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Proc. nº 150/03 Acórdão nº 258/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. deduziu reclamação, ao abrigo do disposto no artigo 76º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional, do despacho do Relator que, no Tribunal da Relação de Coimbra, não admitiu o recurso que pretendia interpor para o Tribunal Constitucional do acórdão proferido pelo mesmo Tribunal da Relação de Coimbra, através do qual se decidira rejeitar, com fundamento em extemporaneidade, o recurso por si interposto de sentença anteriormente proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco.
2. Resulta dos autos que:
2.1. Por sentença de 31 de Outubro de 2001, do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, foi o arguido A. condenado pela prática de um crime de dano previsto e punido pelo artigo 212º, nº 1, do Código Penal, na pena de oitenta dias de multa, à razão diária de novecentos escudos (fls 19 e seguintes dos presentes autos de reclamação).
2.2. Notificado da sentença, o arguido requereu ao Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco a prorrogação por dez dias do prazo de interposição do recurso da decisão, invocando o disposto no nº 6 do artigo 698º do Código de Processo Civil (requerimento de fls. 28 destes autos).
2.3. Em 9 de Outubro de 2001, foi proferido despacho em que, “por aplicação analógica” do artigo 698º, nº 6, do Código de Processo Civil, se deferiu a prorrogação requerida, com a indicação de que “em processo penal o recurso interposto tem, desde logo, [de] vir acompanhado das competentes alegações”
(fls. 29).
2.4. O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 8 de Maio de 2002
(fls. 68 e seguintes), rejeitou o recurso, por entender que o mesmo tinha sido interposto extemporaneamente.
Lê-se no texto desse acórdão:
“[...] a concessão do requerido benefício de prazo para interposição de recurso, e seu deferimento, não tem o menor apoio na letra, ou no espírito da lei, e é perfeitamente ilegal. O prazo da interposição de recurso em processo penal tem a sua regulamentação necessária e suficiente no artigo 411.º nº 1 do Código de Processo Penal, não existindo lugar a qualquer diferenciação entre recurso restrito à matéria de direito e recurso relativo à matéria de facto. É, assim, desproporcionada a invocação de uma norma de processo civil para uma aplicação analógica numa situação que está devidamente regulada no Código de Processo Penal. Nessa conformidade, e porquanto o presente recurso foi interposto extemporaneamente, não se toma conhecimento do mesmo rejeitando-se o mesmo nos termos do artigo 420.º do Código de Processo Penal.
[...].”
2.5. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pedindo a apreciação da constitucionalidade da norma que resulta da interpretação dada no acórdão da Relação de Coimbra aos “artigos 411º, nº 1, 420º e 671º a 673º do Código de Processo Penal” [assim, no original], por entender que tal norma viola o disposto nos “artigos 20º, 32º, nº 1, e 205º, nº 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa” [assim, no original] (requerimento de fls. 76 e vº).
No requerimento, justificou-se deste modo a não invocação da inconstitucionalidade durante o processo:
“[...]
A questão da inconstitucionalidade não foi previamente suscitada, na motivação do recurso para o Venerando Tribunal da Relação, uma vez que está em causa a aplicação imprevisível de uma norma (ou de uma sua interpretação, dimensão ou parte) pelo Tribunal a quo.
Com efeito, o Tribunal a quo decidiu, não a matéria que lhe foi colocada nas alegações de recurso, mas sim sobre outra questão, já anteriormente decidida, com trânsito em julgado, pelo Tribunal de Primeira Instância.
Isto é, no caso em apreço, a questão de inconstitucionalidade só pode ser deduzida perante o Tribunal Constitucional por tal questão respeitar a uma aplicação normativa com que não podia razoavelmente contar, numa perspectiva ex ante.
[...].”
2.6. Por despacho de 17 de Junho de 2002 (fls. 79), o Relator, no Tribunal da Relação de Coimbra, decidiu não admitir o recurso para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
“O acórdão recorrido não se pronuncia sobre qualquer questão de constitucionalidade – 70 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional. A única questão em causa é tão só a de saber se o Tribunal superior está vinculado pela decisão do Tribunal recorrido a admitir o recurso ou se, da conjugação dos artigos 414º e 420º do Código de Processo Penal, não resulta a imposição legal de rejeição quando o recurso for interposto fora de prazo. Nesta conformidade, nos termos do artigo 76º do diploma citado, não se admite o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
[...].”
2.7. A. veio então deduzir reclamação do despacho de não admissão do recurso, ao abrigo do disposto no artigo 76º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 2 a 5).
No requerimento apresentado, o ora reclamante sustentou:
“[...] No caso dos autos, o ora reclamante alegou que a questão de inconstitucionalidade não tinha sido previamente suscitada na motivação de recurso, pois que o Tribunal a quo pronunciou-se não sobre a matéria que lhe foi colocada nas alegações de recurso, mas sim sobre matéria já decidida pelo Tribunal de Primeira Instância e transitada em julgado. Pelo que, para o recorrente era impossível suscitar qualquer questão de inconstitucionalidade antes de se confrontar com a decisão proferida pelo Tribunal a quo. O Tribunal da Relação de Coimbra decidiu não admitir o recurso interposto para esse Venerando Tribunal, nos termos do art. 76° da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional. Ora, Salvo o devido e merecido respeito, não tem porém razão o Tribunal a quo. Com efeito, O Tribunal da Relação de Coimbra decidiu antes de apreciar a «substância» do recurso interposto pelo recorrente, fazer «uma consideração prévia de natureza formal». Ou seja, A Relação de Coimbra decidiu analisar o acervo factual existente nos autos antes da interposição do requerimento de recurso e da respectiva motivação de recurso, acervo factual esse vertido em despacho, que não foi objecto de qualquer recurso pelas partes e, que, portanto transitou em julgado. Isto é, Ao contrário do vertido no despacho de que ora se reclama para esse Venerando Tribunal Constitucional, não está em causa unicamente saber se o Tribunal Superior está ou não vinculado à decisão do Tribunal recorrido que admitiu o recurso. De facto, está em causa saber se o Tribunal Superior pode apreciar matéria constante dos autos que lhe são enviados pelo Tribunal recorrido, matéria essa que foi objecto de apreciação por parte do Juiz detentor do processo e decidida através de despacho, despacho esse que não foi sujeito a qualquer recurso interposto pelas partes e por conseguinte transitado em julgado; Está igualmente em causa saber se o Tribunal Superior pode arbitrariamente violar o caso julgado de decisões proferidas nos autos que lhe são remetidos pelo Tribunal Recorrido, proferindo em sua substituição outro, em perfeita e completa contradição. Pelo que e salvo o devido respeito, não só o Tribunal da Relação de Coimbra violou o trânsito em julgado de um despacho e por conseguinte o caso julgado que a mesma tem inerente, como extravasou a sua competência com tal violação. De facto, é precisamente por o Tribunal a quo ter apreciado algo que tinha transitado definitivamente em julgado, que o ora reclamante entende que tal decisão, pela interpretação que fez daqueles preceitos legais, se encontra ferida de inconstitucionalidade. Ora, salvo o devido respeito, ao serem violados os princípios da boa fé, do caso julgado, da segurança jurídico processual dos actos jurisdicionais, com a interpretação que o Tribunal a quo fez do disposto nos artigos 411°, 420º do C. P. Penal e dos artigos 698°, n° 6, 671° a 673° do C. P. Civil (ex vide o art. 4° do C. P. Penal), está-se perante uma violação grave de preceitos constitucionais. Aliás, esse Acórdão de que se pretende recorrer teve um voto de vencido que acompanha a mesma, que desde já se louva e, cujo conteúdo, se subscreve inteiramente. Assim, salvo o devido respeito, é evidente que o Reclamante apresentou correctamente o seu requerimento de interposição de recurso para esse Venerando Tribunal, devendo, por isso mesmo, este ser admitido.
[...].”
3. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de que a presente reclamação deve ser julgada procedente, pelas razões que a seguir se indicam (fls. 80 vº a 81 vº):
“[...]
É manifesto que, neste concreto circunstancialismo processual, não era exigível ao recorrente a atempada suscitação da questão de constitucionalidade que apenas colocou no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal Constitucional: não era, na verdade, previsível que a Relação oficiosamente
«revogasse» o despacho judicial que – bem ou mal – havia prorrogado o prazo de que o recorrente beneficiava (em termos de «confiança processual») para interpor e motivar o seu recurso, visando a reapreciação de prova gravada ou registada. É que, no caso dos autos, não está em causa o incontroverso princípio segundo o qual o tribunal «ad quem» não está vinculado pelo despacho de admissão do recurso, mas antes a «definitividade» de uma outra decisão jurisdicional prévia que – em termos substanciais – concedeu uma «prorrogação» do prazo à parte. Afigura-se, por outro lado, que a questão de constitucionalidade suscitada no requerimento de interposição de recurso, a fls. 76, apesar de padecer de alguma deficiência formal, é suficientemente inteligível, prendendo-se com a definitividade e vinculatividade do despacho (não impugnado) que concedeu à parte a prorrogação de prazo para interpor e motivar o recurso incidente sobre prova gravada – e assentando, consequentemente, no essencial, sobre as normas do processo civil que definem e delimitam o caso julgado formal.
[...].”
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. O ora reclamante fundou o seu recurso na alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional, pedindo a apreciação da inconstitucionalidade da norma que resulta da interpretação dada no acórdão da Relação de Coimbra aos artigos 411º, nº 1, e 420º do Código de Processo Penal e aos artigos 671º a 673º do Código de Processo Civil [no requerimento de interposição do recurso refere-se, certamente por lapso, que todos os preceitos indicados pertencem ao Código de Processo Penal], por entender que tal norma viola o disposto nos artigos 20º, 32º, nº 1, e 205º, nº 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa [assim, no original].
Por outras palavras – e não obstante as imprecisões detectadas no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade –, o ora reclamante pretendia submeter ao Tribunal Constitucional a apreciação da seguinte questão: seriam inconstitucionais, por violação do princípio do acesso ao direito e dos princípios da boa fé e da confiança processual, inerentes ao instituto do caso julgado, as normas identificadas pelo reclamante, interpretadas no sentido de que pode o Tribunal da Relação rejeitar um recurso, por extemporaneidade, num processo em que o tribunal de 1ª instância, através de decisão não impugnada pelos outros sujeitos processuais, havia prorrogado o prazo para interpor e motivar o recurso que visava a reapreciação de prova gravada ou registada.
O Relator, no Tribunal da Relação de Coimbra, não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional, por entender que “o acórdão recorrido não se pronuncia sobre qualquer questão de constitucionalidade”, não estando pois verificados os pressupostos processuais exigidos pelo artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
5. Tendo o recurso sido interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, constituem seus pressupostos processuais:
– a invocação pelo recorrente, durante o processo, da questão de inconstitucionalidade que pretende submeter ao julgamento do Tribunal Constitucional;
– a aplicação, na decisão recorrida, das normas (ou das normas numa determinada interpretação ou dimensão normativa) questionadas pelo recorrente, não obstante a acusação de inconstitucionalidade que lhes é feita.
5.1. É certo que, no caso dos autos, o ora reclamante não suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade durante o processo; apenas invocou a inconstitucionalidade das normas que pretende ver apreciadas no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, isto é, em momento processual em que já estava esgotado o poder jurisdicional do Tribunal da Relação de Coimbra e em que portanto este não podia pronunciar-se sobre tal questão.
O sentido funcional que o Tribunal Constitucional tem atribuído à exigência legal de que a inconstitucionalidade seja suscitada durante o processo tem em vista dar oportunidade ao tribunal recorrido de se pronunciar sobre a questão, de modo que o Tribunal Constitucional venha a decidir em recurso. Deve, portanto, em princípio, a questão de inconstitucionalidade ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido.
Só em casos muito particulares, em que o recorrente não tenha tido oportunidade para suscitar a questão de inconstitucionalidade é que este Tribunal tem considerado admissível o recurso de constitucionalidade sem que sobre tal questão tenha havido uma anterior decisão do tribunal a quo (cfr., por exemplo, acórdão n.º 232/94, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27º Vol., p.
1119).
Ora, tendo em conta as concretas circunstâncias do caso, deve considerar-se o ora reclamante dispensado do ónus de suscitar a questão de inconstitucionalidade durante o processo, no sentido em que tal exigência tem sido interpretada pela jurisprudência deste Tribunal.
Na verdade, não era previsível que, na apreciação do recurso que lhe foi submetido pelo então recorrente, o Tribunal da Relação de Coimbra procedesse
à verificação do pressuposto processual relativo à tempestividade do recurso nos termos em que o fez. Não tendo sido impugnado nos autos o despacho que, no tribunal de 1ª instância, havia prorrogado – bem ou mal, não compete ao Tribunal Constitucional formular qualquer juízo a esse propósito – o prazo para interpor e motivar o recurso que visava a reapreciação de prova gravada ou registada, não era exigível que o então recorrente considerasse antecipadamente a interpretação normativa que veio a ser adoptada pelo Tribunal da Relação de Coimbra.
Trata-se portanto de um daqueles casos em que, segundo a jurisprudência deste Tribunal, o recorrente pode colocar directamente a questão ao Tribunal Constitucional, sem que sobre ela se tenha pronunciado previamente o tribunal a quo.
5.2. Como resulta do anteriormente exposto, o acórdão recorrido aplicou, pelo menos implicitamente, as normas identificadas pelo ora reclamante, no sentido por ele questionado.
Com efeito, tendo sido prorrogado por dez dias, através de decisão proferida pelo tribunal de 1ª instância (decisão que não foi impugnada pelos outros sujeitos processuais), o prazo para interpor e motivar o recurso que visava a reapreciação de prova gravada ou registada, o Tribunal da Relação decidiu rejeitar o recurso, por extemporaneidade.
6. Tanto basta para concluir que podem dar-se como verificados os pressupostos processuais do tipo de recurso interposto.
III
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide deferir a presente reclamação, devendo o despacho reclamado ser substituído por outro que admita o recurso.
Lisboa, 21 de Maio de 2003 Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos