu, pugnando pelo improvimento do recurso (fls. 471 e seguintes).
O representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto emitiu parecer no sentido de que, devendo embora ser negado provimento ao recurso, a punição fosse alterada (fls. 481 e seguintes). Sustentou então o seguinte:
“[...]
4.1.1. Quer-me parecer, salvo o devido respeito, que a conclusão de que os arts.
43º, nº 1 e 2, 44º, nº 1 e 52º-A do RJIFNA são materialmente inconstitucionais por estabelecerem «uma competência exclusiva da Administração Fiscal e da Segurança Social para a investigação preparatória dos crimes fiscais – afastando o Mº Pº, em clara violação do disposto no art. 48° do CPP», assenta numa leitura incompleta desses preceitos. De facto, o Mº Pº não foi afastado por qualquer daqueles preceitos da «investigação preparatória dos crimes fiscais», como claramente se vê do nº 2 do art. 43°, que não o proíbe, em qualquer altura do procedimento, de avocar o inquérito e realizar ele próprio, ou o órgão de polícia criminal que designar, as diligências pertinentes. A presunção de delegação da prática de actos do inquérito por parte do Mº Pº nos órgãos de polícia criminal – e os dirigentes e funcionários dos CRSS têm essa categoria para esses efeitos, conforme os arts. 51º-A do RJIFNA e 1º-c) do CPP – tem suporte, de resto, no art. 270º deste último Código e não significa, obviamente, como querem os recorrentes, que, tendo conhecimento de factos susceptíveis de integrar crime, não possa iniciar ele próprio o inquérito, cessando de imediato qualquer actividade de investigação eventualmente já desencadeada pela Segurança Social, que tenha de delegar a sua realização nessas entidades ou que os órgãos da Segurança Social, enquanto órgão de polícia criminal, fujam à orientação do Mº Pº ou saiam da sua dependência funcional. Com a presunção legal de deferimento da competência para a prática de actos do inquérito – e, note-se, essa delegação não pode contrariar o n° 2 do art. 270° do CPP – apenas se pretendeu evitar que a delegação tivesse de ser feita caso a caso, por despacho. Por isso é que, se, no caso concreto, todas as diligências de instrução do inquérito foram realizadas pelos funcionários da Segurança Social, foi porque o Mº Pº, no pleno exercício dos seus poderes de direcção, assim entendeu conveniente, depois de lhe ter sido comunicado o início do mesmo. (cfr. fls. 2). De facto, a doutrina do art. 263°, nº 2 do CPP, segundo a qual os órgãos de polícia criminal actuam sob a directa orientação do Mº Pº e na sua dependência funcional – no que toca à realização de actos do inquérito, já se vê – não foi afastada pelo RJIFNA e por isso é que a interpretação de Nuno Sá Gomes, invocada pelos recorrentes, de que a «investigação preparatória dos crimes fiscais compete exclusivamente à Administração Fiscal e não ao Ministério Público» foi repudiada, por exemplo, por Alfredo José de Sousa (cfr. «Infracções Fiscais
...», 3ª edição, pág. 208) por ser contrária ao regime geral do CPP e ao princípio constitucional da titularidade exclusiva da acção penal e da unidade do Ministério Público. Aliás, o art. 3° alíneas h) e n) do Estatuto do Ministério Público confere-lhe competência para dirigir a investigação criminal, ainda quando realizada por outras entidades, e para fiscalizar a actividade processual dos órgãos de polícia criminal. Improcede, pois, a alegada inconstitucionalidade, tanto mais que não descortino a pertinência da invocação, como normas constitucionais violadas, dos arts. 32°, nºs 4 e 5 – a primeira porque se prende com a competência para a instrução; a segunda porque, postulando a estrutura acusatória do processo criminal e o princípio do contraditório, não vejo em que tais princípios possam ser beliscados pela delegação de competências, expressa ou presumida, do Mº Pº nos
órgãos de polícia criminal –, 111º porque, independentemente de saber se, na sua previsão, cabe o Mº Pº, desinserido do órgão de soberania Tribunal, o preceito expressamente permite a delegação de poderes nos casos previstos na lei comum, e já vimos que o CPP permite essa delegação – e 219° – porque, como nele expressamente se refere, o Mº Pº exerce a acção penal, nos termos da lei: e, repete-se, o CPP contempla a delegação – da CRP.
[...]
4.3.4. Quanto à condição da suspensão da execução da pena imposta ao recorrente. A condição do pagamento em dois anos das quantias desviadas em prejuízo da Segurança Social está expressamente prevista no nº 7 com referência ao nº 8, ambos do art. 11 do RJIFNA, como prazo máximo. A sentença não podia, pois, conceder um prazo mais dilatado para a satisfação da condição. E não me parece que daí se possa concluir que o preceito infrinja a Constituição, por violação designadamente dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, por o recorrente não ter alegadamente possibilidades de, no prazo decretado – o máximo legal, repete-se –, satisfazer a condição da suspensão da execução da pena e, nessa medida, a condenação se traduzir, na prática, na aplicação de uma pena efectiva de prisão. É que o próprio art. 11° nº 7 contém uma válvula de escape, quando manda aplicar, no caso de não cumprimento da condição no prazo sentenciado, as normas das alíneas b), c) e d) do art. 50° do CP (da versão anterior à revisão de 1995; na versão vigente, cfr. os arts. 55° e 56°) precisamente para prevenir a hipótese de impossibilidade não culposa desse cumprimento.
[...].”
3. Por acórdão de 20 de Março de 2002 (fls. 510 e seguintes), o Tribunal da Relação do Porto decidiu, entre o mais, o seguinte:
“1º. As normas do artigo 11º, nº 7, RJIFNA e do artigo 14° do RGIT, na medida em que impõem a obrigatoriedade do pagamento das quantias em dívida como condição da suspensão da execução da suspensão da pena de prisão, violam os princípios da adequação e da proporcionalidade consagrados no artigo 18°, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, pelo que se afasta a aplicabilidade de tais normas ao caso concreto.
