Imprimir acórdão
Processo nº 589/02
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - A., e B., interpuseram recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de Julho de 2002, que indeferiu o pedido de reforma de anterior aresto desse Alto Tribunal, de 6 de Junho anterior, ambos lavrados em autos de agravo em providência cautelar não especificada, de que foram requerentes, sendo requerida C., todos devidamente identificados nos autos.
Pretendem que seja apreciada a constitucionalidade da norma constante do artigo 715.º do Código de Processo Civil, no sentido em que, segundo defendem, foi a mesma aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça, ou seja, no sentido da sua aplicação sem menção expressa de utilização e, designadamente, sem dar cumprimento ao princípio do contraditório, expressamente previsto, in casu, no nº 3 do preceito.
Alegam, para o efeito, que uma tal interpretação viola esse princípio, “tanto na vertente de violação do princípio de audição prévia
(artigo 715º, nº 3, do CPC), como na vertente de violação da proibição de decisão-surpresa, princípio esse consubstanciado nos artigos 13º (princípio da igualdade), 20º, nº.s 4 e 5 (princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) e 202º (princípio da defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos) da Constituição da República Portuguesa”.
Observam, a este propósito, que a questão de constitucionalidade só foi suscitada no requerimento de reforma do acórdão de 6 de Junho, dado ter sido a primeira oportunidade processual que obtiveram, pois só nessa decisão a norma em causa foi invocada, derivando a inconstitucionalidade suscitada da interpretação que o Tribunal deu à norma, na aplicação que desta fez.
Recebido o recurso, alegaram oportunamente as partes.
As recorrentes formalizaram assim as suas alegações:
“1. Com o presente recurso pretendem as Recorrentes a apreciação da inconstitucionalidade da norma constante dos n° 1 e 2 do artigo 715° do Código de Processo Civil (CPC), na interpretação feita pelo Supremo Tribunal de Justiça
(STJ) no seu Acórdão de 6 de Junho de 2002.
2. A ora Recorrida C., nas conclusões das suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa (que, conforme é unanimemente entendido delimitam o objecto do mesmo - arts. 690° e 684° n° 3 do CPC), limitou-se a suscitar perante o Tribunal ora recorrido fundamentos de nulidade do despacho proferido na 1ª instância.
3. Em conformidade, o pedido formulado foi apenas o de declaração da nulidade do despacho recorrido nos seguintes termos: ... deve a Decisão ora Recorrida, ser revogada, dando-se por nulo o teor do Despacho ora Recorrido, como é de Justiça'.
4. Assim, em nome do principio do dispositivo, manifestado neste caso concreto principalmente nos arts. 661°, n° 1, 690° e 684° n° 3 do C PC, o Tribunal da Relação só podia debruçar-se sobre os alegados fundamentos de nulidade e, em consequência, decidir se havia motivo para declarar a nulidade do despacho recorrido.
5. Porém, não obstante ter a Recorrida C. restringido o recurso a este objecto
(arts. 684°, n° 3 e 690° do C PC), o Tribunal Relação de Lisboa veio dizer que as questões a apreciar eram:
- “saber se depois de ter sido anulada a decisão final sobre a providência cautelar, deve o bem ser devolvido à requerente que estava na sua posse antes de ter sido decretada a providência
- Saber se com a entrega pela requerente do posto de abastecimento, a providência cautelar requerida se tornou inútil por um acto superveniente.”
6. Para além de tratar apenas estas matérias, conhecendo de questões que não foram submetidas à sua apreciação e esquecendo as causas de nulidade invocadas pela C., o Tribunal da Relação ao decidir esqueceu também o pedido por esta formulado e revogou o despacho de 22 de Maio de 2001, proferido pelo Meritíssimo Juiz da 14° Vara Cível de Lisboa, ordenando também o prosseguimento dos autos e a devolução do posto de abastecimento.
7. Ou seja, não declarou qualquer nulidade, obnubilou totalmente a delimitação do objecto do recurso perante si interposto e extravasando por completo do que lhe havia sido pedido, procedeu à alteração da decisão recorrida, julgando ele próprio a causa.
8. Nos termos expostos, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa incorreu, assim, nos vícios de nulidade por excesso de pronúncia, (artigo 668° n° 1, al. d), 2. parte, aplicável por via dos arts. 716° e 752°, n° 2 todos do C PC) e de nulidade por excesso na decisão ou, mais concretamente, por condenação em objecto diverso do pedido (art. 668° nº 1, al. e), 2ª parte, do C PC).
