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Processo n.º 939/13
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que é reclamante A., S.A. e é reclamada a Fazenda Nacional, o primeiro reclamou, ao abrigo do disposto no artigo 76.º, n.º 4, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC, do despacho daquele tribunal que, em 11 de junho de 2013, não admitiu recurso para o Tribunal Constitucional.
2. A aqui reclamante recorreu da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra o indeferimento do pedido de revisão oficiosa relativo à autoliquidação de IRC durante o exercício de 2005.
Por acórdão de 13 de março de 2013 o Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, considerando extemporâneo o pedido de revisão do ato tributário apresentado.
Arguida a nulidade deste acórdão, com fundamento em excesso de pronúncia (sustentando a recorrente que a intempestividade do pedido de revisão oficiosa não estava em causa nos autos mas apenas a existência de erro imputável aos serviços), foi a mesma indeferida, por acórdão de 15 de maio de 2013.
A recorrente interpôs, então, recurso para o Tribunal Constitucional do “bloco indissociável” formado pelos dois acórdãos proferidos no Supremo Tribunal Administrativo.
No entanto, tal recurso não foi admitido, pelo Conselheiro Relator, por despacho de 11 de junho de 2013, com o seguinte teor:
«I. Não se conformando com o teor do acórdão deste STA de 13.03.2013 (fls. 173 e segs.), veio a recorrente interpor recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto no art.º 70º, nº 1, alínea b) da Lei nº 28/82, de 15 de novembro (fls. 213 e segs.).
Refere a recorrente que “A norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada é o artº 660º, nº 2 do CPC, nos termos em que foi interpretada e aplicada pelo Tribunal recorrido.”
Vejamos se este recurso é ou não legalmente admissível.
II. Diz o artº 70º, nº1, alínea b) da lei acima citada que:
“1. Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, sem secção, das decisões dos tribunais:
b) Que apliquem nora cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo;”
Ora, se examinarmos os autos, em nenhuma peça processual foi alguma vez suscitada a inconstitucionalidade da norma do artº 660, nº 2 do CPC, sendo esta norma apenas invocada pela recorrente para arguir a nulidade do acórdão que lhe foi desfavorável.
É certo que a recorrente invoca a fls. 216 que não suscitou anteriormente a questão da inconstitucionalidade, uma vez que só agora, após o indeferimento da arguição da nulidade do acórdão, se mostrou pertinente esse invocação.
Porém, com o devido respeito, a recorrente interpreta mal a transcrita alínea b), já que o objetivo desta alínea é o de permitir que o Tribunal Constitucional possa apreciar a inconstitucionalidade suscitada relativamente a norma aplicada na decisão de mérito pelo Tribunal recorrido.
No caso dos autos, o que o recorrente pretende é que o Tribunal Constitucional venha a apreciar matéria processual – que não é da sua competência – e que é a de saber se existiu ou não excesso de pronúncia, matéria que nada tem a ver com a constitucionalidade de normas.
III. Nestes termos e pelo exposto, rejeito o recurso para o Tribunal Constitucional por o mesmo ser legalmente inadmissível.
Custas pela recorrente.»
Foi deste despacho que a recorrente reclamou para o Tribunal Constitucional.
3. A reclamante sustenta a reclamação, nos seguintes fundamentos:
«12.º
Conforme supra se aludiu, considerou o Tribunal recorrido inadmissível o recurso para o Tribunal Constitucional com fundamento na circunstância de se impor, para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, que se trate de “(...) inconstitucionalidade suscitada relativamente a norma aplicada na decisão de mérito pelo Tribunal recorrido” .
13.º
Sucede que, com o devido respeito, um entendimento de tal ordem não pode proceder.
14.º
Com efeito, determina a alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82 que “Cabe recurso para o Tribunal Constitucional (...) que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”.
15.º
Resulta da referida norma, pois, que a inconstitucionalidade deve ser suscitada durante o processo.
16.º
A menção a “durante o processo” não remete exclusivamente, como é evidente, para uma decisão de mérito.
17.º
De facto, é possível concluir que o legislador pretendeu, mediante uma formulação genérica como a que supra se aduziu, abarcar toda e qualquer invocação de inconstitucionalidade, desde que a mesma se efetue, de modo tempestivo e procedimentalmente adequado, durante o processo.
18.º
Efetivamente, não sendo efetuado qualquer tipo de restrição naquela norma ao tipo de decisão recorrida que aplique a norma considerada inconstitucional, o intérprete não pode restringir, sem qualquer fundamento, a invocação de inconstitucionalidade a normas aplicadas em decisões de mérito proferidas pelo Tribunal recorrido.
19.º
Assim, improcede o argumento que sustenta que a invocação da inconstitucionalidade das normas se deverá efetuar por referência a normas aplicadas na decisão de mérito proferida pelo Tribunal recorrido.
20.º
É certo, e não se ignora, que, em regra e conforme decorre do disposto no n.º 2 do artigo 72.º da Lei n.º 28/82, a norma cuja inconstitucionalidade se suscita é aplicada pelo Tribunal recorrido numa decisão de mérito, impondo-se, por conseguinte, que o interessado tenha invocado a sua inconstitucionalidade de modo tempestivo e procedimentalmente adequado antes da prolação daquela decisão.
21 .º
Esta regra admite, todavia e como se tem reconhecido na doutrina e na jurisprudência, determinadas exceções, designadamente em situações em que o recorrente não teve oportunidade de suscitar a questão de inconstitucionalidade por o conteúdo da decisão recorrida constituir uma verdadeira “decisão-surpresa2.
22.º
Neste sentido, refere CARLOS LOPES DO REGO que “A jurisprudência constitucional sempre admitiu, porém, que tal princípio ou regra - que obriga a suscitar a questão de inconstitucionalidade antes da prolação da decisão recorrida — tem de sofrer restrições ou limitações em determinadas situações processuais excecionais ou anómalas. (...) naqueles casos em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de ser proferida a decisão recorrida, face ao tipo de intervenção processual que lhe foi consentido, ou por se tratar de “decisão-surpresa” , de conteúdo insólito ou imprevisível, tornando inexigível a prévia suscitação de tal questão, antes de parte ter sido confrontada com o teor da decisão proferida” (cf. “Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional”, Almedina, janeiro 2010, pp. 78-9).
23.º
Com efeito, a não ser assim, o interessado que se visse confrontado, já após a prolação da decisão de mérito, com a aplicação inconstitucional de uma norma com a qual não pudesse prever, ver-se-ia coartado no seu direito a uma tutela judicial efetiva.
24.º
Deste modo, resulta evidente a admissibilidade de invocação de inconstitucionalidade em momento posterior à prolação de uma decisão de mérito.
25.º
É precisamente o que se impõe no caso sub judice.
26.º
Com efeito, a inconstitucionalidade invocada pelo ora Reclamante no recurso dirigido ao Tribunal Constitucional respeita a uma interpretação normativa efetuada apenas no acórdão que indeferiu o requerimento de arguição de nulidade apresentado, relativamente à qual não era exigível que o Reclamante antevisse a necessidade de suscitação de uma inconstitucionalidade.
27.º
De facto, antes da prolação daquele acórdão, no âmbito do qual se entendeu, fazendo apelo ao disposto no n.º 2 do artigo 660.º do CPC, que compete ao juiz pronunciar-se sobre uma exceção suscitada pela administração tributária na sua contestação, mesmo que o objeto mediato da impugnação judicial fosse uma decisão proferida pela mesma administração tributária em que aquela questão já fora expressamente decidida em sentido favorável ao Impugnante, não era possível ao Reclamante ter previsto a suscitação de uma questão de inconstitucionalidade.
28.º
Neste sentido, considerou já o Tribunal Constitucional que “(...) será exigência desproporcionada impor esse juízo de prognose em situações em que determinada norma apenas é chamada à decisão do caso pelo tribunal de último grau de recurso, sem que a discussão travada ao longo do processo e as decisões anteriores nesse tomadas tenham versado sobre tal possibilidade (...)” (cf. Acórdão n.º 188/07).
29.º
Assim, a invocação da inconstitucionalidade da interpretação normativa do disposto no n.º 2 do artigo 660.º do CPC foi tempestiva e procedimentalmente adequada.
30.º
Pelo que, em face de todo o exposto, resulta evidente a admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional, impondo-se, por conseguinte, a revogação do despacho reclamado e a sua substituição por outro que determine a admissibilidade do recurso.
31 .º
Por fim, também não pode proceder o entendimento segundo o qual “(...) o que o recorrente pretende é que o Tribunal Constitucional venha a apreciar matéria processual - que não é da sua competência - e que é a de saber se existiu ou não excesso de pronúncia, matéria que nada tem a ver com a constitucionalidade das normas”.
32.º
Efetivamente, e com o devido respeito, também aqui não assiste razão ao Tribunal recorrido.
33.º
Com efeito, não subsiste qualquer dúvida, atentando no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, que o Reclamante invocou a inconstitucionalidade do disposto no artigo 660.º, n.º 2, do CPC, nos termos em que a mesma foi interpretada e aplicada pelo Tribunal recorrido.
34.º
Não há qualquer tentativa de apreciação de matéria processual, ou de uma nulidade, mas de uma interpretação normativa.
35.º
De facto, é assente e aceite pela jurisprudência do próprio Tribunal Constitucional que os recursos de fiscalização concreta podem incidir sobre interpretações normativas, em que a norma é considerada em função do modo como foi aplicada no caso concreto.