2º. Aplicando-se o novo Regime das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei
15/2001, de 5 de Junho, por ser o que concretamente se mostra mais favorável aos arguidos (artigo 2°, nº 4, do Código Penal): a) Condena-se o arguido A., pela prática de um crime continuado de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos l07°, nº l; e l05°, nº l, do RGIT, e 30°, nº
2, e 79° do Código Penal, na pena de dois anos de prisão, cuja execução se suspende pelo período de 3 anos, sob a condição de, no prazo máximo de um ano, pagar à Segurança Social a quantia de 5.000.000$00. b) Condena-se a arguida B., pela prática, em co-autoria, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 7°, nº l , l07°, nº l, e l05°, nº l, do RGIT, e 30°, nº 2, e 79° do Código Penal, na pena de 500 dias de multa, à taxa diária de EUR 100, o que perfaz o montante global de EUR 50.000.
[...].”
É a seguinte a fundamentação do acórdão, no que se refere à alegada nulidade do inquérito e à inconstitucionalidade dos artigos 43º, 44º e 51º-A do RIJFNA:
“[...] A delegação presumida resultante do artigo 43º, nº 2, do RJIFNA traduz-se na autorização para o exercício de um poder por parte da Administração Fiscal, susceptível de ser avocado a todo o momento, e justifica-se por razões de eficácia e de operacionalidade no tratamento de matérias que exigem uma preparação técnica específica. Como se pode ler no preâmbulo do DL nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, «para que os factos levados a cabo pela administração fiscal não ficassem esvaziados de operacionalidade material e jurídica, era ainda necessário que se lhes atribuísse, como actos meramente materiais, a mesma autoridade que detêm os que são praticados sob a potestas do Ministério Público. Todavia, isto não significa que se subtrai ao Ministério Público a direcção do inquérito ou que se limitem quaisquer competências e atribuições que lhes estão cometidas no âmbito penal»
[...]. Como refere Alfredo José de Sousa, in Infracções Fiscais, 3ª ed. pág. 208, a competência delegada está sujeita às directivas e instruções vinculativas do Ministério Público e ao seu poder de avocar ou revogar actos praticados no processo de averiguações. Estes poderes do Ministério Público, integrados no seu poder de direcção do inquérito, podem ser exercitados oficiosamente ou a requerimento do interessado. O Ministério Público tem sempre a direcção funcional do inquérito, podendo avocá-lo, anular diligências, proceder à realização de outras e, essencial e exclusivamente, cabe-lhe a decisão de arquivamento ou de acusação.
[...] Assim sendo, entendemos que não ocorre a invocada nulidade do inquérito (cfr. art. 119º do CPP) nem as normas citadas do RJIFNA estão feridas de qualquer inconstitucionalidade, designadamente por violação dos artigos 32º, 11º, e 219º da Constituição da República Portuguesa.
[...].”
Quanto à questão da inconstitucionalidade das normas do RJIFNA e do RGIT, disse o Tribunal da Relação do Porto:
“[...] Sustenta o recorrente que ao subordinar-se a suspensão da execução da pena ao pagamento de montante que o condenado não será capaz de pagar no prazo concedido, equivale a uma condenação em prisão efectiva, o que viola os princípios da igualdade e da proporcionalidade constantes dos artigos 13° e
18°, nº 2, da Constituição. O pagamento das quantias que se mostrem devidas como condição da suspensão da execução da pena tem uma função adjuvante da realização da finalidade da punição
[...]. O legislador impôs a obrigatoriedade da subordinação da suspensão ao pagamento das quantias em dívida, dada a natureza do bem jurídico violado e as prementes necessidades de prevenção geral e especial nestes especiais tipos legais de crime. Com efeito, como se referiu supra, o sistema fiscal não visa apenas arrecadar receitas, mas visa também a repartição justa dos rendimentos e da riqueza, a diminuição das desigualdades entre os cidadãos (cfr. arts. 103° e 104 ° da CRP). Urge alterar a consciência cívica dos cidadãos em matéria fiscal e, como apropriadamente se diz na sentença recorrida, evitar a banalização destes tipos legais de crime. O pagamento do que é devido ao Estado visa também contribuir para a igualdade entre os cidadãos, como expressamente se prevê no artigo 104°, nº 3, da Constituição.
[...] Ocorre que, no regime do RJIFNA ou do RGIT, a lei impõe obrigatoriamente a sujeição da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das quantias em dívida. Ou seja, em vez de se deixar ao critério do julgador a aplicabilidade caso a caso do cumprimento do dever de pagamento das quantias em dívida, como condição da suspensão da execução da pena, a lei estabelece a obrigatoriedade da imposição desse dever. Esse regime conduz, no caso concreto, à violação dos princípios da adequação e da proporcionalidade, na medida em que a imposição do cumprimento dos aludidos deveres não deixa a possibilidade de a suspensão da execução da pena desempenhar a sua finalidade, que é a ideia de socialização, traduzida na prevenção da reincidência. Com efeito, como defende o recorrente, a imposição do dever do pagamento de uma quantia consideravelmente elevada – 75.626.045$00 – como condição da suspensão da execução da pena de dois anos de prisão, é desadequada e desproporcionada às condições pessoais do agente e resultará, na prática, numa condenação em prisão efectiva, frustrando-se assim o desiderato que se pretendia alcançar com a suspensão da execução da pena de prisão. Assim, no caso concreto, a aplicação da norma do artigo 11º, nº 7, do RJIFNA, que impõe a obrigatoriedade do pagamento das quantias em dívida como condição da suspensão da execução da pena de prisão, viola os referidos princípios da adequação e da proporcionalidade. Princípios esses que estão consagrados no artigo 18°, nº 2, da Constituição da República e em obediência aos quais se preceitua no nº 2 do artigo 51º, do Código Penal, que «Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir».
[...].”
O Ministério Público promoveu ainda a correcção deste acórdão (fls.
561), tendo também A. requerido o seu esclarecimento (fls. 563). Tal correcção operou por acórdão de 5 de Junho de 2002 (fls. 567 e seguintes).
4. Do acórdão da Relação do Porto de 20 de Março de 2002, “na parte em que o mesmo desatendeu a alegação de inconstitucionalidade dos artigos 43º, n.ºs
1 e 2, 44º, n.º 1 e 51º-A, todos do Dec.Lei n.º 20-A/90, de 15/01, com a redacção que lhes foi dada pelo Dec.Lei n.º 394/93, de 24/11”, interpuseram A. e outra recurso para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos (fls. 562):
“1. O presente recurso é interposto ao abrigo do disposto na al. b), do nº 1 do art. 70º da Lei nº 28/82, de 15/11, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº
13-A/98, de 26/02.
2. Os recorrentes pretendem ver apreciada a inconstitucionalidade dos artigos
43º, nºs 1 e 2, 44º, nº 1 e 51º-A, todos do Dec. Lei nº 20-A/90, de 15/01, com a redacção que lhes foi dada pelo Dec. Lei nº 394/93, de 24/11.
3. Na perspectiva dos recorrentes, as normas citadas no número anterior são materialmente inconstitucionais por violação expressa dos artigos 32º, nºs 4 e
5, 111º e 219º, todos da Constituição da República Portuguesa, na medida em que estabelecem uma competência exclusiva da Administração Fiscal e da Segurança Social para a investigação preparatória dos crimes fiscais, afastando o Ministério em clara violação do disposto no artigo 48º do Código de Processo Penal.
4. A questão da inconstitucionalidade que agora se pretende que seja apreciada foi suscitada pelos recorrentes no recurso que interpuseram para este Tribunal da decisão de condenação proferida pelo Tribunal de 1ª instância.
[...].”
5. Também o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional desse acórdão, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 573), uma vez que “aí foi decidido afastar a aplicação ao caso concreto das normas dos arts. 11º nº 7 do RJIFNA e 14º do RGIT por ter sido entendido violarem «os princípios da adequação e da proporcionalidade consagrados no artigo 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa», «na medida em que impõem a obrigatoriedade do pagamento das quantias em dívida como condição da suspensão da execução ... da pena de prisão”.
Ambos os recursos foram admitidos, por despacho de fls. 582.
6. Nas alegações que produziram perante o Tribunal Constitucional (fls.
585 e seguintes), apresentaram A. e outra as seguintes conclusões:
“Primeira: Nos casos em que o procedimento criminal não depende de queixa ou acusação particular, quem tem legitimidade para promover o processo penal é o Ministério Público – artigo 48º do Código de Processo Penal. Segunda: É ao Ministério Público que compete a direcção do inquérito e, nomeadamente, compete determinar quais as diligências a levar a cabo no âmbito da investigação criminal, em ordem a apurar quais os responsáveis pela prática de um crime e, sobretudo, decidir sobre a acusação ou arquivamento dos autos – artigos 262º e 263º do Código de Processo Penal. Terceira: Nos termos do disposto no artigo 270º do Código de Processo Penal, o Ministério Público pode delegar a realização de alguns actos da sua competência nos órgãos de polícia criminal. Quarta: Simplesmente, quando assim sucede, tais órgãos de polícia criminal passam a agir sobre a directa orientação do Ministério Público e na sua dependência funcional – artigo 263º, nº 2 do Código de Processo Penal. Quinta: O Centro Regional de Segurança Social não é uma autoridade judiciária; não actua sob a directa orientação do Ministério Público, nem tem em relação a este qualquer dependência funcional; e, no caso dos autos, é também o próprio OFENDIDO e também ASSISTENTE. Sexta: No entanto, nos presentes autos, extravasando largamente o âmbito de uma competência delegada, o OFENDIDO Centro Regional de Segurança Social realizou todas as diligências de inquérito, de forma totalmente autónoma e funcionalmente independente do Ministério Público. Sétima: Da análise da Parte III, Capítulo I do RJIFNA, sob a epígrafe «Processo penal fiscal e de Segurança Social», nomeadamente, do disposto nos artigos 41º ,
42º, nº 2, 42º, nº 3, 43º, nº 1, 44º, nº 1 e 51º-A, todos do RJIFNA, verifica-se que, por um lado, o próprio Ministério Público deve transmitir ao órgão competente da Administração Fiscal para iniciar o processo de averiguações (cit. art. 42º, nº 3 do RJIFNA), ficando assim impedido de iniciar simultaneamente um processo de inquérito, sob pena de correrem concomitantemente dois processos de investigação dos mesmos factos por autoridade diversas; Oitava: e, por outro lado, quer as autoridades de polícia criminal, quer as autoridades judiciais, quer os outros agentes da Administração Pública, devem transmitir às autoridades da Administração Fiscal a notícia dos crimes fiscais e não ao Ministério Público. Nona: Acresce que, a competência do Ministério Público para intervir no inquérito decorre de atribuição feita através de lei especial – art. 47º, nº 2 do RJIFNA –, no qual se diz que, depois de recebido o processo de averiguações,
«pode» praticar os actos [de] inquérito que entenda necessários ao esclarecimento de qualquer dúvida que ainda persista, Décima: pelo que é legítimo afirmar que, antes de recebido o processo de averiguações, o Ministério Público não dispunha de competência geral para poder intervir no inquérito. Décima primeira: É, pois, forçoso concluir que a investigação preparatória dos crimes fiscais compete exclusivamente à Administração Fiscal e não ao Ministério Público. Décima segunda: Ora, o atrás citado artigo 48º do Código de Processo Penal – que atribui ao Ministério Público a legitimidade para promover o processo penal – é uma norma de valor constitucional, na medida em que constitui a emanação do postulado fundamental de que o Ministério Público é o órgão do Estado e da Justiça – art. 219º da Constituição da República Portuguesa (anterior art. 221º)
– a quem especificamente compete exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade democrática, ou seja, actuando num quadro constitucional e funcional a que são inerentes os princípios da legalidade, objectividade e imparcialidade. Décima terceira: Em face do exposto, na medida em que estabelecem uma competência exclusiva da Administração Fiscal e da Segurança Social para a investigação preparatória dos crimes fiscais, afastando o Ministério Público, os artigos 43º, nºs 1 e 2, 44º, nº 1 e 51º-A, todos do RJIFNA, violam frontalmente o disposto no artigo 48º do Código de Processo Penal e, por isso, são materialmente inconstitucionais por violação expressa dos artigos 32º, nºs 4 e
5, 111º, 219º, todos da Constituição da República Portuguesa (anteriores arts.