9. No entendimento do STJ, veiculado no Acórdão recorrido, a Relação não cometeu as nulidades de excesso de pronúncia nem de condenação em objecto diverso do pedido, na medida em que fez uso da regra da substituição do tribunal de recurso ao tribunal recorrido, aplicando o art. 715° do CPC (por via do art. 749° também do CPC) e, por isso, para além da matéria que foi submetida à sua apreciação, podia apreciar e julgar as restantes questões subjacentes ao despacho proferido em 1ª instância.
10. Certo é, no entanto, que o Tribunal da Relação não menciona em parte alguma do seu Acórdão, nem a referida regra, nem o citado artigo 715° do C PC, nem muito menos cumpre o preceituado no n° 3 deste artigo.
11. Nos termos do artigo 715° do CPC, a substituição da Relação ao Tribunal de
1ª Instância pode ocorrer em duas circunstâncias:
(i) No caso de a sentença recorrida ser declarada nula (nº 1);
(ii) no caso de o Tribunal a quo ter deixado de conhecer certas questões, designadamente, por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, se o recurso proceder e nada obstar à apreciação daquelas (nº 2).
12. Na questão em apreço não ocorreu, manifestamente, nenhuma destas situações:
(i) Nem a sentença recorrida (neste caso o despacho de 1ª instância) foi declarada nula, como vimos atrás e resulta claramente da parte decisória do Acórdão da Relação de 11 de Dezembro.
(ii) Nem o Tribunal a quo, que para este efeito era o Tribunal de 1ª Instância
(14ª Vara Cível de Lisboa), deixou de conhecer qualquer questão que devesse ser apreciada, não havendo nenhuma questão prejudicada que cumprisse conhecer por força do n° 2 do artigo 715° CPC (antes pelo contrário a Relação pronunciou-se precisamente sobre as questões que já haviam sido apreciadas).
13. Ou seja, não se encontravam verificados os pressupostos de aplicação do art.
715° do C PC, instituto legal que, desse modo, não podia ter sido utilizado pela Relação.
14. Por outro lado, nos termos do n° 3 do referido art. 715° do CPC antes de proferir a decisão substitutiva, autorizada pelos nos anteriores da mesma disposição, o Relator estava obrigado a ouvir cada uma das partes pelo prazo de
10 dias, não sendo, por isso, possível fazer uso da regra da substituição sem que às partes seja dado conhecimento desse facto, ou seja, sem haver invocação expressa do art. 715° do CPC ou do seu teor.
15. Porém, no presente caso o Relator não deu cumprimento ao disposto no n° 3 desta norma, ouvindo as partes antes de proferir decisão, nem tão pouco o Acórdão da Relação se refere a este principio da substituição, ou sequer existe ao longo de todo o seu texto qualquer referência à norma do CPC que o consagra
(art. 715°).
16. Nestes termos, é forçoso concluir que o Tribunal da Relação não aplicou a norma constante do art. 715° do CPC, ou seja, não decidiu com base na regra da substituição, pelo que apenas havia que declarar a nulidade do respectivo Acórdão por excesso de pronúncia e por excesso na condenação.
17. O STJ, embora sem fundamento, entendeu de modo diverso, numa posição cujo
único propósito parece ter sido o de 'salvar' o Acórdão da Relação, pois, na realidade, a aplicação da norma constante do art. 715° do CPC surge apenas, e pela primeira vez, na teoria construída no Acórdão recorrido.
18. Assim, o ST J interpretou a norma constante dos citados nºs. 1 e 2 do art.
715° do CPC no sentido de que a mesma pode ser aplicada implicitamente pelo Tribunal, isto é, sem menção expressa à sua utilização e, designadamente, sem necessidade de dar cumprimento ao principio do contraditório, expressamente previsto neste âmbito, no n° 3 da mesma disposição legal (art. 715° do CPC).
19. A interpretação do artigo 715° do CPC feita pelo STJ no Acórdão recorrido viola o princípio do contraditório (consagrado em termos gerais no art. 3° do CPC, e tem afloração especifica quanto a esta matéria no artigo 715°, n° 3 do mesmo Código) em duas das suas manifestações mais importantes
(i) violação do princípio de audição prévia (art. 715°, n° 3 do C PC),
(ii) violação da proibição de decisão-surpresa.