36.º
Neste sentido, salienta CARLOS LOPES DO REGO que “Tal fenómeno vem assumindo, aliás, relevância crescente no domínio da fiscalização concreta: perante preceitos, disposições ou comandos jurídicos suscetíveis de várias interpretações, o controlo do Tribunal Constitucional vai ser exercido sobre o resultado de uma dada interpretação judicial da norma (...)” (cf. Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional”, Almedina, janeiro 2010, pp. 32).
37.º
Pelo que, em face do exposto, resulta evidente a admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional, impondo-se, por conseguinte, a revogação do despacho reclamado e a sua substituição por outro que determine a admissibilidade do recurso.
Termos em que se requer a V. Exa. que a presente reclamação seja julgada procedente, por provada, revogando-se o despacho reclamado e substituindo-se por outro que admita o recurso para o Tribunal Constitucional, com as demais consequências legais.»
4. O Exmo. Representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. Dispõe o n.º 4 do referido artigo 76.º da LTC, que do despacho que indefira o requerimento de interposição de recurso ou retenha a sua subida cabe reclamação para o Tribunal Constitucional, competindo a este Tribunal averiguar se se encontravam reunidos os pressupostos necessários à admissão do recurso que foi recusada pelo tribunal a quo.
6. De acordo com o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – ao abrigo da qual foi interposto o recurso de constitucionalidade –, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
7. No recurso interposto para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a aqui reclamante formula o seguinte pedido:
“(…) A norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada é o artigo 660º, n.º 2, do CPC, nos termos em que foi interpretada e aplicada pelo Tribunal recorrido.”
Na parte expositiva do recurso apresenta três formulações da interpretação do citado preceito legal:
“(…) o Tribunal recorrido interpretou e aplicou implicitamente o disposto no artigo 660.º, n.º 2, do CPC, ex vi artigo 2.º do CPPT, no sentido de que compete ao juiz resolver quaisquer questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, ainda que sobre as mesmas se tenha formado, anteriormente, caso decidido» (art. 5.º);
(…) para o Tribunal a quo, e ainda que o processo judicial tributário constitua um contencioso de anulação, é lícito ao juiz pronunciar-se sobre uma exceção suscitada pela administração tributária na sua contestação, mesmo que o objeto mediato da impugnação judicial que o Impugnante deduziu seja uma decisão proferia pela mesma administração tributária, em que aquela questão já foi expressamente decidida em sentido favorável ao Impugnante» (art. 6.º);
(…) a interpretação segundo a qual não extravasa o objeto do litígio a sindicância de uma questão invocada pela administração tributária na sua contestação, sobre a qual já se constituíra caso decidido na decisão administrativa impugnada, é atentatória do direito do contribuinte a uma tutela judicial efetiva (art. 8.º)”.
8. A presente reclamação tem por objeto o despacho do Supremo Tribunal Administrativo que não admitiu o recurso de constitucionalidade interposto pela recorrente por não se poder dar como verificado o requisito da suscitação prévia e processualmente adequada, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, de qualquer questão de inconstitucionalidade normativa relativamente à norma cuja apreciação é requerida pela recorrente.
A reclamante refuta este entendimento, referindo que a decisão recorrida constituiu uma «decisão-surpresa».
Não procede a argumentação expendida.
A razão pela qual o Tribunal Constitucional tem dispensado, em casos excecionais ou anómalos, este ónus de suscitar a inconstitucionalidade de forma adequada perante o tribunal a quo, em tempo de este a poder julgar, é a de considerar não exigível antecipar um sentido objetivamente inesperado, sobre o qual o recorrente não teve a oportunidade de se pronunciar antes de proferida a decisão recorrida.
Ora, não pode ser defendido que a interpretação adotada pelo acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de maio de 2013 tenha constituído uma surpresa, já que, por via do mesmo, o tribunal a quo se limitou a decidir a nulidade que era arguida com fundamento em excesso de pronúncia, precisamente o mesmo fundamento em que a recorrente alicerça agora as questões de inconstitucionalidade colocadas.
Assim, numa avaliação ponderada dos resultados possíveis da arguição da nulidade que apresentava, não podia a recorrente deixar de equacionar a interpretação ora contestada, pelo que sempre poderia ter suscitado a questão da sua inconstitucionalidade no momento da referida arguição.
9. Deve, assim, concluir-se que a questão de constitucionalidade não foi atempadamente suscitada perante o tribunal a quo. Desta forma, a recorrente não concedeu a este tribunal a possibilidade de decidir sobre a inconstitucionalidade de norma supostamente em questão.
Assim, independentemente da falta de verificação de outros pressupostos de conhecimento do recurso, na ausência do preenchimento do requisito processual em causa, não pode a presente reclamação deixar de improceder.
Termos em que se impõe indeferir a presente reclamação.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 8 de outubro de 2013. Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria João Antunes - Maria Lúcia Amaral