32º, nºs 4 e 5, 114º e 221º).”
7. O Ministério Público formulou as seguintes conclusões nas alegações e nas contra-alegações que apresentou neste Tribunal (fls. 590 e seguintes).
Nas alegações:
“[...]
1 – As normas do artigo 11º, nº 7, do RJIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei nº
20-A/90 (na redacção do Decreto-Lei nº 394/93, de 24 de Novembro) e do artigo
14º do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, ao exigirem como factor determinativo condicionador para a suspensão da execução da pena, o pagamento da prestação tributária e acréscimos legais, inviabilizando uma adequada ponderação da culpa concreta do agente e da sua real situação económica e financeira, com reflexos na transformação da ameaça de prisão no seu cumprimento efectivo, colidem com os princípios constitucionais da culpa, adequação e proporcionalidade.
2 – Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade da decisão recorrida.”
Nas contra-alegações:
“1. As normas dos artigos 43º, nºs 1 e 2, 44º, nº 1 e 51º-A do Decreto-Lei nº
20-A/90, de 15 de Janeiro em nada colidem com a legitimidade do Ministério Público para promover o processo criminal, nos termos do artigo 268º do Código de Processo Penal, nem com a direcção efectiva do inquérito, que detém, deixando intocáveis quer as suas funções como titular do exercício de acção penal, quer o seu estatuto de autonomia, em conformidade com o artigo 219º da Constituição.
2. Não contendem com as garantias de defesa assegurados pelo processo penal, nos termos do artigo 32º da Lei Fundamental, nem com o princípio de separação definido no seu artigo 111º.
3. Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
O Instituto de Solidariedade e Segurança Social – recorrido no recurso interposto pelo Ministério Público – não produziu alegações (fls. 598).
8. Foi, posteriormente, proferido o seguinte despacho pela relatora
(fls. 598 v.º):
“Atendendo a que, nas contra-alegações de fls. 594 e seguintes, o Ministério Público sustenta, ao contrário do defendido pelos recorrentes, que as normas cuja conformidade constitucional questionam não estabelecem «nenhuma competência exclusiva da Administração Fiscal e da Segurança Social para a investigação dos crimes fiscais, afastando o Ministério Público» e, bem assim, que tal entendimento, vertido nas contra-alegações, constitui questão prévia susceptível de obstar ao conhecimento do objecto do recurso interposto a fls. 562, notifique os recorrentes A. e B. para, querendo, se pronunciarem sobre tal questão prévia, no prazo de dez dias”.
Notificados deste despacho, vieram A. e outra dizer o seguinte (fls.
600 e seguinte):
“[...]
1- O artigo 48º do Código de Processo Penal, ao estabelecer que é o Ministério Público que tem legitimidade para promover o processo penal, assume a dignidade de norma de valor constitucional, por forma a garantir que é este o órgão do Estado e da Justiça a quem especificamente compete exercer a acção penal, orientada pelo princípio da legalidade democrática, em concretização do disposto no art. 219º da Constituição da República Portuguesa (anterior art. 221º).
2- É certo que, no âmbito do inquérito, o Ministério Público pode delegar a realização de alguns actos da sua competência, simplesmente, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 270º e 263º, nº 2 do Código de Processo Penal, para isso, terá de o fazer obrigatoriamente nos órgãos de polícia criminal, que, então, passam a actuar sob a sua directa orientação e dependência funcional, limitando-se a proceder às diligências e investigações de que aquele os encarregue.
3- Sucede que, nos presentes autos, todas as diligências levadas a cabo no
âmbito do «inquérito» foram realizadas pelo Centro Regional de Segurança Social, que não é uma autoridade judiciária, não actua em caso algum sob a directa orientação do Ministério Publico, nem tem em relação a este qualquer dependência funcional, mas, mais grave do [que] isso, é também o próprio OFENDIDO e, no caso, também ASSISTENTE no processo.
4- Ora, o que os recorrentes pretendem que seja verificado pelo presente recurso
é a conformidade constitucional da competência atribuída ao Centro Regional de Segurança Social, de forma presumidamente delegada pelo Ministério Público, ao abrigo do disposto nos artigos 43º, nº 2 e 51º-A do RJIFNA,
5- e, ainda, se os citados normativos, conjugados com o disposto da Parte III, Capítulo I do RJIFNA, sob a epígrafe «Processo penal fiscal e de Segurança Social», nomeadamente, arts. 41º, 42º, nº 2, 42º, nº 3, 43º, nº 1, 44º, nº 1, e art. 51º-A, todos do RJIFNA, estabelecem ou não uma competência exclusiva da Administração Fiscal e da Segurança Social para a investigação preparatória dos crimes fiscais.
6- Na opinião do recorrente, os arts. 43º, nºs 1 e 2, 44º, nº 1 e 51-A, do RJIFNA, conjugados com as citadas normas do referido diploma, estabelecem efectivamente tal competência exclusiva, afastando, na prática, o Ministério Público da investigação preparatória deste tipo de crimes, em clara violação do disposto no artigo 48º do Código de Processo Penal,
7- pelo que serão materialmente inconstitucionais por violação expressa dos artigos 32º, nºs 4 e 5, 111º, 219º, todos da Constituição da República Portuguesa (anteriores arts. 32º, nºs 4 e 5, 114º e 221º), inconstitucionalidade essa que foi invocada no presente recurso, devendo por ele ser apreciada.
[...].”
Cumpre apreciar.
II
9. Constitui pressuposto processual do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – aquele que foi interposto por A. e outra (supra, 4. e 6.) – a aplicação, na decisão recorrida, da norma ou interpretação normativa cuja conformidade constitucional se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie.
No requerimento de interposição do correspondente recurso, A. e outra pretendem que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional das normas dos artigos 43º, n.º s 1 e 2, 44º, n.º 1, e 51º-A, todos do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15/01, com a redacção que lhes foi dada pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24/11, “na medida em que estabelecem uma competência exclusiva da Administração Fiscal e da Segurança Social para a investigação preparatória dos crimes fiscais, afastando o Ministério Público em clara violação do disposto no artigo 48º do Código de Processo Penal”, por violação dos artigos 32º, nºs 4 e 5, 111º e 219º da Constituição (supra, 4.).
Percorrendo, todavia, a decisão recorrida (supra, 3.), verifica-se que tais normas, na interpretação questionada pelos recorrentes, não foram aplicadas.
Na verdade, entendeu o tribunal recorrido que de tais normas não decorria a subtracção da direcção do inquérito ao Ministério Público, nem a limitação de quaisquer competências ou atribuições que lhe estivessem cometidas no âmbito penal: em suma, tais normas, na perspectiva do tribunal recorrido, não afectariam a direcção funcional do inquérito por parte do Ministério Público.
Ora, se foi este o entendimento adoptado pelo tribunal recorrido, há que concluir que esse tribunal não aplicou as normas em causa na interpretação segundo a qual estabelecem uma competência exclusiva da Administração Fiscal e da Segurança Social para a investigação preparatória dos crimes fiscais. Constituindo essa interpretação, como se apontou, o objecto do presente recurso, há que concluir que não se mostra preenchido o pressuposto processual do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, a que se fez referência.
Tal conclusão não é afastada pelo argumento segundo o qual “nos presentes autos, todas as diligências levadas a cabo no âmbito do “inquérito” foram realizadas pelo Centro Regional de Segurança Social” (supra, 8.). Na verdade, o objecto do presente recurso, tal como se encontra delimitado no respectivo requerimento de interposição, não consiste – nem podia consistir, por tal não consubstanciar uma questão de constitucionalidade normativa – na questão da conformidade constitucional da atribuição, nos presentes autos, de todas as diligências do inquérito a um determinado órgão: assim sendo, de nada serve aos recorrentes invocar este circunstancialismo para demonstrar a aplicação, na decisão recorrida, de uma determinada interpretação normativa.
Por outro lado, não tendo o Tribunal Constitucional competência para proceder à interpretação autêntica de preceitos legais, mas apenas para apreciar se certa norma, na interpretação segundo a qual foi aplicada na decisão recorrida, viola ou não certos preceitos ou princípios constitucionais, não procedem os argumentos dos recorrentes segundo os quais as normas em apreço estabelecem uma competência “de forma presumidamente delegada pelo Ministério Público” ou que
“estabelecem efectivamente tal competência exclusiva, afastando, na prática, o Ministério Público”. O que caberia aos recorrentes demonstrar era a efectiva aplicação, na decisão recorrida, da interpretação normativa que identificaram no requerimento de interposição do recurso, sendo para o efeito irrelevante a demonstração da interpretação que, na sua perspectiva, resulta da lei. Não pode, assim, tomar-se conhecimento do objecto do recurso interposto pelos recorrentes A. e outra, por falta de preenchimento de um dos seu pressupostos processuais.
10. Vejamos agora o recurso interposto pelo Ministério Público ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (supra, 5. e 7.). Constitui objecto deste recurso a apreciação da conformidade constitucional das normas dos artigos 11º, n.º 7, do RJIFNA, e 14º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), este último aprovado pela Lei n.º
15/2001, de 5 de Junho.
10.1. Um dos pressupostos processuais do recurso previsto na alínea a) do n.º
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional é a recusa de aplicação, pelo tribunal recorrido, de certa norma, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Não obstante na decisão recorrida se referir expressamente que se
“afasta a aplicabilidade de tais normas ao caso concreto”, podia ainda questionar-se se tal recusa de aplicação – para efeitos da mencionada alínea a)
– só teria ocorrido relativamente à norma do artigo 14º do RGIT. E isto porque o tribunal recorrido considerou aplicável ao caso o RGIT e não o RJIFNA (vide decisão final, a fls. 556-558), “por ser o que concretamente se mostra mais favorável aos arguidos”, parecendo, portanto, que a não aplicação do artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA se ficou a dever, antes de mais, a esta circunstância (e não à sua inconstitucionalidade).
No entanto, como o problema da inconstitucionalidade deste preceito surge equacionado, na decisão recorrida, antes da determinação da lei aplicável, julga-se que o fundamento principal da sua não aplicação ainda foi a sua inconstitucionalidade, pelo que, quanto a esse preceito, se considerará preenchido o pressuposto processual acima identificado.
10.2. Dispunha o artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA (aprovado pelo Decreto-Lei n.º
20-A/90, de 15 de Janeiro), na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 394/93, de
24 de Novembro:
“Artigo 11º Pena de prisão ou multa. Suspensão
[...]
6 – É admissível nos termos do Código Penal a suspensão da pena, com as particularidades constantes do n.º 7.
7 – A suspensão é sempre condicionada ao pagamento ao Estado, em prazo a fixar pelo juiz nos termos do n.º 8, do imposto e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa, sendo aplicável, em caso de falta do cumprimento do prazo, apenas o disposto nas alíneas b), c) e d) do artigo 50º do Código Penal.
8 – Sempre que a situação económica e financeira do condenado o justifique, o tribunal pode autorizar o pagamento da multa em prestações, não podendo a última delas ir além dos dois anos subsequentes à data da condenação.
[...].”
Apenas o referido n.º 7 constitui objecto do recurso; transcreveram-se, também os n.ºs 6 e 8, para a sua melhor compreensão.
Sublinhe-se ainda que, nos termos do artigo 4º, n.º 1, do RJIFNA, aos crimes fiscais são aplicáveis, subsidiariamente, o Código Penal e legislação complementar.
Registe-se também que o artigo 50º do Código Penal – para o qual parcialmente remetia o mencionado artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA – dispunha, antes da revisão desse Código ocorrida em 1995, o seguinte:
“Artigo 50º Falta de cumprimento dos deveres Se durante o período da suspensão o condenado deixar de cumprir, com culpa, qualquer dos deveres impostos na sentença, ou for punido por outro crime, pode o tribunal, conforme os casos: a) Fazer-lhe uma solene advertência; b) Exigir-lhe garantias do cumprimento dos deveres impostos; c) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de 1 ano; d) Revogar a suspensão da pena.”
Com a revisão do Código Penal de 1995 – operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de
15 de Março – a regulação constante deste artigo 50º passou a estar contida, com algumas alterações, no artigo 55º, cuja redacção é a seguinte:
“Artigo 55º Falta de cumprimento das condições da suspensão Se, durante o período da suspensão, o condenado, culposamente, deixar de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta impostos, ou não corresponder ao plano de readaptação, pode o tribunal: a) Fazer uma solene advertência; b) Exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão; c) Impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de readaptação; d) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de 1 ano nem por forma a exceder o prazo máximo de suspensão previsto no n.º 5 do artigo 50º.”
10.3. Por seu lado, o artigo 14º do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, dispõe como segue:
“Artigo 14º Suspensão da execução da pena de prisão
1 – A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.
2 – Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode: a) Exigir garantias de cumprimento; b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível; c) Revogar a suspensão da pena de prisão.”
Refira-se ainda que, nos termos do artigo 3º do RGIT, são aplicáveis subsidiariamente, quanto aos crimes e seu processamento, as disposições do Código Penal.
10.4. Comparando o artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA com o (posterior) artigo 14º do RGIT, verifica-se que ambos condicionam a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das quantias em dívida.
Não sendo pagas tais quantias, o primeiro preceito remetia (em parte) para o regime do Código Penal relativo ao não cumprimento culposo das condições da suspensão; já o segundo preceito – que englobou tal regime do Código Penal – é mais dúbio, porque não faz referência à necessidade de culpa do condenado.
De qualquer modo, deve entender-se que a já referida aplicação subsidiária do Código Penal, prevista no artigo 3º, alínea a), do RGIT (cfr. os artigos 55º e
56º do referido Código), bem como a circunstância de só o incumprimento culposo conduzir a um prognóstico desfavorável relativamente ao comportamento do delinquente implicam a conclusão de que o artigo 14º, n.º 2, do RGIT, quando se refere à falta de pagamento das quantias, tem em vista a falta de pagamento culposa (refira-se, a propósito, na sequência de Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português / Parte Geral, II – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, pp. 342-343, que pressuposto material de aplicação da suspensão da execução da pena de prisão é a existência de um prognóstico favorável a esse respeito).
Seja como for, ambos os preceitos – o artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA e o (posterior) artigo 14º do RGIT – divergem substancialmente do regime do Código Penal respeitante aos deveres que podem condicionar a suspensão da execução da pena.
Em primeiro lugar, porque nem na redacção originária do Código Penal (cfr. artigo 49º), nem na redacção emergente da revisão de 1995 (cfr. artigo 51º) se sujeita obrigatoriamente a suspensão da execução da pena ao pagamento da quantia devida à vítima ou ao lesado.
Em segundo lugar, porque o artigo 51º, n.º 2, desse Código (versão de 1995) expressamente dispõe o seguinte:
“Artigo 51º Deveres
[...]
2. Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir.
[...].”
10.5. Ora, o tribunal recorrido (supra, 3.) considerou que a obrigatoriedade do pagamento das quantias em dívida como condição da suspensão da execução da pena de prisão (resultante do disposto no artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA e no artigo 14º do RGIT), sem se “deixar ao critério do julgador a aplicabilidade caso a caso do cumprimento do dever de pagamento das quantias em dívida, como condição da suspensão da execução da pena” – ou seja, sem se possibilitar a aplicação do mencionado artigo 51º, n.º 2, do Código Penal –, viola os princípios da adequação e da proporcionalidade.
É esta a questão que cumpre apreciar no presente recurso, sendo certo que do texto do acórdão recorrido não resulta que o tribunal tenha entendido que o recorrente efectivamente não podia pagar a quantia em dívida: o tribunal considerou simplesmente que era inconstitucional o estabelecimento de uma correspondência automática entre o montante da quantia em dívida e o montante da quantia a pagar como condição de suspensão da execução da pena de prisão, sem possibilidade de graduação, já que tal podia redundar na não consideração da impossibilidade de pagar por parte do condenado e, como tal, na necessária condenação em prisão efectiva.
Comecemos, então, por apreciar tal questão, analisando o sentido do regime constante do n.º 2 do artigo 51º do Código Penal, sem paralelo no RJIFNA e no RGIT.
10.6. Sobre o citado n.º 2 do artigo 51º do Código Penal, observa M. Maia Gonçalves (Código Penal Português, 14ª ed., Coimbra, Almedina, 2001, p. 195):
“[...] No n.º 2 consagra-se o princípio da razoabilidade, a que tem de obedecer a imposição dos deveres. O texto tem um conteúdo algo vago, e nem poderia ser de outro modo, dada a amplitude dos deveres que podem ser impostos. Trata-se de exprimir um princípio de orientação para o tribunal, de modo a habilitá-lo a delimitar o domínio em que há-de mover-se na sua faculdade de determinação dos deveres a cumprir pelo condenado em vista da reparação do mal causado pelo crime. O juiz deve averiguar da possibilidade de cumprimento dos deveres impostos, ainda que, posteriormente, no caso de incumprimento, deva apreciar da alteração das circunstâncias que determinaram a impossibilidade, para o efeito de decidir sobre a revogação da suspensão. Não devem ser impostos ao arguido deveres, nomeadamente o de indemnizar, sem que seja viável a possibilidade de cumprimento desses deveres. Como pondera o Prof. Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, III, pág. 208, prática contrária significaria apenas adiar a execução da pena de prisão.
[...].”
Mas já Jorge de Figueiredo Dias (ob. cit., p. 350), antes da entrada em vigor da revisão do Código Penal de 1995 – que introduziu o mencionado artigo
51º, n.º 2 –, observava que a imposição de deveres e regras de conduta haveria forçosamente de sofrer uma dupla limitação: “a de que, em geral, eles sejam compatíveis com a lei, nomeadamente com todo o asseguramento possível dos direitos fundamentais do condenado; e a de que, além disso, o seu cumprimento seja exigível no caso concreto”. E acrescentava (ob. cit., p. 351): “Quanto à exigibilidade de que, em concreto, devem revestir-se os deveres e regras de conduta, o critério essencial é o de que eles têm de encontrar-se numa relação estrita de adequação e de proporcionalidade com os fins preventivos almejados. Não seria adequado, neste sentido, impor ao agente, v.g., o reatamento de uma relação conjugal ou amorosa; como não seria proporcional impor-lhe, v.g., uma apresentação diária a uma qualquer entidade oficial durante os 5 anos de suspensão ou muito distante do seu local de residência ou de trabalho”.
Concretamente quanto à obrigação do condenado de “pagar dentro de certo prazo a indemnização devida ao lesado ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea” enquanto condição de suspensão da execução da pena consagrada no artigo 49º, n.º 2, alínea a), do Código Penal de 1982 (versão originária), entendia Jorge de Figueiredo Dias (ob. cit., p. 352), que “[c]onexionando esta obrigação com a cláusula de exigibilidade contida no art. 49º-3, parece dever concluir-se que a suspensão é ainda compatível com um pagamento parcial, se o tribunal concluir que só este é concretamente exigível”.
10.7. A questão que ora nos ocupa tem algumas afinidades com uma outra que já foi discutida no Tribunal Constitucional.
Assim, no acórdão n.º 440/87, de 4 de Novembro (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 10º volume, 1987, p. 521), o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional a norma do artigo 49º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982 (versão originária), na parte em que ela permite que a suspensão da execução da pena seja subordinada à obrigação de o réu “pagar dentro de certo prazo a indemnização devida ao lesado”. Nesse acórdão, depois de se ter salientado que se deve considerar como princípio consagrado na Constituição a proibição da chamada “prisão por dívidas”, entendeu-se, para o que aqui releva, o seguinte:
“[...]
[...] nos termos do artigo 50º, alínea d), do actual Código Penal, o tribunal pode revogar a suspensão da pena, «se durante o período da suspensão o condenado deixar de cumprir, com culpa, qualquer dos deveres impostos na sentença», v.g., o de «pagar dentro de certo prazo a indemnização devida ao lesado» [artigo 49º, n.º 1, alínea a), primeira parte]. Nunca, porém, se poderá falar numa prisão em resultado do não pagamento de uma dívida: – a causa primeira da prisão é a prática de um «facto punível» (artigo 48º do Código). Como se escreveu no acórdão recorrido, «o que é vedado é a privação da liberdade pela única razão do não cumprimento de uma obrigação contratual, o que é coisa diferente». Aliás, a revogação da suspensão da pena é apenas uma das faculdades concedidas ao tribunal pelo citado artigo 50º para o caso de, durante o período da suspensão, o condenado deixar de cumprir, com culpa, qualquer dos deveres impostos na sentença: – na verdade, «conforme os casos», pode o tribunal, em vez de revogar a suspensão, «fazer-lhe [ao réu] uma solene advertência [alínea a)], exigir-lhe garantias do cumprimento dos deveres impostos» [alínea b)] ou
«prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de um ano» [alínea c)].”
Por outro lado, no acórdão n.º 596/99, de 2 de Novembro (publicado no Diário da República, II Série, n.º 44, de 22 de Fevereiro de 2000, p. 3600), o Tribunal Constitucional não considerou inconstitucional, designadamente por violação do artigo 27º, n.º 1, da Constituição, a norma constante do artigo 51º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na parte em que permite ao juiz condicionar a suspensão da execução da pena de prisão à efectiva reparação dos danos causados ao ofendido. Foram os seguintes os fundamentos dessa decisão:
“[...]
8. A alegada inconstitucionalidade do artigo 51º, nº 1, alínea a) do Código Penal, na redacção do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março. Dispõe o artigo 51º, nº 1, alínea a) do Código Penal que «a suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea». Trata-se mais uma vez, no entender do recorrente, da previsão de uma situação de
«prisão por dívidas», proibida pela Constituição. Desde logo deve notar-se que tem inteira razão o Ministério Público quando refere que, a proceder, a argumentação do recorrente acabaria por redundar em seu próprio prejuízo, «na medida em que a considerar-se inconstitucional a norma ora objecto de recurso, estaria afastada a possibilidade de suspensão da execução da pena – que só se justifica pela ‘condição’ estabelecida naquele preceito – restando-lhe o inexorável cumprimento da pena de prisão que a decisão recorrida, em primeira linha, lhe impôs...».
É, no entanto, manifestamente improcedente a alegação de que a norma que se extrai do artigo 51º, nº 1, alínea a) do Código Penal, traduz uma violação do princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à liberdade e
à segurança (artigo 27º, n.º 1 da Constituição). Na realidade, e mais uma vez, não se trata aqui da impossibilidade de cumprimento como única razão da privação da liberdade, mas antes da consideração de que, em certos casos, a suspensão da execução da pena de prisão só permite realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição se a ela – suspensão da execução – se associar a reparação dos danos provocados ao lesado, traduzida no pagamento (ou prestação de garantia de pagamento) da indemnização devida.
[...].”
Apesar da afinidade com a questão de que ora cumpre apreciar, nos arestos citados não estava em causa o problema da conformidade constitucional (à luz dos princípios da adequação e da proporcionalidade) da imposição de uma obrigação que, no próprio momento em que é imposta, pode ser de cumprimento impossível pelo condenado, mas um outro (que Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 353, aliás, considerou absolutamente infundado), que era o de “saber se o condicionamento da suspensão pelo pagamento da indemnização não configuraria, quando aquele pagamento não viesse a ser feito, uma (inconstitucional) prisão por dívidas”.
De qualquer modo, dos arestos citados extrai-se uma ideia importante para a resolução da presente questão: é ela a de que não faz sentido analisá-la
à luz da proibição da prisão por dívidas. Na verdade, mesmo que se considere – e
é isso que importa determinar – desproporcionada a imposição da totalidade da quantia em dívida como condição de suspensão da execução da pena, o certo é que o motivo primário do cumprimento da pena de prisão não radica na falta de pagamento de tal quantia, mas na prática de um facto punível.
10.8. A questão em análise tem também algumas afinidades com a questão da conformidade constitucional do estabelecimento dos limites da pena de multa em função do valor da prestação em falta, analisada pelo Tribunal Constitucional a propósito dos artigos 24º, n.º 1, e 23º, n.º 4, do RJIFNA (cfr., por exemplo, os acórdãos n.ºs 548/01, de 7 de Dezembro, e 432/02, de 22 de Outubro, respectivamente publicados no Diário da República, II Série, n.º 161, de 15 de Julho de 2002, p. 12639, e n.º 302, de 31 de Dezembro de 2002, p. 21183).
Neste último aresto, disse-se nomeadamente o seguinte:
“[...] Por outro lado – e sendo certo que o legislador goza de ampla margem de liberdade na fixação dos limites mínimo e máximo das molduras penais –, não se afigura que o critério da vantagem patrimonial pretendida pelo agente, adoptado na norma em apreço, se revele ofensivo dos princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação das penas. Contrariamente ao que sustenta o recorrente, a adopção de um tal critério não significa que a pena aplicável ao crime de fraude fiscal prossiga o fim da retaliação ou da expiação. É que a conduta que lhe subjaz é tanto mais grave e socialmente mais lesiva quanto mais elevado for o montante envolvido: como tal, é ainda a protecção de um bem jurídico o que se visa e não a mera censura do agente.
[...].”
Desta passagem retira-se uma importante consideração para o problema que nos ocupa.
É ela a de que, podendo a realização dos fins do Estado – dependente do cumprimento do dever de pagar impostos – justificar a adopção do critério da vantagem patrimonial no estabelecimento dos limites da pena de multa, não há qualquer motivo para censurar, como desproporcionada, a obrigação de pagamento da quantia em dívida como condição da suspensão da execução da pena. As razões que, relativamente à generalidade dos crimes, subjazem ao regime constante do artigo 51º, n.º 2, do Código Penal (supra, 10.6.), não têm necessariamente de assumir preponderância nos crimes tributários: no caso destes crimes, a eficácia do sistema fiscal pode perfeitamente justificar regime diverso, que exclua a relevância das condições pessoais do condenado no momento da imposição da obrigação de pagamento e atenda unicamente ao montante da quantia em dívida. Dito de outro modo, o objectivo de interesse público que preside ao dever de pagamento dos impostos justifica um tratamento diferenciado face a outros deveres de carácter patrimonial e, como tal, uma concepção da suspensão da execução da pena como medida sancionatória que cuida mais da vítima do que do delinquente (sobre a suspensão da execução da pena como medida que “permite cuidar ao mesmo tempo do delinquente e da vítima”, veja-se Manso-Preto, “Algumas considerações sobre a suspensão condicional da pena”, in Textos, Centro de Estudos Judiciários, 1990-91, p. 173).
10.9. As normas em apreço não se afiguram, portanto, desproporcionadas, quando apenas encaradas na perspectiva da automática correspondência entre o montante da quantia em dívida e o montante a pagar como condição de suspensão da execução da pena, atendendo à justificável primazia que, no caso dos crimes fiscais, assume o interesse em arrecadar impostos.
Cabe, todavia, questionar se não existirá desproporção quando, no momento da imposição da obrigação, o julgador se apercebe de que o condenado muito provavelmente não irá pagar o montante em dívida, por impossibilidade de o fazer.
Esta impossibilidade, que não chegou a ser declarada pelo tribunal recorrido – pois que este analisou a questão em abstracto, sem averiguar se o ora recorrente efectivamente estava impossibilitado de cumprir (supra, 10.5.) –, não altera, todavia, a conclusão a que se chegou.
Em primeiro lugar, porque perante tal impossibilidade, a lei não exclui a possibilidade de suspensão da execução da pena.
Dir-se-á que tal exclusão se encontra implícita na lei, atendendo a que não seria razoável que a lei permitisse ao juiz condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de um dever que ele próprio sabe ser de cumprimento impossível.
Todavia, tal objecção não procede, pois que traz implícita a ideia de que o juiz necessariamente elabora um prognóstico quanto à possibilidade de cumprimento da obrigação, no momento do decretamento da suspensão da execução da pena. Ora, nada permite supor a existência de um tal prognóstico: sucede apenas que a lei – bem ou mal, mas este aspecto é, para a questão de constitucionalidade que nos ocupa, irrelevante –, verificadas as condições gerais de suspensão da execução da pena (nas quais não se inclui a possibilidade de cumprimento da obrigação de pagamento da quantia em dívida), permite o decretamento de tal suspensão. O juízo do julgador quanto à possibilidade de pagar é, para tal efeito, indiferente.
Em segundo lugar, porque mesmo parecendo impossível o cumprimento no momento da imposição da obrigação que condiciona a suspensão da execução da pena, pode suceder que, mais tarde, se altere a fortuna do condenado e, como tal, seja possível ao Estado arrecadar a totalidade da quantia em dívida.
A imposição de uma obrigação de cumprimento muito difícil ou de aparência impossível teria assim esta vantagem: a de dispensar a modificação do dever (cfr. artigo 51º, n.º 3, do Código Penal) no caso de alteração (para melhor) da situação económica do condenado. E, neste caso, não se vislumbra qualquer razão para o seu tratamento de favor, nem à luz do princípio da culpa, nem à luz dos princípios da proporcionalidade e da adequação.
Em terceiro lugar, e decisivamente, o não cumprimento não culposo da obrigação não determina a revogação da suspensão da execução da pena. Como claramente decorre do regime do Código Penal para o qual remetia o artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA, bem como do n.º 2 do artigo 14º do RGIT, a revogação é sempre uma possibilidade; além disso, a revogação não dispensa a culpa do condenado
(supra, 10.4.).
Não colidem, assim, com os princípios constitucionais da culpa, adequação e proporcionalidade, as normas contidas no artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA, e no artigo 14º do RGIT.
III
11. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não conhecer do objecto do recurso interposto, a fls. 562, pelos recorrentes A. e B.;
b) Não julgar inconstitucionais as normas contidas no artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90 (na redacção do Decreto-Lei n.º
394/93, de 24 de Novembro), e no artigo 14º do RGIT, aprovado pela Lei n.º
15/2001, de 5 de Junho;
c) Consequentemente, conceder provimento ao recurso interposto, a fls.
573, pelo Ministério Público, e determinar a reforma da decisão recorrida de acordo com tal juízo de não inconstitucionalidade.
Custas pelos recorrentes A. e B.., fixando-se a taxa de justiça em oito unidades de conta, por cada um.
Lisboa, 21 de Maio de 2003 Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício Luís Nunes de Almeida