20. Com efeito, ao entender, na interpretação aludida, que o Tribunal da Relação adoptou no seu julgamento a prerrogativa legal conferida pelo art. 715° do C PC, o STJ considerou que essa norma poderia ser aplicada sem cumprimento do disposto no art. 715°, n° 3 do CPC, isto é, sem ouvir cada uma das partes, assim desrespeitando o direito de audição prévia.
21. Por outro lado, ao considerar como válida a actividade da Relação com base no art. 715° do CPC - designadamente, quando entendeu que aquele Tribunal podia conhecer e condenar para além do objecto do recurso delimitado pela Recorrente, por causa do principio da substituição do tribunal recorrido pelo tribunal de recurso - o STJ estava a proferir uma decisão com a qual as partes não podiam legitimamente contar, isto é, uma decisão surpresa.
22. De facto, (i) o Tribunal da Relação nunca invocou no seu Acórdão o artigo
715° do CPC (sendo que, como vimos já, não é possível aplicá-lo sem o enunciar);
(ii) jamais foi dado cumprimento ao n° 3 do art. 715° do C PC; e, aliás, (iii) as Recorrentes sabiam que não estavam verificadas as condições de aplicação do art. 715° (como se explicitou).
23. Ou seja, o STJ fundamentou a sua decisão na aplicação de uma norma, com a qual, as ora Recorrentes não contavam, nem podiam contar, tendo com base nela proferido uma decisão que, atentos os contornos do caso, foi totalmente inesperada, isto é, constituiu uma verdadeira surpresa.
24. Deve assim considerar-se que a interpretação da citada norma do art. 715°, feita pelo STJ no seu Acórdão de 6 de Junho de 2002, viola frontalmente o princípio do contraditório nas duas vertentes referidas.
25. O principio do contraditório, embora não se encontre expressa e autonomamente consagrado na Constituição da República Portuguesa (CRP), tem dignidade constitucional na medida em que decorre do princípio da igualdade e do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, consagrados respectivamente nos artigos 13° e 20°, nºs. 1 e 4 da CRP; mas, ainda, porque a sua protecção se reconduz também ao princípio da defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, constante do art. 202° da CRP .
26. Assim decidiu este Tribunal Constitucional (TC) no Acórdão n° 62/91, ao entender que:
'Se bem que não estejam autonomamente consagrados na Constituição, os princípios da igualdade das partes e do contraditório possuem dignidade constitucional, por derivarem, em última instância, do princípio do Estado de direito. Por outro lado, aqueles princípios processuais constituem directas emanações do princípio da igualdade. Assim, a sua da hipotética violação consubstancia, naturalmente, uma inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 2º e 13º, nº 1, da Constituição'. (in DR, Iª Série de 19.04.91, pags. 2245)
27. Deste modo, a norma constante dos nºs. 1 e 2 do artigo 715º do CPC é inconstitucional se for interpretada no sentido de que o príncipio da substituição nela vertido, pode ser aplicado implicitamente pelo Tribunal, isto
é, sem menção expressa à sua utilização e, designadamente, sem conceder às partes o direito de audição prévia consagrado no seu nº 3, pois viola o princípio do contraditório, e assim, contraria o disposto nos artigos 13º, 20º, nºs. 1 e 4 e 202º da CRP.
28. A inconstitucionalidade foi cometida pelo STJ no Acórdão recorrido pois é desta decisão que deriva a interpretação e aplicação da norma do artº 715º CPC que, nos termos já detalhados, se consideram violadores da CRP. Termos em que deve o presente recurso ser considerado procedente, declarando-se a inconstitucionalidade da norma do artº 715º do CPC, na interpretação feita pelo STJ no seu Acórdão de 6 de Junho de 2002, com todas as demais consequências legais.”
Por seu turno, a recorrida concluiu assim:
“1) Resulta de quanto alegado que a apreciação da constitucionalidade suscitada no presente recurso acontece no âmbito de uma providência cautelar.
2) É consabido que as providências cautelares assumem um carácter provisório, isto é, as suas soluções são interinas.
3) O carácter não definitivo da providência cautelar implica que de uma decisão proferida no âmbito de tal mecanismo legal não caiba recurso para o Tribunal Constitucional.
4) Admitir um cenário contrário seria preverter o sistema de fiscalização de normas que o são com carácter geral, abstracto e aplicadas a questões definitivas.
5) O nº 1 do artigo 280º da Constituição da República Portuguesa não admite a apreciação da constitucionalidade de normas aplicadas a decisão não definitivas.
6) Em consequência, o Tribunal Constitucional não deve conhecer do presente recurso.
7) Caso eventualmente venha a ser apreciado, o que por mera hipótese se considera, sempre se dirá que o princípio do contraditório não tem consagração expressa na Lei Fundamental, pelo que a interpretação e aplicação de quaisquer normativos estarão condicionadas seguramente a uma exegese conforme à Constituição da República Portuguesa.
8) Somente se poderá compreender que a dignidade constitucional de tal princípio radicará por extensão de outros dois princípios: a da igualdade das partes e o do Estado de Direito Democrático.
9) O âmbito de tal dignidade constitucional não está cabalmente definido e integrado, ocorrendo diversas excepções, derrogações e especialidades que em nada beliscam um princípio de contradição.
10) In casu e uma vez que o princípio do contraditório radica na igualdade das partes não houve diga-se favorecimento de uma parte em detrimento da outra.
11) Isto é, eventualmente houve uma aplicação de um normativo de forma implícita.
12) No entanto, não se pode falar em decisão-surpresa.
13) O princípio do contraditório não foi violado atendendo à circunstância de qualquer uma das partes ter tido amplamente oportunidade se pronunciar e apresentar cabalmente a sua argumentação em dialética constante.
14) Mais, a aplicação da regra da substituição não se terá verificado expressamente por quem alegadamente a teria usado.
15) Somente em fase ulterior e última na acepção argumentativa e explicativa do Supremo Tribunal de Justiça se referenciou o uso de tal mecanismo na forma implícita.
16) Assim, a interpretação realizada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão sub judice que foi feita da norma constante do artigo 715° do Código de Processo Civil não sofre de inconstitucionalidade.”
Colocadas perante a questão prévia suscitada pela recorrida, responderam as recorrentes no sentido da sua improcedência.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II
1. - A norma do artigo 715º do CPC – aplicável ao julgamento do agravo, nos termos do artigo 749º do mesmo Código – determina, no julgamento do recurso de apelação, que o tribunal de recurso não deixará de conhecer do objecto deste, embora declare nula a sentença proferida na 1ª instância (nº 1 do preceito).
E o nº 2 dispõe que se “[...] o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas face à solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, conhecê-las-á no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários”.
O tribunal recorrido, segundo este regime, não tem sequer de se pronunciar sobre a questão que não chegou a conhecer, se a teve por prejudicada perante a solução dada ao litígio, sem prejuízo do tribunal ad quem o poder fazer, considerando que da decisão recorrida consta integralmente a matéria de facto relevante (cfr. Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Coimbra, 1999, pág. 488).
Ponto é, de acordo com o nº 3 do artigo 715º, que, antes de proferir decisão, se ouça cada uma das partes, pelo prazo de 10 dias – com o que se pretende garantir a regra do contraditório, facultando-lhes a oportunidade de se pronunciarem (ob. cit., pág. 489).
O caso sub judice delimita-se normativamente em função do artigo 715º e questiona a constitucionalidade da respectiva normação, aplicada como que de modo implícito, sem expressa menção da sua utilização e, nomeadamente, sem dar cumprimento ao contraditório, como impõe o nº 3 do artigo.
Esta postulação do problema passa, no entanto, por uma abreviada mas indispensável menção da tramitação processual mais directamente relevante, o que se passará a descrever sucintamente.
2. - Intentada pelas ora recorrentes providência cautelar não especificada contra a ora recorrida, pedindo a condenação desta a entregar-lhes imediatamente o estabelecimento comercial constituído por um posto de venda de combustíveis, o magistrado judicial da 14ª Vara Cível de Lisboa, por despacho de
22 de Maio de 2001, julgou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, considerando que essa entrega já se tinha concretizado extrajudicialmente
(fls. 1260 e segs.).
Ao julgar assim, o magistrado indeferiu, do mesmo passo, o pedido feito pela recorrida de restituição do dito estabelecimento, pelo que esta agravou da decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, por acórdão de 11 de Dezembro de 2001 (fls. 1376 e segs.) lhe concedeu provimento, revogando a decisão recorrida e determinando a sua substituição por outra que ordene “o prosseguimento dos autos com vista à decisão final”, revogada que fora, para mais, por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31 de Outubro de
2000, a decisão da 1ª instância que decretara a providência cautelar.
Deste modo, a Relação deu resposta às questões colocadas como relevantes para a apreciação do recurso: a) saber se, depois de ter sido anulada a decisão final sobre a providência cautelar, deve o bem ser devolvido à requerente que estava na sua posse antes de ter sido decretada a providência; b) saber se com a entrega pela requerente do posto de abastecimento, a providência cautelar requerida se tornou inútil por um acto superveniente.
As ora recorrentes, insatisfeitas, recorreram, então, para o Supremo Tribunal de Justiça, sustentando, além do mais, a nulidade do acórdão por excesso de pronúncia e por ter condenado em objecto diferente do pedido.
Observam nas respectivas alegações, designadamente, o que assim condensaram ao concluir (fls. 1425 e segs.):
A ora recorrida limitou-se a suscitar perante a Relação os fundamentos da nulidade do despacho da 1ª instância, essencialmente reconduzíveis aos artigos 668º, nº 1, alínea b), e 156º do CPC, pedindo, a final e em consequência, que fosse declarada essa invalidade.
Ao conhecer de questões que não lhe foram submetidas, nem são de conhecimento oficioso, a Relação – diz – cometeu o vício de excesso de pronúncia, gerador de nulidade, nos termos do artigo 668º, nº 1, alínea d), segunda parte, aplicável in casu por via dos artigos 716º e 752º, nº 2, todos do CPC, e, por outro lado, sendo o fundamento indicado a nulidade, o que se pretende é a anulação da decisão (cfr. artigo 690º do CPC) e não a sua alteração, o que igualmente consubstancia nulidade, agora por excesso na decisão, condenando em objecto diverso do pedido [artigo 668º, nº 1, alínea e), segunda parte, do CPC].
O Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 6 de Junho de 2002, negou provimento ao recurso, por entender que se não verificaram as deduzidas nulidades, no entendimento da observância da regra da substituição do tribunal de recurso ao tribunal recorrido, de harmonia com o disposto nos artigos 715º e 749º do CPC.
Dada a existência desta regra, pondera:
“[...] a Relação passou a apreciar e julgar as questões sobre as quais a primeira instância se pronunciara, a saber, a respeitante ao pedido da C. da restituição do estabelecimento do posto de combustíveis (requerimento de 19 de Março de 2001), bem como a de extinção da instância com fundamento em inutilidade superveniente da lide. Deste modo, ao julgar tais questões, a Relação não cometeu nem a nulidade de excesso de pronúncia, nem a de condenação em objecto diverso do pedido. Pelo contrário, a Relação julgou as questões que estava obrigada a julgar por força da regra da substituição. E bem andou a Relação ao julgar do modo como o fez. A decisão da primeira instância, ao indeferir a devolução do posto de abastecimento à C. com o fundamento de a sua entrega às A. e B., ocorrida a 26 de Março de 1999, não ter sido feita por ordem do Tribunal revela-se manifestamente infeliz e contrária à realidade. A verdade é que o Tribunal havia ordenado, condenado, a C. a entregar imediatamente o dito posto de abastecimento às requerentes, por despacho de 15 de Março de 1999. Embora tivesse recorrido, sabia a C. que o recurso teria efeito meramente devolutivo, aliás o que lhe foi atribuído pelo despacho que o admitiu. Por isto, no mesmo dia em que este despacho de admissão do recurso foi proferido, a C. cumpriu, disciplinadamente, como era de sua obrigação, a ordem de entrega imediata do posto de abastecimento às A. e B.. Aliás, a C. teve o cuidado de interpôr o recurso antes de proceder à entrega, desta sorte não caindo sobre o disposto no artº 681º, nºs. 2 e 3, do Cód. de Procº Civil (perda do direito de recorrer em virtude de aceitação tácita da decisão). Entretanto, atendendo a que por um outro acórdão da Relação, confirmado por este Supremo Tribunal, haviam sido anulados determinados actos do procedimento cautelar, incluindo o despacho de 15 de Março de 1999 que ordenara a entrega imediata do posto de abastecimento às A. e B., ficara sem fundamento aquela entrega. Por isto cabia que estas o devolvessem à C., como esta requereu a 19 de Março de 2001. Não pode deixar de assim ser na medida em que caiu, por ter sido anulado, o despacho de 15 de Março de 1999. Foi o que a Relação decidiu, correctamente: a situação tem que regressar à anterior a esse despacho de 15 de Março de 1999 (...). A instância não se tornou inútil, aliás no interesse das A. e B., uma vez que o procedimento cautelar continua sem decisão.”
III
1. - Oportunamente, o relator lavrou parecer nos autos, apontando para o não conhecimento do objecto do recurso.
Escreveu-se:
“1. - O presente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, tem por objecto a norma do artigo 715º do Código de Processo Civil
– aplicada por remissão do artigo 749º do mesmo diploma legal – “interpretada no sentido de que a mesma pode ser aplicada implicitamente pelo Tribunal, isto é, sem menção expressa à sua utilização e, designadamente, sem necessidade de dar cumprimento ao princípio do contraditório, expressamente previsto, in casu, no nº 3 da mesma disposição legal (artº 715º do CPC)” (cfr. fls. 1546). Segundo defendem as recorrentes, a interpretação concedida a essa norma viola o princípio do contraditório, “tanto na vertente do princípio de audição prévia
(artº 715º, nº 3, do CPC), como na vertente de violação de proibição da decisão-surpresa, princípio consubstanciado nos artigos 13º (princípio da igualdade), 20º, nºs. 1 e 4 (princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) e 202º (princípio da defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos) da Constituição da República Portuguesa”.
2. - As recorrentes justificam o facto de só terem suscitado a questão de constitucionalidade no requerimento de reforma do acórdão recorrido (de 6 de Junho de 2002), dado que só aí foi a norma em causa invocada, dela resultando a interpretação cuja apreciação se pretende.
3. - Admitindo que não tiveram as recorrentes oportunidade para aquela suscitação anteriormente, já que no acórdão da Relação não se invocou o artigo
715º e pode entender-se não lhes ser exigível um juízo razoável de prognose sobre a sua eventual aplicação, o certo é que pode apresentar-se a hipótese do não conhecimento do objecto do recurso (também), se se entender que a norma não foi aplicada com a interpretação proposta pelas recorrentes.
4. - Assim, e esquematicamente: a) o recurso de agravo interposto para a Relação tinha por objecto o despacho do juiz da 1ª instância, de 22 de Maio de 2001, que indeferiu a pretensão da requerida (para que as requerentes lhe entregassem o posto) por entender que a requerida tinha entregue o posto de combustíveis às requerentes extrajudicialmente, e não por ordem do tribunal, e que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide; b) o Tribunal da Relação, por acórdão de 11 de Dezembro de 2001, decidiu:
“... dar provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos com vista à decisão final. Como consequência do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que anulou a decisão que decretou a providência cautelar, deverá ordenar-se a entrega do posto de abastecimento à requerida”; c) as recorrentes interpuseram, então, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça sustentando, além do mais, a nulidade do acórdão por excesso de pronúncia e por ter condenado em objecto diverso do pedido (conclusões 4 e 8); d) o Supremo Tribunal de Justiça, pelo acórdão de 6 de Junho de 2002, negou provimento ao recurso, entendendo que não ocorriam as invocadas nulidades porque a Relação fez uso da regra da substituição do tribunal de recurso ao tribunal recorrido, prevista nos artigos 175º e 749º do Código de Processo Civil; e) neste aresto, o Supremo teve, efectivamente, em conta o uso implícito da Relação quanto à norma do artigo 715º, mas só invocou este preceito na sua decisão para concluir pela inverificação das causa de nulidade invocadas pelas recorrentes, previstas nas alíneas d) e e) do nº 1 do artigo 668º do CPC; f) não carece assim averiguar se, na observância do artigo 715º, foram observadas as regras processuais atinentes à sua aplicação, designadamente se foi cumprido o contraditório a que o nº 3 do preceito se refere, ou, sequer, se tinha de ser cumprido; g) ou seja, o acórdão recorrido invocou a aplicação pela Relação da norma do artigo 715º do CPC, apenas para concluir que “a Relação não cometeu nem a nulidade de excesso de pronúncia, nem de condenação em objecto diversos do pedido. Pelo contrário, a Relação julgou as questões que estava obrigada a julgar por força da regra da substituição”. Nada se diz quanto ao cumprimento das exigências processuais eventualmente inerentes a esse conhecimento; h) e tanto assim foi que, no acórdão de 11 de Julho de 2002, que indeferiu o requerimento de reforma do acórdão de 6 de Junho de 2002, se entendeu que: “Os vícios que [as recorrentes] apontam – falta de menção expressa do uso da regra da substituição, falta de cumprimento do disposto no artigo 715º, nº 2 [nº 3], do Código de Processo Civil e inconstitucionalidades – reportam-se ao acórdão da Relação, não foram colocadas para serem decididas no recurso e, por isso não foram, nem tinham que ser apreciadas por este Tribunal”.
5. - A consolidar-se este enfoque, logicamente daí decorrerá eventual decisão a não tomar conhecimento do objecto do presente recurso. Ouçam-se, por conseguinte, as partes, nos termos do nº 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil, sobre esta concreta questão.”
2. - Os recorrentes, notificados, responderam no sentido do conhecimento do objecto do recurso.
Alegam, em síntese, que o Supremo, “por sua alta e exclusiva recreação”, aplicou, ele próprio, a regra de substituição do Tribunal de recurso ao Tribunal recorrido, por esse meio julgando a “inverificação das nulidades de que enferma sem dúvida o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
[...]” (assim justificando a inexistência das invocadas nulidades de excesso de pronúncia e condenação em objecto diverso do pedido).
No entanto, não está em causa, no acórdão recorrido, uma dada interpretação normativa do nº 3 do artigo 715º do CPC, em qualquer das vertentes assinaladas pelas recorrentes, uma vez que essa decisão pronunciou-se sobre as nulidades convocadas, considerando que a Relação não as cometeu. Ou seja, não se coloca uma questão de constitucionalidade normativa mas sim de inconstitucionalidade reportada à própria decisão judicial que se pronunciou sobre as alegadas nulidades e que se afasta de qualquer controlo de constitucionalidade por via do recurso utilizado. O que está, assim, em causa, é o conteúdo da decisão judicial, com a qual se discorda e é nessa medida que substancialmente se imputa a questão de constitucionalidade. O que, no entanto, não é sindicável por este Tribunal.
De resto, constituindo jurisprudência assente neste Tribunal o entendimento segundo o qual, no recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, não é de exigir ao recorrente a suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo se a aplicação normativa (ou uma sua interpretação) se deu de forma imprevisível, é seguro que, no concreto caso, situar-se-ia nos parâmetros da razoabilidade uma estratégia processual assente na prognose de uma decisão como a efectivamente proferida: não obstante o recurso do despacho judicial para a Relação se ter limitado a invocar a nulidade desse despacho, por violação do dever de fundamentação, dada a falta de especificação dos respectivos fundamentos [alínea b) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil], a Relação alterou a decisão recorrida julgando ela própria a causa, pelo que a eventualidade de uma dimensão normativa inconstitucional a enfermar o aresto devia ter sido suscitada durante o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e o certo é que o não foi (cfr., nomeadamente, as conclusões das respectivas alegações do recurso, fls. 1452 e segs.).
3. - Observa-se, por último, não proceder a questão enunciada pela recorrida como prévia, fundada na não admissibilidade da constitucionalidade das normas aplicadas em decisões não definitivas.
Independentemente do que se possa entender quanto à inverificação dos pressupostos do recurso de constitucionalidade perante uma situação de provisoriedade – o que, nomeadamente, se pode equacionar em termos de congruência (cfr. os acórdãos nº 151/85, 400/97e 664/97, publicados no Diário da República, II Série, de 31 de Dezembro de 1985, 17 de Julho de 1997 e 18 de Março de 1998, respectivamente) – o certo é que, nos recursos de constitucionalidade proferidos no âmbito de providências cautelares, dada a natureza provisória do julgamento, a inviabilidade do recurso só se coloca em relação a normas que, simultaneamente, fundamentem quer a providência requerida, quer a acção correspondente (cfr. os Acórdãos nºs. 400/97 e 664/97 citados, e os nºs. 442/2000 e 235/2001, publicados no Diário referido, II Série, de 5 de Junho de 2000 e 19 de Outubro de 2001, respectivamente). Ou seja, não cabe recurso para o Tribunal Constitucional de questões que, tendo sido objecto de decisão em providência cautelar, poderiam constituir objecto de apreciação na acção principal, sob pena de o juízo de constitucionalidade proferido no âmbito do recurso da providência cautelar ser igualmente provisório, o que, manifestamente, não se verifica no caso vertente.
IV
Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelas recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 8 unidades de conta, por cada uma.
Lisboa, 7 de Julho de 2003 Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida